domingo, 20 de fevereiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 17 - LIÇÕES DE OBAMA


Uma revolução passiva na terra prometida

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Obama, Barack. Uma terra prometida. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 751 p. 764 f.

 

Barack Obama é um grande escritor. Sua fama como tribuno sempre eclipsou a do escritor. Mas ao dar azo a prosa de sua memória (toda passível de documentação), o magnífico dos lugares, os detalhes do vívido, permite sempre um deleite da leitura, frases por frases, quando recorda, por exemplo, ter guardado, também em foto, com afeto cada momento que passou com Michelle e as filhas Malia e Sasha na visita à estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, revelando-se mágica. E este é o primeiro volume e começa com sua vida pública, traçando o passo a passo de suas campanhas políticas e termina com um briefing no Kentucky, onde ele é apresentado às equipes SEALs (sigla SEa, Air, e Land derivada de sua capacidade para fazer operações no mar, no ar e em terra) envolvidas no ataque a Abbottabad no Paquistão nos primeiros dias de maio de 2011 que, como ele conta ter sido a primeira e única vez que, enquanto presidente, testemunhou uma operação militar que aconteceu em tempo real.

Obama com sua mãe Ann Dunham

Sua abordagem é mais pública do que pessoal, mas quando escreve sobre os seus é com uma beleza que beira a nostalgia. Os momentos estão enraizadas na tradição oral de contar histórias como havia nos mostrado Joaquim Nabuco (1849-1910) e Gilberto Freyre (1900-1987), com vários sentidos figurados que a acompanham. Sua linguagem não teme sua própria riqueza imaginativa. Uma freira sorrindo lhe dá uma cruz de prata com um rosto tão sulcado como um caroço de pêssego. Os jardineiros da Casa Branca são os sacerdotes de uma ordem boa e solene. Há um espírito romântico, uma corrente quase melancólica - que Leandro Konder (1936-2014) consagrou entre nós - em sua visão da escrita. No momento em que se prepara para ir ao jantar após receber o Prêmio Nobel da Paz em Oslo, seu assessor Marvin Nicholson pede que olhem pela janela para ver uma multidão de pessoas com suas velas em chamas bruxuleando na noite escura.

Aliás, o que é esse Prêmio Nobel da Paz? Ele tem plena consciência de que sua imagem pública é superestimada. Uma terra prometida é uma reflexão, sobretudo de sua trajetória política, e nele Obama está aberto também ao autoquestionamento. É justo dizer que existe a memória de Sócrates (470 AEC - 399 AEC): a vida não deixa de ser examinada para Obama, pois só assim vale a pena ser vivida. Mas quanto disso é uma postura pensada? Essa tendência parece ter nutrido nele algo de caridade, uma percepção planetária sadia, uma generosidade profunda. E assim ele é pródigo em perdão e louvor, e dá o benefício da dúvida mesmo para aqueles que mal o merecem. No último dia de George W. Bush na Casa Branca, ele está irritado com a visão dos manifestantes e acha ”deselegante e desnecessário" protestar contra um Presidente nas horas finais de seu mandato. Uma bela postura. E ao ler essas passagens não há como deixar de indicar o belíssimo livro 18 dias (Objetiva, 2014) do Matias Spektor, que conta a história de como Fernando Henrique Cardoso (que também versa sobre no seu quarto e último volume dos Diários da Presidência) e Lula e trabalharam juntos para a aproximação com o governo Bush logo após as eleições de 2002.

Mas, e a questão da raça? Ele escreve sobre raça tendo junto de si As Almas do Povo Negro do mestre W. E. B. Du Bois (1868-1963), Martin Luther King Jr. (1929-1968), Toni Morrison (1931-2019) entre tantas outras e outros, e estando muito ciente de que será lido por pessoas que podem se imaginar sendo ofendidas. Entretanto, ele mostra que as situações de racismo convivem sempre com outros exemplos que mostram ostensivamente a sua complexa circunstância.

Todavia, Obama reconhece que durante sua campanha à Presidência, que as políticas de interesse direcionadas – por grupos étnicos, fazendeiros, entusiastas do controle de armas, entre outras e outros – não fazem parte da sociedade politica nos Estados Unidos, mas desses movimentos que os promovem por sua conta e risco. Concentrar-se nessas questões como supostos direitos ou qualquer outra coisa é arriscar se embrenhar entre as árvores e perder de vista a floresta.

Assim, Obama é um político que se observa a si mesmo, curiosamente puritano em seu ceticismo, virando-se para ver todos os ângulos e possivelmente insatisfeito com todos, e ciente de que além de ser incapaz de ser um ideólogo, não nesse terreno que se faz a cultura prometeica.

A história seguirá no próximo volume, mas Barack Obama já iluminou um momento crucial de como os Estados Unidos da América e o mundo mudaram enquanto também conservaram.

 

19 de fevereiro de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

5 comentários:

José Bezerra de Oliveira disse...

Excelente artigo! Mas, no documentário Dirty War, um militar fala que Obama mandou executar inimigos em todos os cantos do mundo sumariamente. Nobel da Paz? Paz para os mortos! Dirty War, em português é Guerras Sujas, fácil de achar na Internet. Abraço!

Unknown disse...

Eu sou suspeita para comentar sobre este homem, simplesmente o amo!

Monica Araujo disse...

Ótimo artigo! Obama já não é o cara que viu em Lula o cara. Lula sim, é o cara!
É inteligente politicamente, mas antes de tudo é um americano e como tal, prepotentes e manipuladores. Que se dane o mundo se o deles estiverem a salvo. Sua autocrítica é bem limitada!

Unknown disse...

Embora tenha minhas críticas à todo governo estadunidense, não posso negar que tenho uma simpatia ao homem Barack...😊

Marli disse...

Parabéns.
Ótimo artigo.
Perfeito.