A sombra de Órion
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Montoya, Pablo. La Sombra de Orión.
Bogotá: Random House, 2021. 428 págs.
Imagine uma montanha numa cidade, que o tempo
encheu de cadáveres e lixo, que alguns relatam como a maior vala comum da
Colômbia. Graças à literatura, esses fantasmas saem dos escombros e da morte,
para contar sua história. Essa é a grande narrativa do romance A sombra de
Órion (2021), de Pablo Montoya.
A sombra de Órion é uma obra literária que comporta em si pontos de
vista díspares, é de uma densidade significativa que ao leitor desatento pode
confundir, pois sua estrutura literária é de uma polifonia de vozes na melhor
chave de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e um olhar retumbante sobre o Operação Órion,
que
foi uma
das dezessete operações militares que ocorreram há duas décadas na Comuna 13 de
Medellín, e suas terríveis consequências. Essa multiplicidade de memórias
póstumas enriquece o romance e as lembranças coletivas.
Além do personagem fictício deste trágico episódio,
Montoya investigou minuciosamente sua origem, causas e entrevistou alguns
protagonistas. A paisagem é apocalíptica; goles, amargos; as imagens,
comoventes, que forçam uma leitura calma e dolorosa. Alguns dirão que é
exagerado, mas para a nossa realidade e a colombiana supera qualquer comparação
com ela. A Operação Órion cria uma novo patamar de atrocidades onde o leitor
encontrará grande parte do carma colombiano (será que só deles?): a cruel
aliança entre pessoas jurídicas da liderança nacional e alguns bandidos, os
paramilitares como as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), para afastar outros
bandidos, as milícias e guerrilhas como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia –
Exército Popular (FARC-EP)[2],
o Exército de Libertação Nacional (ELN) e os Comandos Armados do Povo (CAP), impossibilitando
a pavimentação para qualquer caminho ao direito e perpetuam a impunidade
infinita que se espalha pela pátria sem pátria.
O romance é escrito como se estivesse abordo da
Operação Órion, através de um álter ego, Pedro Cadavid, o que permite uma
reflexão aguda dos fatos. Este dialoga com os mortos de Órion e os posteriores
desaparecidos (a grande ferida nacional que não cicatriza), que segundo
parentes das vítimas estão enterrados na montanha de La Escombrera (um terreno
de cerca de três hectares de lixões, utilizados para esconder os corpos das
suas vítimas e não só), local de exploração sonora para o músico Mateo
Piedrahita; onde na verdade à própria é enterrada dia após dia em um país
anômalo com um sistema de justiça de horror.
Nesta descida ao inferno, o romancista, que também
é protagonista, cai dominado pela depressão. "Estou cheio de mortos",
diz ele, em meio as tempestades mentais. Ele ouve vozes, mergulha na
irracionalidade, faz perguntas a si mesmo, e num epílogo delirante encontra
cura no yagé (bebida dos povos originários utilizada na medicina ancestral
sul-americana também por muitos povos colombianos).
Se não bastasse tudo isso, nos últimos anos, a
Colômbia tem enfrentado um período de crescente polarização política, insatisfação
popular e protesto social. Agravada pela pandemia da Covid-19, os
acontecimentos que se desenrolam a partir de 28 de abril de 2021 são inéditos.
Por cerca de três meses, grande parte do território do país ficou paralisada. A
maioria dos comentaristas destacou a brutalidade da repressão policial (a
sombra de Órion), as inúmeras mortes e demais atrocidades cometidas pelo
Esquadrão Móvel Antidistúrbios (ESMAD, na sigla em espanhol).
Por conta desses eventos, anunciou a época que
deixou de representar o país em eventos culturais, literários e acadêmicos
internacionais num gesto simbólico de protesto contra essa situação e para se
solidarizar com o descontentamento popular colombiano.
Como se vê, a história da Colômbia é escrita em
medidas menores. A incursão artística de Montoya indica outros caminhos para se
aproximar da verdade. Junte todas as peças novamente para sair desse imbróglio
e tentemos ajudá-los a abolir os hábitos não saudáveis do passado. Eis, se
possível, o início da tarefa gigantesca de Gustavo Petro, Francia Márquez (a Alma
Agudelo, a personagem feminina da trama; sua simbologia associada a Origem, a Pachamama
– Mãe Terra, abre-se a múltiplas possibilidades; com ela, está o passado e
quiçá o futuro da Comuna 13) e a grande frente democrática que os elegeu.
23 & 24 de junho de 2022