sábado, 14 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 060 - GRANDE ELEIÇÃO: VEREDAS

A cultura política mineira e as eleições municipais de 2024

 

Pacelli Henrique Silva Lopes.

 

Há cem anos, a presidência do Brasil era exercida pelo mineiro Arthur da Silva Bernardes, que se destacou na renovação do Partido Republicano Mineiro na sua segunda geração. Bernardes enfrentou intensas batalhas políticas com grupos rivais dentro de seu próprio partido.

Na época, a bancada mineira na câmara federal era conhecida como carneirada, por votar em bloco, tinha fortes conflitos no seu seio. Os grupos políticos eram obrigados a negociar acordos que envolviam as candidaturas nos níveis municipais, estaduais e federais.

As fontes históricas da Primeira República mostram que adversários de uma mesma localidade chegaram a acordos várias vezes. Esses pactos contemplavam candidaturas municipais e estaduais, evitando assim os conflitos políticos.

Hoje em pleno 2024, vemos a ausência do vivere civile. A ausência de polarização política ilustra a força do nosso Riobaldo de Guimarães Rosa ao dizer que “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto de saber – nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza…”[1]

É neste mundo concreto do personagem que vemos as nuvens reais e densas de fumaça fruto das queimadas que assolam nosso país.

Em Contagem e no Rio de Janeiro vemos candidaturas, cada uma à sua maneira, com propostas palpáveis, pautadas no centro político democrático, com diálogo com o mundo evangélico.

A prefeita de Contagem, Marília Campos (PT), conta com uma quantidade significativa de aprovação do seu primeiro mandato, acima de 70%, um indicativo de que vencerá no primeiro turno. Essa bem poderia ser a de Dirceu, já compreendeu que suas lutas passam pelo mundo de Riobaldo, e que assim como ele que esteve com os conjuradores, precisará se ater à construção de uma política de distribuição fiscal de republicana de novo tipo compatível com a grave crise das Minas Gerais, uma vez que, a atual em e breve encontrará seu fim via STF e o desiderato da reforma tributária.

Em cidades como Juiz de Fora e Muriaé, Margarida Salomão (PT) e Marcos Guarino (PSB), podem seguir o bom exemplo de Contagem e fazer uma campanha benfazeja, para onde seus opositores não constroem alternativas viáveis. Entretanto, na experiência de Juiz de Fora, se reeleita a prefeita terá que fazer aggiornamentos.

Parafraseando Tancredo Neves: “Só há pátria com democracia.” E em ambas é necessária a negociação política. Aos poucos, a realidade corrige o curso de todos distinguindo entre o útil e o mal compreendido no dizer de Tocqueville,

Para isso, será necessário não perdermos mais oportunidades de fortalecer a Frente Democrática vitoriosa em 2022, o que ficou evidente nas negociações que deram origem às chapas para concorrerem à prefeitura de Belo Horizonte.

Teremos uma nova chance no segundo turno. Isso ocorre porque os belo-horizontinos estão rejeitando os dois candidatos das fantasiosas narrativas alienígenas a Riobaldo. Assim, uma nova rodada de negociação se abrirá em breve. Tem-se algo que o fiel da balança pode nos ensinar é que as disputas políticas quando praticadas dentro das regras republicanas permitem que os adversários de ontem, sejam os aliados de hoje. Para isso, é necessário que a linha civilizatória seja traçada.

Portanto, nossa população anseia por cidadania, mesmo se sentindo desorientada em um mundo sem explicação histórica. Até aqui a atual campanha municipal tem deixado claro a preferência do eleitor por uma prefeitura colada nos seus municípios e munícipes que sejam capazes de se apresentar como exemplares cuidadores da saúde, educação e mobilidade urbana.

E para enfrentar o vazio populista, nossos líderes exemplares para ensinar a cidadania que zelam pelo povo significa garantir acesso à esses serviços, o que perpassa por fortalecer a cultura política democrática mineira. Em um país que se move pela emoção e não somente pela razão, só conseguiremos esses feitos se tocarmos a alma da mineiridade, tornando nossos municípios garantidores do bem-estar social.



[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Companhia das Letras, 2019. P.08.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 059 - DECIFRANDO O FUTURO DO PRETÉRITO MUNDIAL

Ainda estamos aqui

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Prússia que unificou os estados alemães no século XIX, tinha um carácter forte que se refletia na expressão dura do seu rosto, mas ao mesmo tempo possuía grande pragmatismo, algum cinismo e sentido de humor.

Christopher M. Clark confirma o personagem como o criador de inúmeras imagens linguísticas e uma delas é a que atribui aos EUA o seguinte: “A graça de Deus tem um lugar especial em seu coração para proteger os bêbados, os loucos e os Estados Unidos da América”.

A despeito de tudo, pode-se dizer que alguma razão há, porque à medida que se aproximava a próxima eleição presidencial em novembro, que os anos alcançaram o mandatário Joe Biden, que, enfraquecido pelo peso da idade, tomado por lapsos de toda sorte, parecia incapaz de encarnar a esperança no futuro, apesar do exercício quase findo de uma boa presidência, com mais virtudes do que erros, com decência e dignidade. Trump, até então seu adversário que nada tem de um lírio, que comete erros não forçados com uma alta frequência (na verdade não se sabe se são produto da idade ou da sua ignorância), parecia mais forte e vigoroso, brincava de gato e rato com Biden, sem piedade, com insultos e sarcasmos, usando apelidos infantis, como destacou Obama, e desfilava seguro da sua vitória, acentuando com desdém a sua mensagem reacionária, ameaçadora e exclusiva.

Mas um acontecimento mudou tudo: a desistência de Biden à nomeação democrata e o empoderamento quase instantâneo de uma mulher que demonstrou uma capacidade notável, Kamala Harris. Em poucos dias transformou-se numa esperança no futuro, com inteligência e graça e com uma firmeza civilizada que abriu uma ilusão não só para os EUA, mas para todos os democratas do mundo que enfrentam com angústia o futuro da um mundo turbulento e inseguro, perigoso, com duas guerras em curso, nas quais se fortalecem posições autoritárias e violentas.

O perigo de que um personagem como Trump, que de fato mostrou o seu desprezo pela alternância democrática, volte a liderar a principal potência mundial não está, no entanto, evitado. Vivemos tempos voláteis, de mudanças aceleradas, em que muitos setores sociais se percebem, com razão, como excluídos e florescem os demagogos e as suas promessas simplistas como acontece também nas nossas eleições municipais. As corridas eleitorais são estreitas e difíceis.

Alexis de Tocqueville, o grande analista francês do alvorecer dos EUA, destacou que “é mais fácil para o mundo aceitar uma simples mentira do que uma verdade complexa”.

Mas isto não é inevitável como parecia há apenas algumas semanas. Os números mudaram, as frases bélicas foram atenuadas e renasceu o entusiasmo de quem não insulta, raciocina e não considera o adversário um inimigo.

O sorriso largo de Kamala e as suas propostas destinadas a combinar mais liberdade, mais pluralismo e mais igualdade iluminaram uma perspectiva sombria para a democracia. A diferença entre as vozes racionais e humanistas que os rodeiam e a face taciturna de um messianismo brutal apresentado por Trump e pelos seus seguidores é enorme. Não está totalmente claro se ele mudará a sua estratégia eleitoral, mas não lhe será fácil encarnar uma personagem com fins intelectuais mais refinados.

Os resultados dessas eleições não serão estranhos ao nosso futuro.

Vivemos tempos difíceis, com um grande abismo entre os avanços científicos e tecnológicos no mundo instrumental e a capacidade de convivência pacífica que gere uma humanidade melhor e um planeta sustentável e civilizado no mundo normativo.

Nem Zygmunt Bauman se enganou quando falou de tempos líquidos, nem Ulrich Beck quando falou da sociedade de risco, só que na atual desordem geopolítica a liquidez, a volatilidade, a desigualdade e o risco tornam-se cada vez mais difíceis de gerir. A atual fragmentação económica torna o mundo mais inóspito, as diferenças mais irredutíveis, a violência maior e torna-se cada vez mais difícil conviver.


A política e especialmente o sistema político democrático, que recordemos mais uma vez, não é majoritário no mundo, exige cada vez mais esforço para que os seus valores sobrevivam e se adaptem aos novos desafios que mudarão radicalmente o nosso modo de vida.

Se isto não for alcançado, a tentação autoritária crescerá, os sujeitos políticos tenderão a desaparecer e as identidades fechadas, os fanatismos e finalmente as guerras florescerão. A coexistência baseada numa démarche civilizacional com valores partilhados será restringida.

Já temos Scrooge’s de todas as cores no poder, não precisamos de mais Putins, mais Netanyahus, mais Khameneies, mais Orbán, mais Erdogans, mais Maduros, mais Bukeles ou mais Ortegas, só para citar alguns.

Neste contexto, é muito importante que no Brasil não percamos uma visão realista e ponderada do que avançamos e alcançamos como país, bem como dos problemas e desafios que enfrentamos, evitando percepções simplistas ou fanáticas e ideias cruas.

Para enfrentar os problemas e desafios de hoje e de amanhã, todos precisamos uns dos outros. Há mais de dez anos cometemos demasiados erros e enganos, o que nos levou à estagnação. Só a Frente Democrática nos impediu de nos afundarmos numa segunda mediocridade em 2022.

Precisamos seguir o caminho de agora significativamente e urgentemente combater eficazmente o crime organizado e globalizado, fortalecer a nossa democracia através de um adversário construtivo, que combina com o debate e a crítica bem como uma procura sincera de acordos. Só assim o Brasil seguirá o caminho que o levou ao G8, G20 e a COP30.

Não são tempos de mesquinhez e de brigas, esperamos que todos os partidos de orientação democrática, sejam de esquerda, de centro ou de direita, para além da competição eleitoral, compreendam que um desacordo infundado permanente e o mau humor degradam a vida democrática e só favorecem, como bem sabemos, a cultura autocrática de vários matizes.

 

9 de setembro de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

domingo, 8 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 058 - DECIFRANDO O PABLO SEM KARNAL

Enquadramentos sobre as eleições em São Paulo

Vagner Gomes de Souza[1]

 

Os estudiosos do pensamento político brasileiro ainda tem muito que contribuir nas análises do cenário eleitoral municipal em 2024 ao revisitarem as considerações do saudoso professor Luiz Werneck Vianna no ensaio “Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos”[2]. Mais do que referendar uma polarização entre dois campos interpretativos, o autor demonstra como melhor interpretar nosso país poderia nos auxiliar no desafio da previsão em política. Segundo ele,

“Decerto que nos originamos de uma espécie peculiar de Ocidente, a chamada ‘opção ibérica’, como analisou Morse em seu fecundo O espelho de Próspero, a carga de pragas, segundo os liberais, que nos teria interditado o caminho progressista e libertário da região ao norte do nosso continente. Filhos diletos do capitalismo mercantil, não fomos postos no mundo por uma história sem intenções. Nas palavras da forte ensaística de Angel Rama, aqui o ideal precedeu o material; o signo, as coisas; o traçado geométrico do plano, as nossas cidades; e a vontade política de explorar, o sistema produtivo.”[3]

A denúncia da persistência da herança do iberismo não é uma novidade na história política brasileira e muitos observaram esses ventos nas origens do Partido dos Trabalhadores nos anos 80 em que seu “sindicalismo de resultados” que maximizava os ganhos econômicos dos trabalhadores as margens de uma aceitação da institucionalidade política, denunciada como continuidade do “getulismo”, permitiu se embrenhar nas periferias das entidades orgânicas de muitas capitais. A materialidade da vida real acelerada pelos postulados do liberalismo anglo-saxão.

Em especial, São Paulo, aonde em 1988 o Partido dos Trabalhadores ascendeu ao poder pela via eleitoral com a eleição de Luiza Erundina, passou por diversas mutações desse perfil “americanista” até chegar a sua versão “sem freios” na campanha de Pablo Marçal. No mundo das ideias e considerações da política as “moedas sociais” para promover iniciativas empreendedoras fizeram a fermentação dessas forças extremadas à direita. Portanto, as linhas interpretativas sobre as eleições municipais em São Paulo pelo viés da validação de uma polarização entre um suposto “bolsonarismo” versus o suposto “lulismo” caem no vazio diante do reconhecimento dessa emergência do elo subalterno do “americanismo”.

Se o pressuposto de Gramsci de que o americanismo em política seria o ponto de formação do fascismo, as nossas considerações sobre as próximas eleições em São Paulo nos permitem recordar que os valores do mercado aflingem os eleitores conservadores uma vez que testemunham nele a desagregação de seu reconhecimento na ordem social vigente. As narrativas por vias de uma identidade de periferia muito mais alimentou esse “moinho satânico” que as pesquisas eleitorais anunciam a cada dia. O culto da personalidade nos apelos de uma fantasiosa “nova classe média” por uma década nos primórdios desse século nos levou a esse cenário que favorecerá quem tiver menos rejeição entre os eleitores conservadores, mas desejosos de programas sociais.

As matrizes eleitorais que elegeram Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta fazem parte de um “campo conservador” do contrapeso do iberismo. Seu apelo centralizador e autoritário não permite sua fácil captura pelas manifestações “anarco-capitalistas” desse salvacionismo individualista presente no apelo da candidatura de Pablo Marçal. Lembremos que o Maluf lançou um programa de habitação popular, o Cingapura, e o Leve Leite foi sua contribuição pré-histórica ao “Fome Zero” entre os paulistas. O mito da polarização do eleitorado empurra esse eleitorado para um bloco político distante da Frente Democrática que dialoga com os setores conservadores do campo democrático. Consequentemente, as movimentações das placas tectônicas nos eleitores mais pobres sinalizadas na recente pesquisa do DATAFOLHA (05/09) sugerem que a face popular do suposto “lulismo” reeditará o resultado 2022 pela via do voto diante da “cegueira” dos dirigentes políticos do campo da esquerda.



[1] Doutorando do PPGCP-UNIRIO.

[2] O ensaio se encontra em Vianna, Luiz Werneck – A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Revan. Rio de Janeiro. 1997. Livro que mereceria uma justa homenagem quando chegar aos 30 anos de lançamento.

[3] Idem, pp. 125-126.

domingo, 1 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 057 - LIÇÕES DOS INGLESES

No começo da “revolução dos telhados” do Partido Trabalhista no Reino Unido

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A alternância no poder é uma parte essencial da democracia, quatorze anos de governo pode ser um tempo muito longo e nem sempre é necessariamente conveniente. Neste sentido, a vitória do Partido Trabalhista (The Labour Party) nas eleições no Reino Unido foi recebida como uma boa notícia para os seus habitantes. Uma mudança de governo reafirma a conveniência de manter controles e equilíbrios no poder, para que este seja sujeito ao escrutínio público de tempos em tempos. É muito provável que numa democracia representativa coexistam partidos liberais, que promovem a liberdade como eixo das suas políticas, a par de outros, de carácter social-democrata, que lutam por maiores graus de igualdade. O fato de ambos poderem alternar no governo, sem ameaçar a civilidade, garante a representação dos diversos interesses e opiniões existentes. Introduz diversas perspectivas para enfrentar os problemas públicos e permite a competição entre forças políticas e com ela mais inovação em ideias e estratégias para enfrentar os problemas. Além disso, é importante que os eleitores possam expressar o seu descontentamento com o partido no governo e é por isso que, depois de vários erros cometidos pelo Partido Conservador (Conservative and Unionist Party) e da sua atual divisão e confusão, a chegada de Sir Keir Starmer ao poder é positiva.

Ora, isto só foi possível em virtude do aggiornamento que o novo Primeiro-Ministro introduziu no Partido Trabalhista, reforçando a sua matriz social-democrata. Ao tomar posse no dia 5 de julho próximo passado, Starmer optou por enfatizar acima de tudo a sua andata, e explicou: "Não importa quão ferozes sejam as tempestades da história, uma das grandes forças desta nação sempre foi nossa capacidade de navegar para águas mais calmas. E, no entanto, isso depende dos políticos, particularmente aqueles que defendem a estabilidade e a moderação como eu, reconhecendo quando devemos mudar de curso" e sinalizou “Se você votou no Partido Trabalhista ontem… Assumiremos a responsabilidade de sua confiança enquanto reconstruímos nosso país. Mas quer você tenha votado no Partido Trabalhista ou não… Na verdade - especialmente se você não... Eu digo a você, diretamente… Meu governo servirá a vocês. A política pode ser uma força para o bem - nós mostraremos isso. E é assim que governaremos.” O seu lema foi “Primeiro o país, depois o partido”.

Uma análise da votação permitiu-nos aferir o clima da opinião pública que prevalecia no país e assim é possível afirmar que há um singelo processo civilizatório em curso da população e que, sem esta sintonia com essa transformação, o Partido Trabalhista não teria vencido as eleições.

As razões que explicam a mudança de governo são, então, primeiro, o novíssimo ritorno trabalhista e especialmente do próprio Starmer; o declínio dos partidos nacionalistas escoceses que fortaleceram o voto trabalhista; a divisão da direita com o surgimento do novo partido reformista e o tédio com o partido que, depois de 14 anos e vários erros. Mas isto não significa uma hegemonia, uma adesão ideológica, mas um voto de confiança, que aposta que o Primeiro-Ministro Keir Starmer possa ser capaz de cumprir o seu compromisso histórico anunciado e iniciado com um grande alívio e uma mudança de humor.

O grande desafio para o Primeiro-Ministro segue sendo que a sua identidade democrática se enquadra nas hodiernas tendências reformistas da esquerda sem jamais deixar de reforçar a vocação democrática do centro e da direita planetária e definir em novos termos o que significa ser esquerda no século atual, e tudo indica que a revolução dos telhados” aponta para esse sentido.

 

28 de agosto de 2024

[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 056 - ELEIÇÕES CARIOCAS (2)

Lacerdismo a doença infantil do sectarismo carioca

Vagner Gomes de Souza[1]

 

Poucas semanas nos separam das eleições municipais e ainda observamos que muitos analistas/militantes atribuem que no caso carioca é momento de fortalecer o tema da democracia. A ideia é uma tímida forma de declarar apoia a relevância do centro político no arcabouço da reconstrução do município que já foi a Capital do país. A nacionalização para justificar um apoio sem pontuar os compromissos programáticos. Adesismo não é uma boa escola para a prática da democracia ainda mais se vier de personalidades que se identificam como da Esquerda.

Por outro lado, há uma mobilização ainda mais vazia que faz ressurgir o moralismo do lacerdismo em suas críticas a alianças favoráveis a reeleição do atual Prefeito. Esses “neolacerdistas” da classe média carioca e/ou funcionalismo público tijucano e seus assemelhados se consideram a verdadeira esquerda. Anunciam que estão “sempre alertas” as aproximações que atribuem como desqualificadoras do apoio a gestão municipal que tem buscado fazer o Rio de Janeiro superar sua grave crise. Uma crise gravíssima que o assim autodenominado candidato da “saída pela esquerda” acha que a “mágica” dos números do IPTU seria uma solução viável.

A política não pode conviver com o fanatismo de convicções que se negam a perceber a realidade. Governar uma cidade cosmopolita como o Rio de Janeiro não pode se fazer como se fosse a pregação do Beato José Maria ao liderar a Guerra do Contestado. Precisamos exorcizar esse lacerdismo político da cultura política da Zona Sul carioca que não consegue dialogar para além do Tunel Vice-presidente José de Alencar – se esquecem que as voltas da política real se faz sempre. Então, fazer insinuações contrárias a determinadas alianças é um sectarismo que cheira muito do oportunismo.

“O Senhor é meu Pastor e minha bancada não diminuirá”. Esse é o salmo eleitoreiro desses sectários infiltrados em cargos comissionados que temem voltar a realidade de não terem nem emprego e nem uma bolsa CAPES/CNPQ para se sustentar. Portanto, fazem uma oposição por fazer uma “guerra de posição” de leitura tortuosa de Gramsci para justificar manter ou ampliar uma bancada de vereadores que se caracteriza por atuar dialogando aos bastidores com aquele que dizem fazer oposição. Então, pedem a transparência política como fiscais do caos na política, mas desejam se manter nos gabinetes como uma “burocracia de militantes” distantes cada vez mais dos cariocas.

Na verdade não aceitam as convergências e divergências que perpassa uma Frente Democrática uma vez que a mesma nunca fez parte da “cultura política” do lacerdismo carioca uma vez que o original Carlos Lacerda, no máximo, aderiu a uma Frente Ampla. Portanto, lamentamos que não haja uma esquerda democrática coerente e programática nas eleições cariocas, mas um mosaico de “adesismo” e “neolacerdismo” que defendem a maximização de cargos de DAS seja no executivo ou no legislativo. Não alimentemos ilusões com esses atalhos narrativos uma vez que não atingem a grande parcela da sociedade.

Aliás, em que ganhamos democraticamente ao desqualificar um líder político evangélico e conservador que se afastou do bolsonarismo carioca? Devemos reler um pouco melhor A Carta Acerca da Tolerância de John Locke para fazer uma prática política que assimile o crescimento dos evangélicos na cultura política carioca. O conservadorismo se afastar daquilo que chamam de extremismo de direita é uma vitória política que devemos contribuir para consolidar pelas vias do pluralismo. Esse sectarismo pode fazer que houvesse uma “reação termidoriana” nas eleições ao legislativo carioca aonde o voto de veto se faça presente na nova representação legislativa carioca. Portanto, relembremos o saudoso Vianinha, um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém. Acrescentemos que um pouco de emedebismo ajudaria tanto aos cariocas quanto aos “paulistes”.



[1] Doutorando do PPGCP-UNIRIO.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

VAMOS AJUDAR NÚMERO 003 - PRECARIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

Por um financiamento sustentável para o ensino superior

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Para além da questão de como resolver a questão do contingenciamento orçamentário, que permanece desconfortavelmente em aberto, a questão subjacente do financiamento do ensino superior (ES) permanecerá presente na agenda estratégica do país. Com efeito, trata-se de descobrir como podemos garantir – com uma perspectiva futura – um financiamento sustentável para a nossa vida universitária.

Atualmente, a taxa bruta de participação brasileira no ensino superior é uma das mais altas do mundo. Nossos percentuais estão colados a média da praticada pelos países da OCDE. Ou seja, o acesso à vida universitária tornou-se acessível, gerando reações entre aqueles que preferem concebê-lo tão somente como capital que pode produzir retorno ao mercado de trabalho. Tanto fontes estatais como não-estatais contribuem para este enorme esforço.

Qualquer futuro esquema de financiamento da vida universitária deve partir, portanto, do fato de já ter sido alcançado um elevado nível de investimento, especialmente considerando que a despesa nos níveis mais baixos (ensino infantil, pré-escolar e básico) é comparativamente baixa. O dilema histórico do cobertor curto segue seu curso.

Entretanto, não há espaço para estatizar sonhos. O Brasil atingiu um nível mais elevado de investimento exclusivamente em virtude de ter um sistema misto de provisão.

Esta característica mista está profundamente enraizada na economia política do sistema: permite mobilizar um grande volume de recursos; garante acesso; apoia uma rede institucional diversificada e plural; oferece programas diferenciados em três níveis (SISU, PROUNI e FIES). Garante uma cobertura territorialmente descentralizada e apoia uma comunidade científica altamente produtiva a nível comparativo regional.

Um tal esquema – custos mistos e partilhados – tem justificações poderosas. Primeiro, o Estado, pelo SISU, não tem condições de manter um ensino superior de acesso universal e de qualidade garantida. Em segundo lugar, para sustentar este padrão seria necessário aumentar continuamente o gasto na produção, transmissão e aplicação de conhecimento. Terceiro, o ES gera simultaneamente benefícios públicos e privados, o que justifica que tanto a sociedade como um todo (contribuintes) como os beneficiários individualmente, contribuam para cobrir os custos desta função pública crucial.

Na verdade, a sociedade se beneficia de diversas formas com um ensino superior com ampla cobertura e qualidade. Por exemplo, terá um maior número de profissionais encarregados de serviços essenciais, como saúde, educação escolar, segurança cidadã, judiciário, legislativo, comunicações, Concurso Público Nacional Unificado e outros. Da mesma forma, contará com uma plataforma de conhecimento técnico-científico em permanente renovação e pessoas especializadas para a sua gestão. Melhora a competitividade histórica empresarial e das organizações. E será incentivada a educação cidadã, fator decisivo para a deliberação informada de políticas públicas.

Para tal, os Estados e as sociedades democráticas protegem a autonomia das universidades, instituições que, por sua vez, devem garantir a liberdade acadêmica e o pluralismo deliberativo no seu interior. Nem cancelamentos, nem acampamentos, nem ocupações, nem perseguições ou universidades monitorizadas cabem no espaço cultural do ES. Quando ocorrem, colocam em risco o valor público do conhecimento.

Mas a ES também produz benefícios privados de natureza individual. O nível salarial e a rentabilidade do capital humano adquirido são a sua expressão imediata, mas não a única. Devem também ser considerados a socialização dos valores e da ética profissional, uma melhor compreensão do mundo e de si mesmo, a participação em redes de pares e não só, o cultivo de uma visão não puramente paroquial da contemporaneidade, um sentido de responsabilidade para com a natureza e o desenvolvimento do senso crítico.

A partir do momento em que reconhecemos a geração – pela economia social – de valor público e privado, individual e coletivo, a partilha de custos também é legitimada como critério norteador deste sistema. O Brasil possui um esquema poderoso que envolve diversas fontes estatais e privadas e dezenas de instrumentos para alocar recursos a instituições e estudantes.

A operação deste esquema misto apresenta resultados. A qualidade das nossas instituições de ensino superior melhorou. Nossa pesquisa acadêmica, apesar da escassez de recursos, apresenta nível positivo de produtividade e impacto. Além disso, uma parte substancial está orientada para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Ao mesmo tempo, nosso sistema ainda goza de saúde financeira e a proporção de matrículas encontradas em instituições com perfis de risco é baixa. Entretanto, isso já não se pode dizer do ensino infantil, do pré-escolar e de toda a educação básica.

Ainda assim, existem questões críticas que precisam ser abordadas. A falta de uma Política Nacional de Educação Superior associada a uma concepção do gratuito, combinada com a regulação do MEC e afins estaduais, cria pressões onerosas sobre as instituições e dificulta o seu desenvolvimento. O sistema de garantia de qualidade aumenta os custos das funções institucionais sem que sejam disponibilizados recursos para esse fim. Os gastos com P&D são muito baixos – um dos mais baixos entre os países da OCDE – intensificando a competição entre pesquisadores, disciplinas, núcleos e áreas de conhecimento.

Também o atual regime de créditos estudantis, dos quais o PROUNI e FIES são peças, já deveria ter sido modificado há muito tempo. É insustentável, mas segue funcionando devido à falta de clareza diagnóstica. É urgente desfazer este nó, incluindo o não pagamento e as dívidas acumuladas, e criar um esquema de crédito – ou outro de manutenção de custos – para estabelecermos uma política de financiamento sustentável para o ensino superior.

 

22 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

sábado, 17 de agosto de 2024

SÉRIE ESTUDOS - DISCIPLINA NA HIPERMODERNIDADE


Propósito Educacional

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os debates sobre os problemas e dificuldades mais imediatas da educação geralmente adiam a discussão substantiva sobre o seu propósito nas atuais circunstâncias históricas. No entanto, ambos os planos estão intimamente relacionados entre si.

As principais questões preocupantes em relação à educação hoje no Brasil – como controlar a violência escolar, melhorar o desempenho acadêmico, alcançar maior equidade e garantir uma melhor coexistência – estão efetivamente ligadas ao propósito educativo das sociedades contemporâneas. Qual é esse propósito? Em suma: qualificar as pessoas com as competências e conhecimentos necessários para uma vida produtiva, integrá-las no mundo das normas e valores típicos da coexistência em sociedades diversas e em mudança, e dotá-las de capacidades para agir de forma responsável. Historicamente, a educação aparece – juntamente com a lei, entre outras expressões da civilização – como um meio poderoso para debelar a agressividade social e socializar os indivíduos nos valores comunitários. Ensina, portanto, como conviver, como autorregular os impulsos destrutivos e como reconhecer a diversidade. Implica aprender que qualquer ordem baseada na liberdade das pessoas significa também submeter-se às regras, às disciplinas e às disposições das autoridades democraticamente legítimas em todas as dimensões da vida individual e coletiva.

É fato, porém, que esta finalidade educativa está hoje comprometida e a sua materialização é dificultada por fatores de natureza muito díspares.

No que diz respeito ao contexto social externo, a educação – institucional e não só formal – desenvolve-se em condições adversas. Os níveis de agressividade social aumentam, o crime se espalha e se torna mais organizado, são inúmeras as tecnologias que facilitam as ações criminosas. Pelo contrário, as comunidades sofrem erosão na sua coesão, os laços sociais são enfraquecidos, as âncoras tradicionais de existência desaparecem e os Estados enfrentam dificuldades crescentes em manter e exercer uma vida cidadã.

Por sua vez, no contexto interno e intersubjetivo das pessoas, onde a finalidade educacional busca refletir objetivos e valores culturais que fazem parte do autocontrole e autogoverno das pessoas, sua disposição de viver uma vida com sentido, tal propósito esbarra na perda de sentido dos valores (niilismo), na incapacidade de lidar com os desejos e impulsos e na ausência de normas sociais ou na sua degradação (anomia).

A crise da autoridade da docência desempenha um papel fundamental neste contexto, uma vez que dela depende a realização de qualquer propósito educacional. No entanto, hoje esta autoridade está localizada no ponto preciso onde se juntam um contexto social externo deteriorado e um contexto intersubjetivo interno danificado.

A chamada crise de autoridade da docência não é, portanto, um problema técnico, ou de mera disfuncionalidade ou perda de eficácia. Pelo contrário, é reflexo de uma profunda alteração cultural, relacionada com a secularização radical da vida. Desde Durkheim, esta circunstância – o colapso do sentido de autoridade legítima – tem sido diagnosticada como um mal-estar cultural.

Estas são, então, as razões fundamentais por detrás das atuais preocupações sobre a mitigação e a tão desejada erradicação da violência e a necessidade de melhorar a coexistência escolar.

Poder-se-ia pensar que as outras duas preocupações – desempenho acadêmico e equidade – são mais conhecidas e, portanto, também seriam mais fáceis de processar; isto é, ser diretamente atendido por políticas públicas apropriadas.

Bem, as políticas testadas em ambas as áreas – desempenho e equidade – produzem apenas um progresso limitado e têm uma maturação lenta. O que provoca frustração, desilusão e exasperação crescente com tais políticas, qualquer que seja a sua orientação.

Superficialmente, aparecem invariavelmente como dois lados da mesma moeda: melhorar a aprendizagem e distribuí-la de forma mais equitativa. Em essência, eles apontam, de fato, para uma causalidade idêntica. O desempenho acadêmico é desigual porque as trajetórias dos corpos discentes são desiguais. Essa trajetória desde tenra idade impacta em grande medida os desenlaces das pessoas.

Intersubjetivamente, esta percepção social afeta, sobretudo, moças e rapazes e jovens de lares com dotações desiguais de capital econômico, social e cultural. Desde cedo, eles vivenciam as diferenças de classe como uma ferida oculta como mostrou Richard Senett; uma desvantagem avilta, uma exclusão injustificada que afeta as motivações, a autoconfiança, as expectativas e os projetos de vida. Se tais sintomas não forem abordados precocemente, atenuados e enfrentados, o sistema escolar acaba por reproduzi-los, instalando uma espiral de desvantagens, que não são resolvidos com um pé de meia furada.

Em tais circunstâncias, a própria noção de aptidão e os seus pressupostos comportamentais – esforço pessoal e perseverança – dissipam-se no ar. Os fundamentos da coexistência civilizada enfraquecem e/ou desaparecem; não só na escola. Isto é especialmente verdade no quadro de uma hipermodernidade como ilustra Marco Aurélio Nogueira em A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto (Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2023) que promete e eleva, como horizonte cultural, a igualdade de direitos e dignidade das pessoas, a distribuição merecida de oportunidades e o reconhecimento do esforço pessoal como única fonte de diferenciação legítima das trajetórias de vida.

Todo o quadro das sociedades democráticas hipermodernas é, portanto, apoiado por um propósito educativo que está em constante tensão com contextos de condições objetivas e subjetivas que dificultam a sua realização. Se estes condicionantes não forem erradicados, o objetivo educativo – promover a paz e a justiça social numa coexistência civilizada – não poderá ser alcançado.

 

11 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.

domingo, 4 de agosto de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 055 - AGOSTO E ILIBERALISMO

A Venezuela & Nós

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Conheci vários venezuelanos e venezuelanas migrantes em outubro de 2021, por conta da conferência livre organizada pela Escola Estadual Fazenda Paraíso, em Espera Feliz, numa etapa preparatória para a construção do 1º Plano Estadual de Políticas Públicas para Refugiados, Migrantes, Apátridas e Retornados de Minas Gerais. Foi uma iniciativa cidadã muito impressionante.

Para um carioca acostumado ao frenesi metropolitano, participar daquele evento democrático naquela cidade foi como estar ao vivo em um filme de Nelson Pereira dos Santos.

Os anos de grande crescimento econômico para a Venezuela já eram coisas de um passado longínquo. A Caracas que ostentará arranha-céus urbanos que se cruzavam de forma caprichosa não existe mais.

A crise do petróleo da década de 1970 transformou a Venezuela num dos países mais ricos da América. A queda deste boom em 1983 levou a uma crise econômica prolongada, mas tanto durante os anos de auge como nos anos magros foram realizadas reformas econômicas e sociais, enfrentou-se a guerrilha de inspiração cubana nos anos 1960 até conseguir sua desmobilização nos anos 1970, tendo resistido à onda de ditaduras militares da América do Sul, tornando-se um oásis de refúgio e liberdade para muitos migrantes, ao mesmo tempo que não houve capacidade de evitar a corrupção generalizada durante os bons tempos e o aumento do crime e da violência nos tempos difíceis.

Embora no seu conjunto tenham sido anos de progresso, a distribuição medíocre levou a um crescimento do descontentamento que culminou em protestos sociais que deixaram uma marca profunda com o "Caracaço" de 1989. Isto desencadeou o ativismo militar e uma tentativa de golpe de Estado em 1992, chefiado por um tenente-coronel com tendências revolucionárias e devoto de Fidel Castro, para quem a continuidade das instituições democráticas não tinha valor. Seu nome era Hugo Chávez.

Fracassado o golpe, Chávez construiu um caminho eleitoral entendendo que só chegaria ao poder por esses meios e conseguiu isso em 1999. Os mesmos setores democráticos que haviam caído em desuso pensavam que talvez no governo Chávez avançassem em direção ao progresso democrático, mas os seus planos eram outros, movia-se com astúcia e habilidade, tinha a maioria dos votos e o apoio das armas, a sua revolução levaria o enigmático nome de Socialismo do século XXI, enigma que levou para o túmulo, mas isso significou desmantelar a democracia a partir de dentro do poder.

Como é habitual nas aventuras de reconstrução, a primeira coisa que fez foi aprovar por referendo a mudança do nome do país com uma visão ao mesmo tempo nacionalista e com uma estranha ideia de Bolívar, instituindo a República Bolivariana da Venezuela.

Nacionalizou indústrias-chave e com a nova bonança do petróleo realizou mobilizações sociais, minou as instituições democráticas e fez melhorias sociais, atacou histrionicamente os EUA em nome de um anti-imperialismo anacrônico. Ele desenvolveu um apoio maternal a uma Cuba que mal respirava e fez da Rússia, da China e do Irã os seus interlocutores favoritos no mundo.

Na América, ele estendeu um apostolado do petróleo e apoiou tendências semelhantes às suas em vários países que, em graus variados, abraçaram o seu bolivarianismo. Na verdade, nenhum deles se saiu bem e o fracasso os uniu mais do que a revolução.

Na Venezuela, os processos eleitorais tornaram-se cada vez mais suspeitos e a economia foi pelo ralo. Sete milhões de venezuelanas e venezuelanos fugiram para o estrangeiro, incluindo grupos criminosos, dada a carência e pobreza do mercado interno. A corrupção regressou ao seu auge, desta vez nas mãos de novos grupos civis e militares.

O autoritarismo aprofundou-se e as violações dos direitos humanos aumentaram.

Quando Chávez morreu, foi sucedido por Nicolás Maduro, o seu homem de confiança, agressivo, com insultos fáceis e um olhar de peixe morto, sem a sua astúcia nem seu carisma, com um pensamento tacanho, que venceu uma eleição muito apertada.

Dedicou-se a diminuir qualquer brecha democrática, terminou de consolidar a ditadura, mas não conseguiu suprimir, porém, a trajetória eleitoral com que chegou ao poder. A oposição foi reprimida, presa e espancada, mas continuou a existir para além de todos os obstáculos e abusos.

Foi assim que aconteceram as eleições de domingo passado, nas quais a oposição, contra todas as probabilidades, o enfrentou, apoiando um homem decente como candidato substituto do líder banido.

Já sabemos o que aconteceu, um manto de abusos, manobras, imprecisões e ameaças parece ter transformado uma ampla vitória da oposição numa vitória fantasiosa do governo em que nem eles acreditam. Tudo indica que os números fornecidos por seu governo que nunca fala a verdade correspondem a uma ação fraudulenta que ficará na história da antidemocracia. Nenhum país democrático, sob qualquer forma, concordou com esses absurdos, nem mesmo o Brasil, e devemo-nos sentir orgulhosos disso.

Num mundo tão polarizado, onde as tendências autoritárias seguem a crescer e a proteger os seus pares, o regresso da democracia na Venezuela enfrenta um caminho difícil porque o despotismo não vê futuro fora do poder, mas muito foi construído para baixar as armas agora. É preciso comprovar o saque, mesmo sob ameaça.

Uma questão que não pode ser evitada surge neste momento e é válida também para nós no Brasil: é possível, é correto, é consistente, é aceitável que aqueles que formaram sinceramente a Frente Democrática vitoriosa em 2022 possam caminhar de braços dados com aqueles que são solidários com a barbárie antidemocrática? Não estou falando de coincidências específicas que são a essência da práxis política, estou me referindo a uma construção estratégica duradoura.

Está claro que em algum momento isso deverá exigir reflexão, esse emparelhamento pode dar frutos imediatos nas eleições de 2024, mas sempre leva a um emaranhado mefistofélico, que leva à perda da alma.

 

3 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.