terça-feira, 10 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 059 - DECIFRANDO O FUTURO DO PRETÉRITO MUNDIAL

Ainda estamos aqui

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Prússia que unificou os estados alemães no século XIX, tinha um carácter forte que se refletia na expressão dura do seu rosto, mas ao mesmo tempo possuía grande pragmatismo, algum cinismo e sentido de humor.

Christopher M. Clark confirma o personagem como o criador de inúmeras imagens linguísticas e uma delas é a que atribui aos EUA o seguinte: “A graça de Deus tem um lugar especial em seu coração para proteger os bêbados, os loucos e os Estados Unidos da América”.

A despeito de tudo, pode-se dizer que alguma razão há, porque à medida que se aproximava a próxima eleição presidencial em novembro, que os anos alcançaram o mandatário Joe Biden, que, enfraquecido pelo peso da idade, tomado por lapsos de toda sorte, parecia incapaz de encarnar a esperança no futuro, apesar do exercício quase findo de uma boa presidência, com mais virtudes do que erros, com decência e dignidade. Trump, até então seu adversário que nada tem de um lírio, que comete erros não forçados com uma alta frequência (na verdade não se sabe se são produto da idade ou da sua ignorância), parecia mais forte e vigoroso, brincava de gato e rato com Biden, sem piedade, com insultos e sarcasmos, usando apelidos infantis, como destacou Obama, e desfilava seguro da sua vitória, acentuando com desdém a sua mensagem reacionária, ameaçadora e exclusiva.

Mas um acontecimento mudou tudo: a desistência de Biden à nomeação democrata e o empoderamento quase instantâneo de uma mulher que demonstrou uma capacidade notável, Kamala Harris. Em poucos dias transformou-se numa esperança no futuro, com inteligência e graça e com uma firmeza civilizada que abriu uma ilusão não só para os EUA, mas para todos os democratas do mundo que enfrentam com angústia o futuro da um mundo turbulento e inseguro, perigoso, com duas guerras em curso, nas quais se fortalecem posições autoritárias e violentas.

O perigo de que um personagem como Trump, que de fato mostrou o seu desprezo pela alternância democrática, volte a liderar a principal potência mundial não está, no entanto, evitado. Vivemos tempos voláteis, de mudanças aceleradas, em que muitos setores sociais se percebem, com razão, como excluídos e florescem os demagogos e as suas promessas simplistas como acontece também nas nossas eleições municipais. As corridas eleitorais são estreitas e difíceis.

Alexis de Tocqueville, o grande analista francês do alvorecer dos EUA, destacou que “é mais fácil para o mundo aceitar uma simples mentira do que uma verdade complexa”.

Mas isto não é inevitável como parecia há apenas algumas semanas. Os números mudaram, as frases bélicas foram atenuadas e renasceu o entusiasmo de quem não insulta, raciocina e não considera o adversário um inimigo.

O sorriso largo de Kamala e as suas propostas destinadas a combinar mais liberdade, mais pluralismo e mais igualdade iluminaram uma perspectiva sombria para a democracia. A diferença entre as vozes racionais e humanistas que os rodeiam e a face taciturna de um messianismo brutal apresentado por Trump e pelos seus seguidores é enorme. Não está totalmente claro se ele mudará a sua estratégia eleitoral, mas não lhe será fácil encarnar uma personagem com fins intelectuais mais refinados.

Os resultados dessas eleições não serão estranhos ao nosso futuro.

Vivemos tempos difíceis, com um grande abismo entre os avanços científicos e tecnológicos no mundo instrumental e a capacidade de convivência pacífica que gere uma humanidade melhor e um planeta sustentável e civilizado no mundo normativo.

Nem Zygmunt Bauman se enganou quando falou de tempos líquidos, nem Ulrich Beck quando falou da sociedade de risco, só que na atual desordem geopolítica a liquidez, a volatilidade, a desigualdade e o risco tornam-se cada vez mais difíceis de gerir. A atual fragmentação económica torna o mundo mais inóspito, as diferenças mais irredutíveis, a violência maior e torna-se cada vez mais difícil conviver.


A política e especialmente o sistema político democrático, que recordemos mais uma vez, não é majoritário no mundo, exige cada vez mais esforço para que os seus valores sobrevivam e se adaptem aos novos desafios que mudarão radicalmente o nosso modo de vida.

Se isto não for alcançado, a tentação autoritária crescerá, os sujeitos políticos tenderão a desaparecer e as identidades fechadas, os fanatismos e finalmente as guerras florescerão. A coexistência baseada numa démarche civilizacional com valores partilhados será restringida.

Já temos Scrooge’s de todas as cores no poder, não precisamos de mais Putins, mais Netanyahus, mais Khameneies, mais Orbán, mais Erdogans, mais Maduros, mais Bukeles ou mais Ortegas, só para citar alguns.

Neste contexto, é muito importante que no Brasil não percamos uma visão realista e ponderada do que avançamos e alcançamos como país, bem como dos problemas e desafios que enfrentamos, evitando percepções simplistas ou fanáticas e ideias cruas.

Para enfrentar os problemas e desafios de hoje e de amanhã, todos precisamos uns dos outros. Há mais de dez anos cometemos demasiados erros e enganos, o que nos levou à estagnação. Só a Frente Democrática nos impediu de nos afundarmos numa segunda mediocridade em 2022.

Precisamos seguir o caminho de agora significativamente e urgentemente combater eficazmente o crime organizado e globalizado, fortalecer a nossa democracia através de um adversário construtivo, que combina com o debate e a crítica bem como uma procura sincera de acordos. Só assim o Brasil seguirá o caminho que o levou ao G8, G20 e a COP30.

Não são tempos de mesquinhez e de brigas, esperamos que todos os partidos de orientação democrática, sejam de esquerda, de centro ou de direita, para além da competição eleitoral, compreendam que um desacordo infundado permanente e o mau humor degradam a vida democrática e só favorecem, como bem sabemos, a cultura autocrática de vários matizes.

 

9 de setembro de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

Um comentário:

José Bezerra de Oliveira disse...

Joe Biden não desistiu: deram um golpe no velho. Obama foi o líder.