sexta-feira, 12 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 048 - MULHERES NA POLÍTICA

A primeira-dama Laura Bush e a Sra. Michelle Obama sentam-se na residência privada da Casa Branca na segunda-feira, 10 de novembro de 2008, depois que o presidente eleito e a Sra. Obama chegaram para uma visita. Foto da Casa Branca por Joyce N. Boghosian.

Mrs. Obama e a bengala de seu pai

Vagner Gomes de Souza[1]

 

“Não o conflito violento entre partes da verdade, mas a supressão silenciosa de metade dela é o mal formidável: há sempre esperança quando as pessoas são forçadas a ouvir ambos os lados; É quando atendem apenas a um que os erros se endurecem em preconceitos, e a própria verdade deixa de ter o efeito de verdade, por ser exagerada em falsidade. E como há poucos atributos mentais mais raros do que aquela faculdade judicial que pode sentar-se em juízo inteligente entre dois lados de uma questão, dos quais apenas um é representado por um advogado diante dela, a verdade não tem chance senão na proporção que cada lado dela, toda opinião que incorpora qualquer fração da verdade, não só encontra advogados, mas é tão defendido que deve ser ouvido. Reconhecemos agora a necessidade para o bem-estar mental da humanidade (do qual dependem todos os outros outros bem-estar) da liberdade de opinião e da liberdade de expressão de opinião (...)”

John Stuart Mill -  On Liberty, p. 60.

 

O nome Michelle ganha uma diversidade de conotações políticas no mundo político brasileiro diante dos limites da leitura da análise de conjuntura. O tema da tolerância definida por John Stuart Mill em seu clássico livro On Liberty colocaria a versão brasileira como a grande força de um movimento de empreendedorismo como forma de empoderamento feminino. A circulação livre do pensamento num “mercado de ideias” sob o ponto de vista de uma identidade nacional e com viés religioso. Os atributos de uma tolerância que não implica em mais democracia, porém nos atentemos que essa leitura americanizada e autônoma observou no perfil de muitas expressões de candidaturas identificadas com o campo progressista.

O liberalismo político muito se expandiu nesse mundo globalizado, porém digamos que dos princípios de uma luta pela tolerância enunciadas por Locke a muito dos desafios apresentados por Hobbes. Não nos esqueçamos de também que Mill escreveu um ensaio entre os pioneiros na luta pelos direitos das mulheres (A Sujeição das Mulheres) pouco conhecido por aqueles que se enjaulam nas opiniões simplistas. A força das mulheres na política é um impacto que se deve mensurar diante dos desafios da Democracia uma vez que muitas lideranças políticas femininas desde a Senhora Thatcher assumiram esse legado distante do compromisso com o reformismo social mesmo que alimentasse o reformismo societal de costumes.

Em suas notas sobre o americanismo e o fordismo, Gramsci se atentou em relação aos aspectos da questão sexual. Segundo o pensador sardo, “a função econômica da reprodução: ela não é apenas um fato geral, que interessa à sociedade em seu conjunto, para a qual é necessária uma determinada proporção entre diversas idades tendo em vista a produção e a manutenção da parte passiva da população (passiva em sentido normal, por idade, por invalidez, etc.), mas é também um fato ‘molecular’, interior aos menores aglomerados econômicos, como a família.”[2] Desde o Manifesto de 1848, a leitura marxista sobre esse tema que não nos seria estranha em enunciar os novos sujeitos da sociedade em distinção aos movimentos de natureza reacionária como observamos na gestão italiana de Georgia Meloni.

Portanto, os tempos políticos de incertezas nos permitem a afirmar que nenhuma postulação política está consolidada com antecedência diante da emergência de um eleitor-vigilante que se alimenta da denúncia para se fazer ativo na política. Toda reeleição legislativa (vejam os exemplos recentes de eleições legislativas em Portugal, parlamento da União Europeia, Inglaterra e França) é um grande desafio na política contemporânea o que fez muitos parlamentares democratas irem ao desespero diante das falas do presidente Joe Biden na sua insistência em disputar a reeleição diante de uma candidatura negacionista do bom senso da política democrática.

O tempo urge por uma saída honrosa para as forças democráticas norte-americanas. Há um silêncio respeitoso sobre a Senhora Obama uma vez que a tarefa é árdua para um partido que se deixou contaminar por uma individualização dos sujeitos excessiva. Todavia a percepção de Michelle Obama sobre Laura Bush desde a visita da Casa Branca na transição é um primor para aqueles que desejam defender a tolerância contra as nuvens cinzentas da invasão do Capitólio e suas derivações. A grandeza política dela se observa tanto em Minha História quanto em A Luz que nos Ilumina: Superação em tempos incertos livros de memórias comparáveis às memórias tocquevillianas, porém poucas lideranças políticas aprenderam com a leitura da ex-primeira dama que na introdução de seu livro de 2022 menciona o desafio de seu pai em dar seus passos na vida com o uso de uma bengala. A lembrança da “bengala” do pai de Obama é um pouco do que se espera de novos rumos a se dar em trajetórias políticas aqui em alhures. Desde que tenhamos sanidade na política.



[1] Doutorando em Ciência Política na UNIRIO na área Comportamento Político e Eleitoral.

[2] Gramsci, Antonio – Cadernos do Cárcere, volume 4. Edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 251.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 047 - O Sardo de Sassari e o Comportamento Político dos Democratas

Paixão pelo Possível

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

A compostura política não deve ser confundida com a social, que, embora aparente ser menos importante para o futuro das sociedades, carrega um papel sobejo. A compostura social refere-se às regras de boas maneiras, à ideia de bom gosto e às normas de comportamento social que começam a ser estabelecidas no século XV e que são bem descritas pelo mestre da história dos costumes Norbert Elías (1897-1990) e às quais o grande filósofo Erasmo de Rotterdam (1466-1536), que deixando fluir por um momento seu grande gênio, dedicou em 1530 um pequeno livro que fez muito sucesso a época, De civilitate morum puerilium (Da civilidade pueril), um livro curioso e divertido aos nosso olhos, em que desenvolve o conceito de civilidade também caro ao saudoso Emmanuel Le Roy Ladurie (1920-2023), um conjunto de bons costumes válido para se comportar na vida e que opera para toda a sociedade.

Nesse livro, ele aponta, entre outras coisas, preocupações específicas sobre o muco nasal e a forma como ele deve ser removido. Afirma que não é correto se jogar ele ao leu e muito menos colocar as mãos na comida a torto e a direita.

A compostura política é algo diferente, é uma questão que apela à substância e à forma, ao método como parte inseparável do conteúdo da política democrática. Consiste numa forma de comportamento, num estilo, num tom que reforça na ação política a procura de um caminho reflexivo para liderar a pólis que procura os caminhos dos compromissos e acordos históricos, que aproximam visões avessas a polarizar posições conflituosas, que tentam alcançar o apoio do cidadão, pois deseja proclamar as virtudes dessas propostas.

Procura soluções possíveis que sejam aceitáveis ​​para grandes maiorias e procura olhar o adversário distante do conceito-relação amigo-inimigo, em que o inimigo deve ser destruído.

A compostura política implica decência e decoro nos métodos a utilizar, moderação na linguagem, e descarta a estridência e o insulto, ao desejar fortalecer não só as posições que defende, mas ao mesmo tempo a vida democrática como um todo, protegê-la do declínio, das brigas que reinam nos sistemas políticos decadentes, que acabam por incentivar o surgimento como uma pandemia de ideias rudes e autoritárias que se propõem a estabelecer a ordem a todo custo, mesmo quando há direitos e liberdades pisoteados.


Este tom, este estilo, não significa renunciar as convicções e a objetivos e metas ousados ​​e necessários, não devem corresponder a uma posição política fraca e vazia, mas procura os seus objetivos de forma serena, gradual, comedida, sem pretender possuir verdades absolutas, mas com ouvidos abertos aos outros, a quem pensa diferente e age de forma ponderada e ajustada às circunstâncias, ao tempo e ao lugar.

Isso não significa que aqueles que a praticam como o recém-empossado primeiro-ministro do Reino Unido Keir Starmer do Partido Trabalhista não tenham temperamento e sangue nas veias, mas sim que tenham uma capacidade de autocontrole que é sempre útil para qualquer pessoa, mas é essencial para um líder que aspira a liderança dirigir os destinos de um país, competindo em um sistema pluralista e diversificado.

Há poucos dias completaram-se quarenta anos do falecimento, em 11 de junho, de Enrico Berlinguer (1922-1984), secretário-geral do Partido Comunista Italiano, ocorrida no meio de uma manifestação, dramaticamente devido a um acidente vascular cerebral durante um discurso. Berlinguer liderou o maior Partido Comunista do Ocidente naqueles anos e realizou uma transformação gradual da sua tradição histórica e teórica, conduzindo-o a um horizonte democrático e reformador. Ele nunca liderou um governo, mas para o seu funeral a Itália rendeu todas as honrarias de chefe de Estado, com apoiantes e adversários homenagearam-no, mesmo os mais ferozes, houve um sentimento de perda não só política, mas cultural, ele deixou uma marca profunda por ter ajudado a Itália a passar por momentos infelizes durante o recomeço da democracia.

Anos depois de sua partida, o partido que contribuiu poderosamente para mudar deu origem, juntamente com outras tradições políticas progressistas, ao atual Partido Democrático, que nas últimas eleições europeias alcançou 24,8% dos votos, sendo o segundo partido em Itália, uma enorme garantia democrática em tempos de ascensão da extrema direita e de tendências iliberais.

Sandro Pertini (Presidente da Itália e filiado ao Partido Socialista) no velório de Berlinguer

Algumas de suas ideias não duraram, mas sua figura permanece sendo muito respeitada mesmo entre as novas gerações. Nestes quarenta anos perdurou um respeito, um apreço e até uma reverência que percorre todo o arco político, as mais diferentes posições e de muitos cidadãos afastados da política.

Berlinguer faz falta porque ele incorporava com impressionante precisão o que tememos que a nossa comunidade planetária possa perder: a compostura. A capacidade de manter um estilo público e uma respeitabilidade em seu cotidiano que não pode ser apagada pelos acontecimentos, como se entre os deveres de um líder, estivesse o de demonstrar, não como algo menor, mesmo nas mais duras e dramáticas tempestades políticas um estilo.

Um estilo de decência, austeridade e altivez em todas as suas batalhas desde a libertação da Itália, quando era muito jovem, até à sua morte demasiada precoce.

Afinal, foi essa a marca que ele deixou, algo humano, corajoso e que transpirava brandura. Muito poucos políticos sobrevivem a um respeito profundo, duradouro e horizontal pela sua compostura política. Berlinguer não é o único, claro, e há outros de diversas tendências políticas, mas são poucos.

Estamos próximos ao início de um período eleitoral que pode fortalecer ou enfraquecer a nossa democracia, que apesar da sua resiliência e resistência não nos encontramos no melhor momento, a atmosfera existente e o nível dos debates são mesquinhos e dolorosos.

Não será hora de refletir sobre o tom, o estilo e o método de ação política? Talvez esta reflexão nos ajude a abandonar como fez em uma semana a França, ao pôr de lado as visões extremas, os interesses particulares que por vezes parecem ocupar a maior parte do espaço público e a regressar, pouco a pouco, ao caminho do bem comum.

 

7 de julho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

domingo, 7 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 046 - FRANÇA APÓS O SEGUNDO TURNO

ARQUIVO. Emmanuel Macron e Jean-Luc Mélenchon após encontro no Eliseu em 21 de novembro de 2017. AFP/Ludovic Marin

Croissant com Pão de Queijo

Vagner Gomes de Souza[1]

screver no “calor da hora” em que se faz a contagem dos números de assentos das eleições legislativas francesas é uma lição para aqueles que gostam de exercer a análise de conjuntura. Em 72 horas, o Labour Party (após mais de uma década no isolamento do “culto a identidade” de uma nostalgia com temperos pós-modernos) renasceu como se fosse fênix numa vitória eleitoral com um programa “saquarema” (centralizador nas decisões políticas) para enfrentar o desafio de uma Inglaterra pós-Brexit.

Tamanho resultado deve ter movido às decisões de uma juventude globalizada e liberal a ir as urnas na França. A costura da “grande política” se fez pela via da renúncia de nomes em favor de quem estivesse em condições de vencer a candidatura da extrema-direita. Havia uma aposta das forças do populismo reacionário de que a abstenção seria sua vantagem diante da expectativa de um eleitor de esquerda que não votaria numa candidatura pró-Macron. Todavia, os avanços da desconfiança na legitimidade democrática não foram suficientes diante do desafio de evitar um “mal maior”. Assim, os sucessores da Frente Nacional em aliança com os herdeiros de uma “centro direita” prisioneira do extremismo acabaram em terceiro lugar no número de assentos.

Contagem por contagem e ainda temos muito que dizer sobre a força desse coração (como o gosto pelo croissant francês) de liberdade que se fez contra uma “tirania da multidão”. A multidão dos descontentes com o “sistema”, mas que se alimenta de um sistema de vantagens econômicas. Podemos apresentar como teoria política que a Frente Democrática é mais do que uma “tática eleitoral” no mundo contemporâneo para se transformar numa estratégia política para uma longa duração. Ela é a única via possível para enfrentar os dilemas de uma democracia desafiada diante das grandes ameaças desse mundo globalizado.

Muito “pé no chão” é necessário para aqueles que vaticinam a vitória de uma esquerda unida como se fosse uma réplica do Chile de Allende. O desafio mundial é de outra natureza uma vez que não temos mais uma polaridade da Guerra Fria a qual a “candidatura zumbi” dos democratas norte-americanos se fixou numa trajetória que exige uma revisão. A multipolaridade existe e muito temos visto de possibilidades até numa vitória reformista no Irã. O reformismo sem revolução é a lição de que a “revolução passiva”, nunca compreendida pelos leitores de manual de Gramsci, ainda é o fantasma que ronda o mundo para sermos excessivamente otimistas.

A Nova Frente Popular chegou aonde chegou pela aliança democrática defendida pelo atual Presidente da França. E o partido de Macron chegou em segundo lugar porque soube fazer “pontes” políticas. O imaginário se fez realidade diante da eminente crise de lideranças políticas. Logo, os nomes devem sempre ficar em segundo plano diante de termos um desafio programático que é trazer para o “centro” muitos eleitores jovens cativados pelo atalho do extremismo de direita. A “revolução-restauração” segue seu curso na chave francesa entre queijos e vinhos como se fosse uma estada chave na política da União Europeia em semelhança ao estado de Minas Gerais na política brasileira.

Todavia, fiquemos em alerta. O Reagrupamento Nacional, por hora, só perdeu nos pênaltis uma vez que ampliou sua bancada na Assembleia Nacional e exercerá a linha política do “povo-vigilante” nos próximos três anos. Em 2027, teremos eleições presidenciais na França após o resultado das eleições no Brasil de Raí que também tem inúmeros Neymars juvenis. A prudência sugerida pelo atual Presidente é muito bem vinda e se aproxima do primeiro pronunciamento do líder da França Insubmissa (Jean-Luc Mélenchon) ao não fazer mais referência a uma fundação da VI República.

Esse é o momento de um nome que faça a “coabitação” num país de um parlamentarismo com um Presidente sempre protagonista (ganha um pôster de Frantz Fanon quem souber o nome do primeiro-ministro de Fraçois Miterrand que virou presidente da República na França). A derrota eleitoral da extrema-direita ainda não se consolidou como derrota política. Da mesma forma que se operaram no Brasil, eles ainda vivem e atuam aguardando as possíveis fraturas da Frente Democrática a francesa para emergir como o “povo juiz” em seus julgamentos morais contra a política.

Momento de saborear a vitória nas urnas com a observação de que um pão de queijo serve como melhor metáfora para uma política equilibrada. Fica a dica aos mineiros para derrotar o “zemismo” nas próximas eleições municipais nos quais os municípios se assemelham aos distritos eleirorais franceses sob o impacto de um “cinturão vermelho” no entorno de Paris. Observemos Betim, Contagem e Sabará se desejamos incendiar novos corações.


[1] Doutorando do PPGCP-UNIRIO 


segunda-feira, 1 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 045 - O PRIMEIRO TURNO NA FRANÇA

Sob o Sol de Paris

Vagner Gomes de Souza[1]

 

O eleitorado francês, como se fosse pegar um velho automóvel para voltar ao passado como no filme “Meia Noite em Paris” (2011), se aproxima de uma acolhida ao populismo da extrema direita. O comparecimento as urnas foi um record como se muitos estivessem por décadas aguardando o melhor momento de se fazer ouvir. A queda da crença nas instituições da República e da Democracia se fizeram através de uma corrosão também pela via liberal progressista em anos de formação de intelectuais jovens dispostos a debater o “biopoder” num grande mosaico de temas que expressam a desconfiança. O eleitor soberano saiu dos ovos da serpente em suas movimentações americanizadas e a “Cidade Luz” vivência tempos nublados.

Na sequência política de uma crítica ao “vigiar e punir”, o povo-eleitor deu lugar ao povo-vigilante, ao povo-veto e povo-juiz segundo o livro A contrademocracia: a política na era da desconfiança de Pierre Rosanvallon. Esse mesmo pensador nos brindou em 1988 com o ainda não traduzido ensaio “Desconforto da representação”[2] em que já apresentava as motivações para a ascensão da Frente Nacional (hoje sob a denominação de Reagrupamento Nacional) de Jean-Marie Le Pen.

“Neste contexto, Jean-Marie Le Pen apareceu como agente de uma espécie de operação catártica; provocou uma ruptura brutal e inoportuna com as convenções, um retorno à linguagem carnal ao ponto de ser violenta. Foi justamente apontado que havia algo de sexual na linguagem política de Jean-Marie Le Pen, aparecendo esta sexualização como o símbolo efetivo de um abraço com a realidade.” (Livre tradução minha)

A percepção de uma juventude francesa desencantada, como nos ensinou pouco lembrado Max Weber na atualidade, não implicou em uma cidadania passiva como se aferiram no alto comparecimento as urnas. O ativismo digital estudado por Marco Aurélio Nogueira em A Democracia Desafiada – recompor a política para um futuro incerto estaria fazendo a “ponte” desses indivíduos soltos. Portanto, o nome Reagrupamento Nacional adotado em 2018 foi um novo momento na permissão de uma aceitação da extrema-direita como protagonista do mundo representativo francês.

Os analistas se silenciam sobre um centrismo gaullista que a ascensão política de Emmanuel Macron legou aos franceses como se fosse uma “revolução”. Em tempos de Trump e Valdimir Putin, esse jovem gestor da administração pública saído do Partido Socialista em crise foi apresentado como uma personalidade que lembraria Bill Clinton e Tony Blair. Entretanto, o “macronismo” foi se aproximando do centrismo liberal do extinto Reagrupamento para a República (RPR). O seu transformismo político se afundou nessa crise centrista enquanto o Partido Socialista se esvaziou de grandes lideranças.

Assim, a antecipação das eleições legislativas feita pelo Presidente da França colocou ao mundo a percepção de que as eleições nacionais seguem uma dinâmica semelhante a tantas outras em que a representação política é questionada pela extrema direita através da prática de um discurso populista que empurra o capitalismo informacional para posturas regressivas nas relações humanas. Mulheres ascendem nesse processo como uma nova dinâmica na formação dessa elite dirigente extremista junto com jovens na faixa etária dos 30 anos, ou seja, aqueles que estavam a engatinhar quando foi adotado o Euro e testemunharam os atentados em Paris. Não podemos nos esquecer do fantasma hobbesiano nas críticas a imigração na França e também nos questionamentos da regulamentação ambiental que permitiu uma reação de agricultores familiares que votaram no Reagrupamento Nacional.

Não há tempo para as lágrimas na ação política pois o sistema eleitoral distrital francês em dois turnos permite a movimentação pela Grande Política. O derrotado eleitoral Macron emerge como um novo Charles De Gaulle ao defender uma “Aliança Democrática” com as forças políticas da Nova Frente Popular (França Insubmissa, Verdes, Socialistas e Comunistas). Se os devaneios de uma “Sexta República” forem superados, os ensinamentos do filme Sob o Sol da Toscana (2003) podem ser fundamentais como no gesto de aceno do personagem idoso com flores (interpretado por Mario Monicelli) nas cenas finais desse filme. Assim, o exército de Brancaleone da Frente Democrática ainda é necessário nos processos eleitorais vindouros.



[1] Doutorando no PPGCP-UNIRIO.

[2] Rosanvallon, Pierre “Malaise dans la représentation” in Furet, François; Julliard, Jacques; Rosanvallon, Pierre – La République du Centre – la fin de l´exception française.  Ed. Calmann-lévy, Paris, 1988.

 

sexta-feira, 28 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 044 - O PRIMEIRO DEBATE TRUMP E BIDEN



Tudo começou com o Afeganistão

Vagner Gomes de Souza[1]

O primeiro debate entre os postulantes as eleições norte-americanas evidenciou a derrota política do programa externo do atual mandatário dos EUA. A sua postura “caduca” diante do mundo Globalizado o faz lembrar os anos da “Guerra Fria” e tudo começou na retirada confusa desse país do Afeganistão. Apesar de constar na plataforma das gestões de Barack Obama, esse processo se deu de forma lenta e gradual. Todavia, ato falho de Joe Biden, o Governo de seu atual opositor assinou um acordo de retirada em fevereiro de 2020. O debate expôs na conta democrata a desorganização acelerada de uma ocupação militar sem a garantia de uma transição democrática. Ficou uma distante lembrança da retirada das forças da antiga URSS que abriu uma longa estrada de atitudes fundamentalistas.

Diante da postura silenciosa e defensiva do postulante democrata, o discurso oposicionista foi ganhando maior força uma vez que mencionou que a retirada confusa do Afeganistão teria sido o sinal da fraqueza norte-americana o que permitiu a organização da Rússia para a ocupação da Ucrânia. De fato, muitas informações são negligenciadas por Donald Trump para se ter uma impressão que a Guerra da Ucrânia seria um evento ahistórico. Contudo, o Biden se colocou numa “sinuca de bico” interpretativo ao trazer ao debate a possibilidade de uma possível ocupação da Polônia que faz parte da OTAN, ou seja, essa investida seria um conflito de grandes consequências ao mundo. Diante da fraqueza em qualificar as ideias de coexistência global para enfrentar a emergência climática, a candidatura democrata se reposicionou como anti-globalização ao mesmo tempo que podemos observar um “trumpismo” preocupado com o fim da liberdade das mulheres afegãs. A fortuna se deixou conduzir pela “virtú” como nos ensinou o pensador florentino.

As vésperas das eleições legislativas na França e Inglaterra, o debate de Atlanta foi um sinal temeroso para as forças democráticas no mundo. Vemos os sinais da gradual aceitação do eleitor jovem francês pelo programa político da extrema-direita francesa. Anos de contrademocracia de Macron deu margem para esse perigo eminente enquanto uma Nova Frente Popular se formula num mosaico de posturas políticas americanizadas na sequência da aplicação na política do “Biopoder”. Por outro lado, a possibilidade da vitória trabalhista na Inglaterra nos faz pensar na máxima do segundo reinado brasileiro que dizia “Nada se assemelha mais a um ‘Saquarema’ do que um ‘Luzia’ no poder”. Tenhamos a sensibilidade em acompanhar esses movimentos às vésperas do desfecho das eleições municipais num país continental como o Brasil.

A nossa diversidade nos permite dizer que não podemos nos levar pela “armadilha” da polarização nacional uma vez que os sentimentos locais do eleitor em sua circulação de opiniões, ideias e convicções se faz pela tolerância mediada pelas lideranças locais. O antigo “cabo eleitoral” ainda faz muitos votos no mundo da disputa eleitoral e essa elite dirigente do voto não estaria contaminada pela pauta dos costumes. Um pregador numa pequena igreja neopentecostal num subbairro de Campo Grande (RJ) faz a política da boa vizinhança antes de ser uma simples “correia de transmissão” do bolsonarismo. Digamos que a política local, desde os ensinamentos de Victor Nunes Leal se faz como uma forma de reconhecimento de um sujeito como operador político.

As interpretações de calcificação da polarização da política brasileira impedem que um observador veja que Trump venceu Biden por questionar o “negacionismo” do Presidente Democrata diante do mundo pós-Guerra Fria. Diante dessas considerações ainda temos tempo para que haja um ajuste de rotas nessa campanha norte-americana e que sirva de lição para aqueles que desejam a plenitude da Frente Democrática em nosso país.



[1] Doutorando do PPGCP-UNIRIO

 


BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 043 - DESAFIO DE FAZER POLÍTICA NA ECONOMIA

Inflação na Fronteira

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


No Jornal Hoje do último sábado (22/06/2024) recordei a leitura de um conto da escritora argentina Samanta Schweblin. O título apesar de nada convidativo, “Debaixo da terra” é muito bom. O primeiro parágrafo, curto, introduz-nos sutilmente num clima de mistério: um viajante entra num bar de beira de estrada, isolado e solitário, e dirige-se ao barman. A atmosfera, criada nessas poucas linhas, é sugestivo. O viajante pede uma cerveja. Aparece então a primeira linha do diálogo, pela boca do barman: “São cinco pesos”, disse ele.

Cinco pesos? Inevitavelmente, volto a matéria do jornalista Marcos Landim (https://globoplay.globo.com/v/12699720/) e me pergunto: que cerveja pode valer cinco pesos? Em que ano essa história foi escrita? Sua publicação no seu livro Pássaros na boca e Sete casas vazias: Contos reunidos (Fósforo, São Paulo, 2022) se deu em 2009 e podemos pensar nesse ano, e se o valor fosse esse, e em tudo que ocasionou o aumento da cerveja desde então... E volto a ler o conto com aquele pensamento: a magia da ficção, aquele sonho lúcido de que falava o Nobel de Literatura de 1982 e jornalista colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), foi contaminado e deve ser bem compreendido. Surgiu um vírus sutil: o problema da inflação, que perturba tudo e do qual nem as/os literatas/os nem os leitores estão imunes.

Como a literatura conseguirá imaginar o fluxo de argentinos de Puerto Esperanza e Wanda vindo fazer suas compras de uma cesta básica na cidade brasileira de Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná, sem que isso soe como um ruido ao longo do tempo. Imagino-os atualizando os números a cada ida aos mercados argentinos, considerando a ideia desesperadora de dolarizar seus ganhos, enquanto existe a acolhida brasileira com nossa economia equilibrada a 30 anos.

Porque a literatura argentina, tem tido o espectro da inflação entre outros personagens e/ou pano de fundo do universo econômico, como também se viu no filme de Sebastián Borensztein, A Odisseia dos Tontos (2019), que é fruto de um roteiro adaptado do livro do Eduardo Sacheri, La noche de la usina (2016). Nessa obra inclusive tem o cálculo da mala em que o criminoso do sistema bancário transporta o fruto do seu desfalque dos correntistas que depende não só do valor dele, mas também do valor máximo das notas. Não se pode entregar milhões de pesos num envelope, e daí a mala. Dito de outra forma: você não pode subornar na Argentina e ser discreto. Todas essas questões que afetam a verossimilhança da cena literária e cinematográfica complicam a vida da narrativa. Esse tremendo drama do corralito desgraçou a vida dos giles (os honestos) que tentaram salvar a honra dos seus é quase incompreensível para nós hoje.

A inflação, em todo e qualquer hipótese, sendo um problema grave no panorama literário argentino, tem cada vez mais e piores consequências, que para os fronteiriços conosco tem podido receber o nosso abraço e acolhida. Diversamente, os nãos circunvizinhos vivem a pressão decorrente da inflação com uma psique próxima de O Jogador, de Dostoiévski, onde quantias são mencionadas em todas as páginas e seus valores relativos são muito relevantes para a trama. Ali os personagens apostam, ganham e perdem, pedem emprestados... Fala-se constantemente de dinheiro. A literatura argentina se atrevera a fazer algo assim? São temas complexos que tem implicado inúmeros esclarecimentos e entendimentos. Mas novos também surgem graças à inflação: A Uruguaia (Todavia, São Paulo, 2018), de Pedro Mairal, narra uma trama que tem a ver com câmbio, restrições e uma movimentada viagem ao Uruguai para sacar dólares. A questão, nesta estória, aponta para os leitores: quantos serão capazes de compreender plenamente narrativas como essa?

Com essas ideias e os livros argentinos, podemos voltar a reportagem do Marcos Landim e perceber os semblantes das argentinas e seu alívio em poder contar com uma atmosfera calma para as suas necessárias compras, sem a sombra dos 276% de inflação como informou a pouco o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República Argentina (INDEC).

Que nossos vizinhos encontrem o quanto antes a simetria econômica e saiam desse pavoroso mundo de exageros horrendos.

 

28 de junho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 042 - DESAFIO DA LEITURA

Novo tempo, novas dinâmicas

 

Marcio Junior[1]

 

O contexto econômico global enfrenta um momento adverso e de profundas mudanças, aceleradas pela pandemia de COVID-19. Com a desaceleração econômica global consequente da Emergência de Saúde Pública e as tentativas feitas pelas economias globais de caminharem rumo à recuperação, foi iniciada a absorção e formulação de respostas aos fatores recessivos de curto prazo que a pandemia causou.

Estes fatores de curto prazo tiveram consequências diretamente no mundo do trabalho, sobretudo no emprego juvenil, pois mesmo com a detecção de lentas recuperações no mercado de trabalho em alguns setores, estas estão ocorrendo de forma desigual, com baixa presença ou até mesmo ausência dos mais jovens, que são a faixa etária cuja maior dificuldade de regresso é sintomática da ocorrência de mudanças diferentes das causadas pela pandemia, ou seja, estruturais e de longo prazo.

Estas mudanças, apesar de aceleradas pela pandemia, tiveram início anteriormente a ela. Caracterizadas por fatores como o avanço tecnológico e seus consequentes impactos, pelas mudanças climáticas e pela queda de produtividade associadas ao aumento de formas temporárias de contratação e diminuição de horas semanais trabalhadas, demonstram que as dificuldades relativas ao trabalho (principalmente juvenil) são mais profundas e complexas. As alterações nas estruturas do trabalho no mundo e seus efeitos podem estar ainda no seu início; mas já se demonstram caracterizadas, por conta do avanço da tecnologia digital e da conexão permanente que possibilita a troca progressivamente mais veloz de informações, pelo aumento do ritmo de mudanças em comparação ao passado, exigindo de quem exerce diversos tipos de atividades profissionais um aprendizado constante e novas formações ao longo de toda a vida, desaprendendo habilidades que podem ficar defasadas em curto período de tempo e aprendendo novas.

Este quadro exige, decerto, educação que dê as gerações condições de adaptabilidade e aprendizado constante e, frente a ele, existem dificuldades operativas de repassar conhecimentos básicos necessários para os jovens avançarem efetivamente na vida escolar e transicionarem dela para esta nova vida profissional. Segundo os resultados do Progress in International Reading Literacy Study – PIRLS (Estudo Internacional de Progresso em Leitura), realizada em 2021, cerca de 38,4% dos estudantes do 4º ano do Ensino Fundamental não conseguiam localizar, recuperar e reproduzir informações declaradas explicitamente em textos informativos predominantemente fáceis, o que compromete o aprendizado que virá a seguir, inclusive em outras disciplinas. Dos 57 países participantes, o desempenho do Brasil na escala ficou acima somente do Irã, Jordânia, Egito, Marrocos e África do Sul. A habilidade de ler é decisiva, pois a escrita e a consequente capacidade de compreensão são e será uma das principais fontes pelas quais o indivíduo pode fazer uso de sua capacidade cognitiva para adquirir novos conhecimentos ao longo da vida e não só, e sua deficiência significa uma situação de vulnerabilidade frente aos desafios contemporâneos.


As relações entre as gerações, no âmbito familiar, complexificam o quadro e, se avaliadas, demonstram que ajudam a explicar parte das dificuldades educacionais observadas. Isso significa que a educação das gerações anteriores e a participação delas na formação das gerações posteriores tem um peso significativo, demonstrando que as dificuldades educacionais de uma determinada geração não são explicadas somente por ela mesma. Segundo a mesma pesquisa, cerca de 64% dos alunos da mesma série escolar mencionada anteriormente tinham, em casa, menos de 25 livros, menos de 25 livros infantis, nenhum dos pais tinha escolaridade superior ao ensino médio e não possuíam pequena empresa ou trabalhavam em cargo administrativo ou profissional. Nesse sentido, podemos entender que é improvável, nos domicílios deste conjunto de estudantes, que havia o hábito de ler e que ele fez parte da socialização domiciliar. Mesmo assim, está na percepção dos pais o impacto da pandemia sobre o progresso da aprendizagem: 97% dos estudantes ficaram em casa e, desta proporção, a percepção dos pais foi de que 49% dos estudantes foram um pouco afetados adversamente por ter ficado em casa durante a Emergência, enquanto 37% perceberam o estudante muito afetado.

As consequências podem ser inúmeras e imprevisíveis, mas dentre as possibilidades mais prováveis e já visíveis estão o escoamento de grande número de pessoas das novas gerações, mas não só os jovens, para a informalidade e vulnerabilidade social, além da expressiva perda de capital humano. Em 2023 o Brasil contabilizou cerca de 9 milhões e 600 mil jovens de 15 a 29 anos que não estavam ocupados e não frequentam escola, nem cursos pré-vestibular, técnico de nível médio, normal (magistério) ou qualificação profissional. Somente os jovens de 18 a 24 anos concentram 5 milhões e 300 mil pessoas nesta condição, representando mais de 55% dos jovens de 15 a 29 anos. Mesmo assim, trabalhar com esses dados podem apresentar problemas operacionais: enquanto as mudanças na estrutura do sistema produtivo já levam ao escoamento da força de trabalho para a informalidade, esta não é captada, pois é possível atender a diversos parâmetros que, em tese, “formalizam” o trabalhador sem ele estar nesta condição, como, por exemplo, um pedreiro ou camelô que, ao obterem status de Microempreendedor Individual, possuem CNPJ e contribuem com a Previdência Social e, consequentemente, não são contabilizados estatisticamente como informais, o que dificulta em muito a formulação de diagnósticos e políticas.

Frente às questões cotidianas como greves em nada relacionadas com a educação e com balanço negativo em todos os sentidos (principalmente para os jovens), a sua reconstrução no mundo se mostra um desafio complexo e demorado, que demandará esforço e desenvoltura dos intelectuais comprometidos com ela. Ao longo deste necessário tempo para tal feito, eles ainda existirão?

 



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional da Cedae Saúde.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 041 - FRENTE DEMOCRÁTICA SEM REMAKE

Outros olhos (e armadilhas)

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Agora, passados um mês desde a coletiva em Porto Alegre conduzida pela Presidência da República, talvez seja possível referir-se a ela com um olhar mais sereno do que a qualquer reação mais sanguínea que surgem na cena imediata, e que se espalhou por minutos, horas e até dias depois do que se falou e viu.

Há reações que são dadas como certas, são aqueles que, qualquer que seja a manifestação da Presidência, o acharão com uma magnífica oratória, cheia de espírito de Estado, com equilíbrios justos e precisos, que refletem uma ação de governo impecável e um esplendor na bem compreendida alusão cinematográfica do saudoso Ettore Scola (1931-2016). Outros acharão que é o pior que já ouviram desequilibrado, visando agradar aos seus, míope, face real do seu mau governo e reaproxima o país da catástrofe.

São os gladiadores das corridas de bigas da política (de volta as telas em novembro próximo novamente na lente de Ridley Scott) que não gostam de sutilezas e que preparam as disputas eleitorais que se aproximam nesta parte final do segundo ano do quadriênio governamental.

É claro que há pessoas mais ponderadas no mundo político que não entrarão nesse jogo, especialmente aquelas que não estão localizadas na fantasia da polarização e não caminham por este mundo como portadoras de uma verdade objetiva, permitindo assim que a democracia funcione com os seus dois pés, com adversários (e não inimigos) e buscando os consensos possíveis.

Mas em qualquer hipótese não há necessidade de se alarmar, pois o que é grave acontece em países em que aqueles que não concordam podem estar colocando a sua vida em risco, por vezes de modo letal como aconteceu no Japão em 2022 e a pouco (quase) na Eslováquia.

Aproveitando então o fato de vivermos numa sociedade regida por regras democráticas, com poderes de Estado autônomos, com um sistema de justiça com controles que procuram prevenir o abuso e o desamparo do cidadão, é aconselhável considerar as palavras de Porto Alegre com uma perspectiva secular, ou seja, fora de uma doutrina fechada de apoio ou rejeição.

Assim, as Mensagens Presidenciais são muito diferentes de acordo com os seus governos e seus integrantes e idem as circunstâncias históricas que atravessam. Quando se trata do relato do que foi realizado, é quase impossível evitar uma certa autocomplacência, uma ênfase exagerada na fortuna e uma minimização da virtù, chegando mesmo, em algumas ocasiões, a ser esquecida ou mencionada de forma tão indireta que o permite passar nessa fala da forma mais rápida possível, mas tudo isso é humano, demasiado humano.

Páginas e mais páginas serão escritas sobre tudo isso. Mas delas nasceram várias propostas viáveis ​​e necessárias sobre as questões onde há consenso que requerem ação, seja em relação à seguridade dos cidadãos, às soluções de infraestruturas e habitação, à educação e à saúde que devem ser apreciadas porque podem levar a acordos e ao progresso, mesmo que sejam modestos ou apenas dão os primeiros passos.

Mas é bom destacar o que há de realmente significativo na coletiva de Porto Alegre. Na sua forma e substância havia uma notável oportunidade da mudança de tom. Quanto longe estamos do olhar crítico sobre os descaminhos do quadriênio de 2019 a 2022? Quanto longe estamos da Frente Democrática que oportunizou a vitória na eleição de 2022?  Quanto longe estamos da resposta democrática e republicana dada ao 8 de janeiro de 2023 que desejou nos colocar numa confusão institucional?


Não é pouca coisa na história de um país que este seja capaz de olhar para o abismo em sua beira e regressar à razão através de práticas democráticas e republicanas. Claro que com perdas, com estagnações que aos poucos vão sendo recuperadas, embora ainda estejamos longe de regressar ao caminho daquele desenvolvimento socialmente inclusivo para o qual marchamos nos primeiros vinte anos do regresso à democracia.

Não é justo que não valorizemos este avanço, esta possibilidade de mudança de tom, em nome dos erros cometidos no passado recente.

Há mérito em todos os atores que contribuíram na coletiva de Porto Alegre para esta desejada mudança e, claro, também para a mudança de posições dos que dirigem o governo e que avançaram na compreensão do que significa conduzir um Estado democrático e republicano.

É melhor para aqueles que tenham uma vida política mais longeva pela frente e sejam leais ao rumo do progresso democrático e republicano do que a qualquer nostalgia estragada no percurso da história.

Esta visão secular da coletiva de Porto Alegre talvez coincida com aqueles que colocam a coexistência democrática e a justiça social no coração das suas aspirações e contribuam para pensar sobre como reconstruir um ethos político em que a competição não anule o progresso dos acordos para alcançar um país próspero. O Brasil da equidade, do progresso e não de brigas permanentes de extremos da política, seja da direita ou da esquerda, que só tem sido um fator de infortúnio para o Brasil e o mundo.

 

9 de junho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

terça-feira, 4 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 040 - OS SAQUEREMAS NO BRASIL

Paixão pelo Ensino da História: os 80 anos de Ilmar Rohloff de Mattos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os erros conceituais subjacentes à discussão política atual são péssimos conselheiros quando se tenta caminhos de racionalidade democrática e republicana. Muitos equívocos proliferam em todos os grupos, mas a confusão entre o que significa ser “liberal” e/ou “conservador”, na filosofia política e na práxis histórica, tornou-se um obstáculo importante ao necessário entendimento entre as diferentes correntes.

Parte do problema vem do fato de que muitas vezes parecem ser usados ​​como epítetos e não como conceitos. O Nobel de Literatura de 2010 o peruano Mario Vargas Llosa escreveu que o seu primeiro encontro com estas categorias o levou a acreditar que ser “liberal” era ser libertino; e “conservador” deveria ser “cúmplice de toda a exploração e injustiças de que os pobres do mundo são vítimas”.

São desses equívocos que fazem de figuras como Trump, Bukele e/ou Bolsonaro serem definidos como “conservadores”, e quando pensamos que pensadores como Burke, Tocqueville, Oakeshott e Aron e os nossos próprios Saquaremas, rolariam em seus túmulos e rejeitariam vigorosamente qualquer ancestralidade, no que diz respeito não apenas aos feitos promovidos por esses personagens, mas, ainda mais, no que diz respeito às suas práticas que vilipendiam a política. Porque se há algo que caracteriza o conservadorismo é a moderação e a prudência, que são a conclusão lógica das suas crenças mais profundas.

Como disse certa vez Michael Oakeshott (1901-1990), o conservadorismo não é tanto uma doutrina, mas uma atitude. “Ser conservador significa estar inclinado a pensar e a se comportar de determinada maneira; é preferir certos tipos de comportamento e certas condições das circunstâncias humanas a outros; Eles se resumem na propensão a usar e aproveitar o que está disponível em vez de querer ou procurar outra coisa; deleitar-se com o presente e não com o passado ou o futuro; É ter gratidão adequada pelo que está disponível e, consequentemente, reconhecimento da herança do passado; mas não há idolatria pelo que aconteceu ou passou.”

Ser conservador não exclui a mudança, mas refuta “sacrificar as gerações presentes pelo bem final da humanidade futura”. São céticos em relação aos direitos abstratos; acreditam que as instituições são geradas ao longo do tempo, pela história e pela experiência, e não pela perfeição teórica, e procura um equilíbrio entre a liberdade e a coesão social que advém de uma sociedade civil que faz a mediação entre o indivíduo e o Estado.

O pensamento conservador nasceu com um não ao terror causado na Revolução Francesa; pela violência que gerou e pelas mudanças e transformações abruptas que promoveu em todas as expressões dos acontecimentos.

Entre nós o professor (e nosso orientador) Ilmar Rohloff de Mattos, o recém octogenário, mostrou exemplarmente de que entre nós brasileiros o conservadorismo surgiu numa versão peculiar, precisamente porque nunca tenhamos experimentado esse pathos, ainda que aqui, qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la. E é assim que o eixo divisor entre liberais (Luzias) e conservadores (Saquaremas) brasileiros no século XIX refere-se quase sempre ao papel que uma religião poderia desempenhar numa república cada vez mais secularizada.


Nesse sentido, como mostrou no seu magnum opus O Tempo Saquarema: A formação do estado imperial, nunca existiu uma dicotomia clara entre eles nas suas raízes históricas. Assim, por exemplo, em termos econômicos, pensadores e políticos conservadores, como Visconde do Uruguai e Eusébio de Queiroz, foram os grandes defensores da liberdade econômica; foram também os líderes conservadores que defenderam as liberdades individuais e os direitos liberais clássicos, como a liberdade de associação, a liberdade educacional e o direito de reunião; e foram também os promotores da “questão social”.

O Tempo Saquarema, publicado em 1987 e escrito por um professor da educação básica praticamente desconhecido fora dos círculos restritos da velha e da nova intelectualidade, foi instantaneamente reconhecido como um clássico e se tornou o mais influente livro de história do Império. Essa obra combinou paixão e intelecto, os dons do professor e do analista. Nenhuma de suas obras poderia ter sido escrito por outra pessoa.

Hoje a advertência deixada pelo oitentão no final de O Tempo Saquarema é preciso saber recepcionar: passaram-se muitas décadas, muita coisa nova aconteceu, a situação atual é bastante diferente da do século que viu surgir os Saquaremas mas deixar subverter o conservadorismo em reacionarismo implica que nós não joguemos o bebê fora junto com a água do banho. Do contrário poderíamos perguntar se uma conjunção de “neoliberalismo reacionário” funcionaria como uma base sólida para unir certa direita et caterva?

Se a resposta for afirmativa, talvez seja oportuno recordar outra recomendação do conservador irlandês Edmund Burke (1729-1797): “Quando os homens maus se unem, os homens bons devem associar-se; Caso contrário, eles cairão um por um, sendo sacrificados impiedosamente numa luta desprezível.”

 

2 de junho de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.