Paixão pelo Ensino da
História: os 80 anos de Ilmar Rohloff de Mattos
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Os erros conceituais
subjacentes à discussão política atual são péssimos conselheiros quando se
tenta caminhos de racionalidade democrática e republicana. Muitos equívocos
proliferam em todos os grupos, mas a confusão entre o que significa ser
“liberal” e/ou “conservador”, na filosofia política e na práxis histórica,
tornou-se um obstáculo importante ao necessário entendimento entre as diferentes
correntes.
Parte do problema vem do
fato de que muitas vezes parecem ser usados como epítetos e não como
conceitos. O Nobel de Literatura de 2010 o peruano Mario Vargas Llosa escreveu
que o seu primeiro encontro com estas categorias o levou a acreditar que ser
“liberal” era ser libertino; e “conservador” deveria ser “cúmplice de toda a
exploração e injustiças de que os pobres do mundo são vítimas”.
São desses equívocos que
fazem de figuras como Trump, Bukele e/ou Bolsonaro serem definidos como “conservadores”,
e quando pensamos que pensadores como Burke, Tocqueville, Oakeshott e Aron e os
nossos próprios Saquaremas, rolariam em seus túmulos e rejeitariam
vigorosamente qualquer ancestralidade, no que diz respeito não apenas aos feitos
promovidos por esses personagens, mas, ainda mais, no que diz respeito às suas
práticas que vilipendiam a política. Porque se há algo que caracteriza
o conservadorismo é a moderação e a prudência, que são a conclusão lógica das
suas crenças mais profundas.
Como disse certa vez Michael Oakeshott (1901-1990), o conservadorismo não é
tanto uma doutrina, mas uma atitude. “Ser conservador significa estar inclinado
a pensar e a se comportar de determinada maneira; é preferir certos tipos de
comportamento e certas condições das circunstâncias humanas a outros; Eles se
resumem na propensão a usar e aproveitar o que está disponível em vez de querer
ou procurar outra coisa; deleitar-se com o presente e não com o passado ou o
futuro; É ter gratidão adequada pelo que está disponível e, consequentemente,
reconhecimento da herança do passado; mas não há idolatria pelo que aconteceu
ou passou.”
Ser conservador não exclui
a mudança, mas refuta “sacrificar as gerações presentes pelo bem final da
humanidade futura”. São céticos em relação aos direitos abstratos; acreditam
que as instituições são geradas ao longo do tempo, pela história e pela
experiência, e não pela perfeição teórica, e procura um equilíbrio entre a
liberdade e a coesão social que advém de uma sociedade civil que faz a mediação
entre o indivíduo e o Estado.
O pensamento conservador
nasceu com um não ao terror causado na Revolução Francesa; pela violência que
gerou e pelas mudanças e transformações abruptas que promoveu em todas as
expressões dos acontecimentos.
Entre nós o professor (e nosso
orientador) Ilmar Rohloff de Mattos, o recém octogenário, mostrou
exemplarmente de que entre nós brasileiros o conservadorismo surgiu numa versão
peculiar, precisamente porque nunca tenhamos experimentado esse pathos, ainda
que aqui, qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente
encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la. E é assim que o
eixo divisor entre liberais (Luzias) e conservadores (Saquaremas) brasileiros no
século XIX refere-se quase sempre ao papel que uma religião poderia desempenhar
numa república cada vez mais secularizada.
Nesse sentido, como
mostrou no seu magnum opus O Tempo Saquarema: A formação do estado
imperial, nunca existiu uma dicotomia clara entre eles nas suas raízes
históricas. Assim, por exemplo, em termos econômicos, pensadores e políticos
conservadores, como Visconde do Uruguai e Eusébio de Queiroz, foram os grandes
defensores da liberdade econômica; foram também os líderes conservadores que
defenderam as liberdades individuais e os direitos liberais clássicos, como a
liberdade de associação, a liberdade educacional e o direito de reunião; e
foram também os promotores da “questão social”.
O Tempo Saquarema,
publicado em 1987 e escrito por um professor da educação básica praticamente
desconhecido fora dos círculos restritos da velha e da nova intelectualidade,
foi instantaneamente reconhecido como um clássico e se tornou o mais influente
livro de história do Império. Essa obra combinou paixão e intelecto, os dons do
professor e do analista. Nenhuma de suas obras poderia ter sido escrito por
outra pessoa.
Hoje a advertência deixada
pelo oitentão no final de O Tempo Saquarema é preciso saber recepcionar:
passaram-se muitas décadas, muita coisa nova aconteceu, a situação atual é
bastante diferente da do século que viu surgir os Saquaremas mas deixar
subverter o conservadorismo em reacionarismo implica que nós não joguemos o
bebê fora junto com a água do banho. Do contrário poderíamos perguntar se uma conjunção
de “neoliberalismo reacionário” funcionaria como uma base sólida para unir certa
direita et caterva?
Se a resposta for
afirmativa, talvez
seja oportuno recordar outra recomendação do conservador irlandês Edmund Burke
(1729-1797): “Quando os homens maus se unem, os homens bons devem associar-se;
Caso contrário, eles cairão um por um, sendo sacrificados impiedosamente numa
luta desprezível.”
2 de junho de 2024