sexta-feira, 29 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 04


Sessão da Câmara dos Deputados negou autorização para que Márcio Moreira Alves (MDB) fosse processado por injúria às Forças Armadas, em 12 de dezembro 1968 | UPI

“60 não é meia dúzia”[1]: conciliar não é esquecer ou se submeter

Alexandre Vinicius Nicolino Maciel

 

Em primeiro de abril de 1964 foi deflagrado no Brasil um golpe de Estado que depôs o  presidente João Goulart. A partir desse golpe, executado pelos militares, mas orquestrado em conjunto com diversas classes civis, o Brasil mergulhou numa ditadura cruel que matou, torturou, sequestrou, exilou e limitou vidas e trajetórias. Durante 21 anos o Brasil teve como presidentes generais do exército que foram eleitos de forma indireta, num período eleitoral no qual o Brasil tinha somente dois partidos, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava uma oposição consentida. No jargão mais popularesco, eram os partidos do “Sim” e do “Sim, Senhor”, indicando que a oposição clara e manifesta ao regime de forma institucionalizada, inexistia.

É importante reforçar que no mesmo período em que a ditadura brasileira se desenrolava, alguns vizinhos sul-americanos também passavam o mesmo drama. Nutridos pela dinâmica estadunidense da Doutrina de Segurança Nacional e pelas dinâmicas geopolíticas da Guerra Fria, Argentina (1966-1970 e 1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989), Peru (1968-1980) e Uruguai (1976-1983) também sofreram com regimes de exceção marcados por muitas mortes, torturas, prisões e desaparecimentos. A comparação entre esses regimes de modo algum pode reduzir o caráter ditatorial de uma ou outra experiência, ou ainda, considerar que algum regime, por ter um número menor de mortes causadas pelo Estado, se abrisse a possibilidade de ser classificado como ditabranda, como já fizeram com o regime brasileiro em algumas oportunidades.[2] Esse tipo de eufemismo reverbera o modo pelo qual os arquitetos do golpe o tratam desde a execução do movimento. A Revolução de 64, dada em 31 de março, nas palavras deles, buscou expurgar do Brasil as células que tornariam o país uma “Grande Cuba” e teoricamente, reforçou que nas palavras deles, não matou tanto opositor assim, pois “ao terminar a ditadura, a cultura como um todo (professores, mídia, literatura, filosofia, ciências humanas, artes, os principais partidos políticos) se revelou completamente de esquerda.”[3]

Ulisses Guimarães (MDB) enfrenta os cães na Ditadura Militar

Em nível acadêmico os debates sobre o período já se encontram consolidados. Inúmeros trabalhos acadêmicos já exploraram, e continuam a explorar o alargamento da ditadura para além da política institucional e dos atos repressivos, debatendo a atuação dos golpistas na música, na TV, nos esportes, na educação e em outros contextos sociais. Todavia, é preciso pensar no como a população em geral vê o período da ditadura, ainda mais num contexto de ebulição política e clamor constante por intervenções militares por partes de ditos conservadores (golpistas). Não raros são os vídeos dos acampados nas portas de quartéis que conclamam a volta dos militares ao poder.

Esse modo deturpado de ver história pode ser visto também como uma herança do nosso processo de redemocratização. Como dito acima, no mesmo período em que sofríamos com a nossa ditadura, o Cone Sul da América Latina era um laboratório vivo da crueldade. É também num período similar que esses mesmos países retomam a democracia e aqui é necessário exercitar o método comparativo. Alguns processos de são vistos pela historiografia como processos realizados por rupturas, já o processo brasileiro é estabelecido por pactos.[4] Esse tipo de acordo permitiu que os militares e entes públicos e privados que se favoreceram da ditadura, continuassem livres e poderosos. Fato visível dessa força é o tão falado artigo 142 da Constituição Federal, que supostamente permitiria a intervenção militar.

Deputado Alencar Furtado (PR) cassado em 1977 quando era líder da Bancada do MDB
Seu filho foi assassinado em campanha no ano de 1978
Faleceu em 2021 aos 95 anos

Assim, é preciso que os debates sobre a ditadura empresarial-militar no Brasil ultrapassem os espaços acadêmicos e se tornem comuns nos espaços públicos do país. É preciso desnaturalizar a ideia de que os militares salvaram o país do comunismo e que na “época deles” não havia corrupção. Inúmeros estudos já comprovaram o contrário, mas eles precisam chegar à base da sociedade. Para além, disso, utilizando-se dos pilares estabelecidos pela Justiça de Transição[5] é preciso avançar em políticas públicas de memória e Justiça. Assim, é preciso que o Estado se pronuncie em questões acerca da ditadura e possibilite a criação de espaços de memória, tal quais outros países possuem. Não em tom de revanchismo, mas em busca de memória e justiça. Os sessenta anos do golpe nos recordam que é preciso avançar, mas não esquecer. Pois, conciliar não é o mesmo que esquecer ou se submeter.



[1] O título faz referência ao evento organizado pelo instituto Coalizão Brasil em referencia aos 60 anos do golpe de 1964.

[2] LIMITES a Chávez. 2009. Folha de S. Paulo, Editoriais, 17 fevereiro 2009. Disponível em : < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm >. Acesso em: 9 julho 2020.

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009. [recurso digital]

[3] PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo: Leya, 2012. 232 p [recurso digital]

[4] FRIDERICHS, Lidiane Elizabete. Transição democrática na Argentina e no Brasil: continuidades e rupturas. AEDOS, Porto Alegre, v. 9, nº. 20, p. 439-455, Agosto, 2017.

[5] A justiça de transição é composta por quatro elementos ou pilares. São eles: (1) o direito à memória e à verdade; (2) as reformas institucionais; (3) as reparações simbólicas e financeiras; e (4) a responsabilização por atos praticados no período autoritário.

quinta-feira, 28 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 03


Um tanque de guerra do Exército em frente ao Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro em 8 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo) 

1964 e a “bestialização” carioca

Em memória ao centenário de Lindolpho Silva

Vagner Gomes de Souza

 

1964 marca um profundo impacto para a antiga sede da Assembleia Constituinte de 1823, 1891, 1934 e 1946. Seu esvaziamento político institucional se aprofundou sob os parâmetros da perseguição política que muito atingiram cariocas e seus residentes como a memória do chamado “Massacre de Manguinhos” nos faz lembrar[1]. O Rio de Janeiro formado como a cidade da consolidação da unidade nacional em suas linhas tortuosas e ibéricas se abriu para uma “americanização” de seu subúrbio transformado num “Novo Oeste” americano ao Sul do Equador. Na expansão da ocupação do espaço urbano desordenado sob a égide de uma modernização conservadora muito de perversão do americanismo assolou a nossa cultura carioca.

A falta de autonomia da antiga capital do Império e da República não impediu que houvesse uma vida dinâmica se fizesse perceber nas favelas no pré-1964 com a dinâmica disputa política pela organização de seus moradores entre setores da Igreja Católica e os comunistas. As principais favelas cariocas, sob nossa medida, estavam se transformando com uma semelhança a longa disputa política entre a democracia cristã e os comunistas italianos essa é nossa hipótese que justifica as intervenções urbanas das chamadas “remoções” que fizeram emergir os conjuntos habitacionais de Vila Kenedy e Cidade de Deus.

A cultura do samba carioca no período anterior a 1964 estava em grande conflagração diante de inúmeros exemplos de agremiações com inserção de componentes com militância no PCB e que foram perseguidos ou se afastaram no decorrer da ditadura militar. O mesmo ocorreu no meio sindical carioca com a intervenção do Governo Federal em inúmeros sindicatos aonde podemos mencionar o antigo Sindicato dos Urbanitários do Rio de Janeiro que guardou uma marcante presença na participação e organização do comício de 13 de março de 1964.

Esses exemplos demonstram que a inserção da política não se limitava as fronteiras de uma classe média carioca e universitária. Nos distantes bairros de Campo Grande, Santíssimo e arredores, então Zona Rural da Guanabara, as mobilizações dos sitiantes e posseiros se faziam no intuito de organização dos trabalhadores rurais sob a liderança de um quadro dirigente do PCB, porém com muitas fontes que demonstram lideranças locais que submergiram ao silêncio talvez do medo[2]. Aliás, seguindo a nossa hipótese anterior, havia uma articulação entre os setores rurais do PCI e PCB acompanhado por Lindolpho Silva[3]. Assim, a chamada “grilagem” na atual Zona Oeste carioca ganhou mais força nos tempos da Ditadura Militar transformando a região num amplo espaço de nova orientação política. Os ventos da modernização conservadora fez emergir uma sociedade carioca “bestializada”.

Consequentemente, diante das investigações sobre o assassinato de uma Vereadora e seu motorista no ano de 2018, há muito dessa sociedade que se fez emergir como “besta-fera” diante da “bestialização” até na formulação de políticas daqueles que se encontram na chamada esquerda carioca muito prisioneiras das imagens sem perceber que o Rio de Janeiro é um mundo político das mediações. Um “coronelismo contemporâneo” de lideranças políticas decadentes diante do fator religioso do neopetencostalismo.

1964 fez com que tenhamos uma sociedade aliada a esse processo de política degenerativa, pois o “mercado do crime” que no seu mutiverso tem o “mercado da fé”. A representação da política democrática se faz pelo espelhamento com um uma estranha desconfiança das instituições e maior individualização das manifestações políticas hipermodernas. As mobilizações sociais foram capturadas por um “mercado do identitarismo” que criou uma “reserva de cargos comissionados” a militância política desconectada com os cariocas do dia a dia. Formando um “vazio político” ocupado pelas forças políticas reacionárias uma vez que as análises daquilo que chamam esquerda carioca parecem moldadas na “Ágora da Praça São Salvador ouvindo uma Mafalda”.

Não se percebeu que 1964 fez emergir um laboratório do pinochetismo no submundo do crime desde com suas chacinas executadas por agentes do Estado. O Rio de Janeiro é a hiperatividade do neoliberalismo. Sociedade pura na matriz do interesse individual. A ideia de Estado se foi no “chaguismo” ao mapear politicamente o universo da cidade. A fusão, implementada na Ditadura, esvaziou ainda mais a vida política do Rio de Janeiro pois se fez na égide do clientelismo e com as ações do “Mão Branca” na Baixada Fluminense. Faltam mais estudos recentes no mundo acadêmico fluminense sobre esse processo.

Logo, o bolsonarismo não é nada no Rio de Janeiro e paradoxalmente ele é tudo, pois ele se alimenta desse esvaziamento da política na sua postura antipolítica. Portanto, para ficarmos num problema de comportamento político que nos interessa, se a família Brazão é mais uma no mosaico da Zona Oeste carioca, o “caso do Bairro de Campo Grande” é a demonstração de que a hipótese do “lulismo”, segundo André Singer, se tornou uma pura noção conceitual, pois os interesses se uniram aos intermediários que de “Escritório do Crime” alimentam o “Escritório do Voto”. 




[1] O Massacre de Manguinhos foi um caso de expurgo político ocorrida no então Instituto Oswaldo Cruz (IOC) - hoje unidade técnico científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - durante a ditadura militar brasileira. Dez cientistas do IOC/Fiocruz foram cassados em 1º de abril de 1970 com base no Ato Institucional n.º 5 (AI-5).

[2] Voz Operária, Edição 213, 1953, página 8. https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&pagfis=2416 Consultado em 28 de março de 2024.

[3] Cf. https://journals.openedition.org/nuevomundo/69678 (Consultado em 28 de março de 2024).




quarta-feira, 27 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 02

60 anos do Golpe Militar 

Giovana Freire, Valença-Rj

1964 poderia ser o primeiro ano do voo de um Conde Chileno[1], sinceramente nunca foi apenas um regime. Um golpe articulado pelas diretrizes da época que resultou em mais ou menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas, fora as que foram torturadas ou privadas de seus direito diante dessa ferida que segue sem muita reflexão histórica na nossa República Federativa.

Em nossa pesquisa, relembremos o relatório “Brasil: Nunca mais”[2] que enumerou pelo menos 1918 prisioneiros políticos que testemunham terem sido brutalmente torturados entre (1964-1979), este documento -  elaborado sob apoio da CNBB - descreve duzentas e oitenta e três diferentes formas de torturas utilizadas pelos militares durante a ditadura.

Além de ler e estudar sobre, fui atrás de pessoas que viveram durante tal regime, ouvi relatos de pessoas próximas, e infelizmente só após essas pesquisas veio ao meu entendimento que sou neta de um jovem nascido em 1953 que tinha 11 anos quando tudo começou e sou filha de uma criança que tinha 8 anos quando a ditadura acabou.

Tendo por início da derrubada do então presidente João Goulart em menos de um mês do Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964). Provavelmente, foi um fato história de nossa democracia pouco se estuda. Além disso, poderemos mencionar como relevante que o Marechal Humberto Castelo Branco ter sido decisivo na articulação de um Golpe com apoio de civis.

Portanto, que tais desvios da trilha democrática nunca mais se repitam. Ainda mais diante do que foi o 8 de janeiro de 2023 com a tentativa desastrosa e criminosa dos apoiadores  do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro[3], nem tão pouco a pouco estudada depredação de 24 de maio de 2017  em que o vandalismo imperou em alguns Ministérios do Governo precedente ao de Bolsonaro o que motivou ao presidente temer a solicitar a convocação de forças do Exército[4]. A complexidade do tema se refere a intuição do protagonismo militar um ano antes da questionável intervenção na Segurança Pública do Rio de Janeiro. As palavras de ordem “Intervenção Militar Já” e “Diretas Já” pouco sentido se faz sem uma melhor pesquisa das fontes primárias em questão.

Infelizmente mesmo após tanto anos do 1964 nada foi devidamente feito para reparação de tais fatalidades impostas. Vivemos e ignoramos todo o ocorrido desse capítulo obscuro da história brasileira. Como uma jovem nascida 17 anos após 1985 eu nasci dezessete anos após o (fim da Ditadura Militar), todas as vezes que eu ouvi a respeito  ao tema era ou com ar de desdém, ou com dores e medo da época. Por anda o papel dos intelectuais sobre o tema na Educação Básica?

Nossa Constituição de 1988 deve ser de fato um marco e não apenas mais um alvo de novos golpes, queimas, torturas, massacres e chacinas violentas ao povo Brasileiro. Eu sei que sou jovem mais como uma pessoa que está graduando para lecionar, gostaria que todos os ensinamentos fossem expostos de maneira nítida e clara.

Que nossos posicionamentos políticos não sejam mais vendas, mas que sejam pontes que todo o extremismo e radicalismo sejam “vacinado” e erradicado de nosso país. Tempos de moderação aprendendo com o passado nosso passado, os mortos tem mais conhecimento do que os vivos diria uma percepção de um livro sobre o golpe de Napoleão III. Então, não vamos nos esquecer dos que morreram por não aceitarem a nossa República a ser fazer na Cidadania.

Sejamos todos uma nação instruída, para não nos permitir cometer os mesmo erros e passar pelas mesmas situações que como diz em nossa bandeira que haja “Ordem e Progresso” e que Deus abençoe o Brasil; não só hoje como nossa pátria amada sempre e, amém!

segunda-feira, 25 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 01

1964: seis décadas depois

John Lennon

  

Ao optar pelo silêncio oficial, sobre uma reflexão dos 60 anos da ditadura militar ou cívico-militar, sobrou para os autores políticos, formadores de opinião, especialistas no mundo universitário, estudantes, seja lá quem for, é de suma importância falar sobre 1964. É de se assustar pelo tal silêncio, do Governo com disposição para se desalinhar no anacronismo histórico no uso da expressão do Holocausto na acertada crítica a ausência de um cessar fogo nos conflitos em Gaza que está a tirar vidas de inocentes.

O silêncio é uma perda de oportunidade para expor aos mais jovens o que foi essa época dura, aonde a censura, autoritarismo reinava. A ausência da memória da História é um ponto que desafia a nossa Democracia. Como explicar a um jovem, que com o seu celular, tem total liberdade, para opinar, fazer perguntas, pesquisar, e se expressar, o que de fato rolou em 64?

Para os nascidos nos anos 90 já é de grande dificuldade tal assunto, quem dirá para essa geração que nasceu no berço da tecnologia. Porém a história está aí, não tem como fugir. Esses jovens que viram o que foi 2022 estão reféns de uma polarização avaliam o passado com linhas tortuosas.

O que deixou marcado para a história brasileira nesses anos turbulentos, foram as práticas de torturas, mortes, perseguição, opressão, mas outras marcas não se apagam, a geração artísticas, a própria Igreja, estudantes, imprensa, intelectuais, entre outros, fizeram uma pressão para as Diretas já, deixando um legado que hoje se pode ter essa liberdade.

Tanto em 1964 quanto em 2022 houve uma presença de setores religiosos favorável a uma ditadura, ou seja, sair da trilha democrática para reintroduzir os passos conservadores. Contudo, muitos se arrependeram por apoiar o Golpe 64 uma vez que as forças conservadoras se distanciam das forças reacionárias. Observo, o mesmo fenômeno na atualidade aonde muitos se desligando da polarização, porém não encontrando acolhida nas forças centristas por inúmeros motivos.

Portanto, as lições dos tempos contemporâneos, fazendo um paralelo entre os 21 anos de Ditadura Militar e os tempos atuais, é que para se construir uma Frente que se encaixam todos que está disposto a virar essa página de anos turbulentos, isso inclui todas as alas, seja os conservadores em suas diversas matrizes, a direita democrática, os setores empresariais, que fogem de um radicalismo, que muitos abraçaram a necessidade de uma estabilidade política sem a necessidade de uma “política do espetáculo”. Caso não faça uma reflexão do passado, a derrocada da Democracia é logo ali. Temos os sinais das forças obscuras rodeiam a Democracia. Testemunhamos o retorno do Trumpismo nos EUA com o eleitorado hispânico e negro omisso ou aderindo e a Argentina com Milei apresenta índices de aprovação acima de 50%.

E com tal polarização, não ganhamos nada, só a radicalização que ganha espaço, dado que a antipolítica é um argumento que se pega e espalha rápido, há sempre um fantasma a ser enfrentado, e o nosso é a Ditadura Militar, que tem que ser sempre lembrado, como anos turbulentos.

sábado, 16 de março de 2024

SÉRIE ESTUDOS - AGUARDANDO O OTIMISMO DA VONTADE


Mega-Tretas


Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Mega-ameaças: dez perigosas tendências que ameaçam nosso futuro e como sobreviver a elas, do turco Nouriel Roubini. Tradução de Maria de Fátima Oliva do Couto; Revisão técnica de Andreia Marques Duarte. São Paulo: Crítica, 2023.

 

Quando em 2010 foi publicado A grande aposta, de Michael Lewis onde ele mostra que pouquíssimos tinham visto o que se passara nos anos anteriores e foram incapazes de prever a crise de 2008. Dado esse número ínfimo de pessoas que viram o que se aproximava, nada tem de surpreendente que não estejamos mais bem preparados do que agora.

Nouriel Roubini foi um dos poucos que conseguiu ter emitido avisos terríveis, em 2006, de que o mercado hipotecário subprime nos EUA era um acidente à espera de acontecer o pior e que quando a bolha arrebentasse estaríamos num mundo de dor. Ele ganhou o apelido de “Dr. Destino”. Roubini faz isso diversas vezes, embora prefira descrever-se como “Doutor Realista”. E em Mega-ameaças ele está de volta.

Mas não há nada remotamente alegre em suas advertências. Ele vê sérios problemas pela frente. As dez tendências distintas que ele identifica podem parecer um pouco megalomaníacas. Só que não. Começa com o rápido crescimento da dívida, que, após uma pausa pós-crise, recuperou-se com força, estimulada pela flexibilização quantitativa. Isto leva a uma discussão sobre a instabilidade financeira, da qual a dívida é uma das causas. Nesta mistura entra o envelhecimento da população, que pesa sobre o crescimento da produtividade e sobre as finanças públicas, cria-se uma bomba-relógio demográfica. As responsabilidades com aposentadorias e pensões revelar-se-ão um enorme problema para os governos num futuro próximo.

Passando das finanças para a política, Roubini acredita que a globalização está, na melhor das hipóteses, em compasso de espera. Ele não é tão pessimista como alguns outros, que veem barreiras comerciais a serem erguidas por todo o lado, mas o cenário mais otimista é o da “desaceleração”. A política chinesa mudou claramente, e não no bom sentido. Temos de reconhecer que a China está no caminho para se tornar a potência dominante mundial.

Ele acrescenta as alterações climáticas a este complexo de problemas. Os que negam as alterações climáticas têm explorado incertezas marginais na comunidade científica para resistir a uma ação eficaz e colocar-nos no caminho equívoco de um aumento de temperatura de pelo menos dois graus. O impacto será devastador.


Este pode parecer um território familiar, mas Roubini acrescenta outro ingrediente preocupante: a inteligência artificial (IA). A IA tornará muitos, muitos trabalhadores dispensáveis. Um pequeno número de trabalhadores de grande conhecimento no topo da pilha sobreviverá à revolução da IA. A maioria dos outros não tem as competências necessárias para competir, pelo que o desemprego e a desigualdade de rendimentos seguiram aumentando acentuadamente.

Os dez fenômenos interagirão claramente entre si. Roubini tenta esboçar o futuro que resultará. É uma visão dantesca. A inflação fará subir as taxas de juros, o que levará as economias à recessão e conduzirá à “Grande Crise da Dívida Estagflacionária”. Este será o pior período de estagflação que o mundo já viu. Ele não concorda com as previsões de aterrisagem suave apresentadas pela Reserva Federal (FED) dos Estados Unidos da América (EUA). A realidade estará em algum lugar entre um pouso forçado e um acidente de pista em grande escala.

E isso é apenas o começo dos nossos problemas. O persistente déficit comercial dos EUA e a forma como os EUA transformaram o dólar em arma, através de sanções e outros meios, resultarão no fim da hegemonia financeira norte-americana. A introdução da moeda eletrônica pela China acelerará o seu declínio e os EUA enfrentarão uma aliança entre a China, Rússia e o Irã, e muitos outros países que aderirem a ela. Outras crises serão precipitadas por este coquetel. A Itália pode ir à falência, levando ao colapso a união econômica europeia. Enfrentamos uma viagem acidentada numa noite muito escura.

Então, o que deve ser feito? Os últimos capítulos de Roubini são cuidadosamente singelos. Ele sugere que os investidores devem aumentar a proporção dos seus ativos detidos em dinheiro. Isso faz sentido, mas não vai impedir o aquecimento do planeta. A mudança tecnológica pode ajudar, mas as tecnologias que podem retardar o aquecimento global parecem ainda estar muito distantes. A renda básica universal poderia ser uma resposta à corrosão da IA, mas apenas se conseguirmos fazer com que a economia seja sustentável. Enquanto isso, fechar as escotilhas pode ser o melhor que podemos fazer.

Roubini é sempre provocativo e instigante. Mega-ameaças têm ambas as características em abundância. Ele tem menos segurança na Europa do que nos EUA. Mesmo assim ele mostra que o populismo anti-UE e anti-Euro não está aumentando. As sondagens têm dito o contrário, e o flerte da Sra. Le Pen e da Signora Meloni com as políticas anti-Euro não duraram muito. As últimas sondagens mostram que o apoio público ao Euro está no seu nível mais elevado.

Mas estas são queixas. A principal tese de Roubini, de que temos vivido acima das nossas possibilidades, confortados por uma visão de mundo Panglossiana, que precisamos mostrar seus pés de barro. Afinal, ele já esteve certo antes e nada nos aponta o contrário agora.

 

14 de março de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.




terça-feira, 12 de março de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 035 - CHEGA SURPREENDER

O resto é engodo

Vagner Gomes de Souza

 

Quem vai ter um “papo reto” com a juventude? A quatro anos do anúncio da pandemia da COVID 19 pela OMS ainda muito temos que falar sobre o segmento da juventude que estaria na faixa de 16 a 34 anos. Nos primeiros momentos, tinha-se a ilusão que esse segmento estaria imune de níveis de letalidade. Apesar de muitos esforços em contrário, foi um segmento que pouco se apercebeu do que estava a ocorrer ao seu redor com as devidas exceções e aos casos de lutos familiares.

Uma parte desses jovens perderam momentos de convívio escolar num processo que impactou o desempenho escolar de muitos. Há um escandaloso “silêncio” sobre crianças e adolescentes que são analfabetos, ou seja, temos uma situação muito grave na educação. Não satisfeitos com isso, a implementação de uma reforma no ensino médio seguiu suas trilhas diante de alunos que estavam sem aulas no ensino fundamental. Escolhas ainda são feitas por jovens que consideram que copiar trechos de um artigo seria estar expressando opinião. Temos um exército de copiadores como nos antigos mosteiros da Idade Média.

Aliás, é essa a sensação que muitos educadores percebem ao vivenciar o dia a dia escolar. Aulas de Ciências reduzidas ou sem conexão com o ensino de humanidades nos faz testemunhar jovens que não validam a importância da vacinação. O negacionismo da ciência dos setores extremados é compactuado pelos defensores de uma austeridade educacional com ajustes na grade curricular. A vida está muito pior para os jovens e acham que os estudos de Projeto de Vida seriam a melhor saída. Provavelmente, para as editoras que já vendem livros com para essa inovadora disciplina. Na Ditadura Militar, período que um em cada 10000 jovens não saberá definir o que foi esse momento da história brasileira, tinha Moral e Cívica e OSPB como se fosse a solução para formatar a sociedade de crescimento econômico, mas de profunda concentração de renda.


A concentração da riqueza é a marca de nossa modernização. Crescemos ainda hoje para além das previsões, porém não é para todo esse mundo paradisíaco da prosperidade. Não teremos prosperidade diante de um quadro de “morte” do emprego como vemos emergir das seguidas revoluções industriais. Hoje estamos numa transição que causa esse incômodo social que explica em muito as figuras extravagantes que aparecem no cenário político com grande simpatia entre o eleitorado da juventude. Afinal, fazer uma política pública voltada para os jovens não é como se fosse fazer um “pé de meia”. O que virá depois?

Sabemos que a leitura está cada vez mais perdendo espaço na humanidade. No nosso país, até aqueles jovens que gostam e amam os livros veem suas vidas podadas por uma ausência de uma Política Cultural que abra espaços para a leitura. Ler e compartilhar livros com aqueles que não podem ler. Uma ideia simples, mas temos um arquipélago de Editais de Cultura formando “caixotes identitários”. Editais para aqueles que tenham condições de fazer prestação de contas, ou seja, um conhecimento acima do adequado ou que contrate especialistas. E os livros possivelmente a compartilhar não gera um cargo comissionado sequer.

Cobramos a distância da juventude da prática e valorização da democracia. Tememos que tenhamos um “ovo da serpente” a se chocar. Mas, o que as forças do campo democrático tem feito para fazer um “papo reto” com esse segmento? As chamadas juventudes partidárias faliram com os atores políticos pois servem para renovar quadros de assessorias parlamentares ou de alguns órgãos do executivo. Temos uma Secretaria Nacional da Juventude que se silencia diante da falência da educação. Talvez achem que os jovens apareçam pelo número de likes marcadas por “bolhas” de si. Sejamos francos. Não há um sorriso para nossa juventude.

Se me vierem com números da Conferência Nacional da Juventude, muito facilmente se pode dizer que no “socialismo real” os números maravilhosos eram sempre divulgados. E, em 1989, de que lado estava a juventude do Leste Europeu? Fez seu salto para a abertura do capitalismo e entramos nos estagnados anos 90. Os jovens foram se envelhecendo e se entregando a uma “guerra de narrativas” se afastando da sua própria realidade. Individualização cada vez mais marcante e os atores pretéritos da juventude com “Escola de Líderes” de gabinetes. Então, um choque de realidade se fez presente no século XXI. Esse século que ainda não trouxe um momento de bons ares para a humanidade. Do fundamentalismo islâmico a outros que vieram a se somar. A juventude mundial cada vez mais se deixou levar por uma teia da morte.

A Inteligência Artificial é uma realidade cada vez mais próxima e há um ano alguns jovens ainda riam quando qualquer educador lhe dissesse que ela viria para ficar em suas vagas de emprego. A precarização do trabalho ainda é uma fase de transição para o fim desse universo para muitos, porém ainda querem nos colocar num debate sobre o “decolonial”, o “biopoder” ou outros devaneios. Na verdade, o silêncio dessa juventude agudiza o tema da democracia ainda mais diante do envelhecimento da população.


terça-feira, 5 de março de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 034 - SEJAMOS SENHORES DA REPÚBLICA E DA PAZ


Águas de Março

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Em muitas ocasiões, os verões brasileiros trazem a ideia de um devaneio de lazeres, de uma pausa no cotidiano, em que se esperam dias claros, diversão, leitura para alguns e, em todo momento, alegrias proximais emocionais. E no Brasil de hoje, viagens recreativas dentro e fora do país.

De fato o nosso país, que tem uma grande paisagem natural, costuma mostrar que está natureza variada e bela não é, como diz o nosso hino nacional com otimismo, “de amor eterno seja símbolo”, que tem nos faltado esse sentimento, por vezes indo a aspereza, dureza que franze a testa ao Grande Número, justo nos momentos em que menos queremos: no verão.

A esse azedume que nunca foi nosso juntam-se várias pragas e com o aumento do calor que as mudanças climáticas nos trazem, contando também com a ajuda da negligência, do desleixo e do mal, surgem chuvas e queimadas gigantescas e letais, catastróficas, para os quais nunca ninguém está totalmente preparado, a despeito da sua previsão.

É também muito triste quando perdemos mentes como a do Samuel Pinheiro Guimarães Neto (1939-2024) e a de Luiz Jorge Werneck Vianna (1938-2024), personagem que a despeito de suas idades avançadas, continuavam a servir de forma importante a vida democrática do país.

Quando tudo isto se combina, dores privadas, perdas e choques profundos que servem para nos recordar a fragilidade da condição humana, o verão torna-se voraz. Mas não só o nosso verão está sendo tenso, pois enquanto nós estamos no verão, no hemisfério norte estão em pleno inverno e esse inverno também tem sido dificílimo, mas mais do que por catástrofes naturais, tem sido por ação humana.

Na verdade, o mundo não vai bem, estamos chegando ao 1.º ¼ do século XXI com um forte fosso entre o progresso científico e tecnológico e um esvaziamento da democracia, da convivência social, da tolerância e da densidade moral.

Vivemos duas guerras sangrentas, uma causada pela cultura anacrônica czarista cuja ambição cresce cada vez mais e está pronto para repristinar o poder da Rússia, para semear cadáveres na Ucrânia e causar a morte dos seus adversários internos.

O conflito entre Israel e o Hamas surge hoje sem solução, pois ao cruel e inaceitável terrorismo do Hamas juntou-se uma resposta brutal e desproporcional do grupo da liderança israelita liderado por Netanyahu, longe em tudo do espírito das bases fundadoras de Israel.

As vozes que exigem consideração não são ouvidas, quer venham do Vaticano ou dos EUA, ou de qualquer outro lugar. Como conseguir um mínimo de acordo entre duas realidades políticas que negam à outra o direito de existir?

É muito desanimador olhar para um futuro em que a situação atual poderá não só continuar, mas também piorar.

Quem em sã consciência consegue imaginar uma situação como a atual em que, diante do autoritarismo, uma das democracias mais antiga do mundo fosse governada por Trump?

Os países democráticos e a comunidade internacional como um todo não podem parar de combater o desânimo, devem trabalhar por uma solução pacífica e justa para as guerras em curso. Neste cenário mundial, nós, brasileiros, devemos refletir seriamente sobre como viver juntos.

É claro que habitamos um território complexo e que exige muita resiliência, o que nos obriga a ter instituições fortes e que funcionem.

Não podemos avançar com um conflito social exacerbado. Com uma visão polar, concebendo o público e o privado, a criação de riqueza e o bem-estar social como questões avessas. Ao longo desse caminho tortuoso, o nosso potencial se recolheu.

Os problemas que enfrentamos inclusive o da segurança pública são muito difíceis de enfrentar, ao mesmo tempo em que são urgentes e complexos passa pela estrutura urbana e rural da polícia e da justiça, passa por uma coordenação que não deveria estar sujeita ao interesse político e imediato.

É importante e louvável a simbologia republicana demonstrada pela nota de pesar do Presidente Lula com a perda do ex-Presidente conservador Sebastián Piñera (1949-2024), do Chile, que não deveria passar despercebida, exceto para aqueles para quem está simbologia não faz sentido porque não se enquadra no seu fanatismo e mesquinhez.

A oposição faz um mau trabalho ao se comportar atávica nas suas posições; a negação mútua de “sal e água” nunca trouxe progresso e coexistência democrática em lugar algum e em qualquer tempo histórico. É verdade que talvez seja tarde para que esta abordagem seja ouvida porque o ambiente já começa a ser eleitoral e as eleições exigem que se destaquem as diferenças, mas os partidos e os candidatos deveriam aprender a olhar mais de perto as pesquisas de opinião que mostram uma ampla área a meio-termo no país e que deseja ver avanços, mesmo que paulatinos e não reconstrutivismos e/ou regressismos.

Quem sabe se o sucesso desta vez estará do lado de quem fala com sensatez, para o bem do Brasil.

                            5 de março de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 3 de março de 2024

VAMOS AJUDAR NÚMERO 002 - IMPORTÂNCIA DA LEITURA NA PRIMEIRA INFÂNCIA


 Fotografia do autor na infância 

Os livros e o Tik Tok

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Sempre mergulho na leitura, principalmente nos romances que são quase sempre adiados durante o ano pelos livros de história e política por obrigação e conduta profissional. Tive uma infância sempre na presença dos livros do meu irmão mais velho que era também um grande leitor. Na biblioteca dele e que me apresentou e dividiu comigo, foram as obras-primas das nossas vidas: toda a coleção dos romances da Agatha Christie (1890-1976), a Dama do Crime com informações históricas e geográficas diversas, e depois, o universo infinito da literatura.

Hoje o livro está em desvantagem. A compulsão quase obsessiva por telas está privando as novas gerações do instrumento insubstituível que é a leitura. Como a argumentação bem fundamentada é uma premissa, precisamos racionalizar porque a leitura é importante.

Pois bem, a invenção da escrita é possivelmente um dos marcos primordial no processo civilizatório, porque permite a preservação e transmissão do conhecimento de geração em geração e, pessoalmente, a aquisição, análise, avaliação e processamento de informação. Evocar novas perspectivas, mergulhar em outras realidades e outras culturas. Sem ele não é possível acessar todas as disciplinas como história, ciência, arte, ética e filosofia.

É o que permite o desenvolvimento intelectual e o pensamento crítico, a imaginação e a comunicação, e com isso a capacidade de resolver os mais diversos problemas. A imprensa e o livro disponibilizam o conhecimento adquirido a públicos mais vastos e este é um fator insubstituível na criação de uma cultura e mentalidade democrática e de maior autonomia.
Fotografia do autor em 03/03/2024

É através da leitura que é possível desenvolver um vocabulário mais rico e extenso, que por sua vez é um requisito essencial para adquirir e articular ideias complexas e compreender a realidade com todas as suas nuances e sutilezas.

Há estudos que mostram que uma das maiores fontes de desigualdade é o fato de que, enquanto os mais vulneráveis ​​como as crianças usam muito poucas palavras, entre os mais lidos e lidas esta percentagem é várias vezes superior.

A literatura aproxima-nos de países desconhecidos, leva-nos a universos imaginários, dimensões alternativas e permite-nos descobrir novas ideias, novos personagens, diferentes vidas e experiências e novos horizontes. Mais do que isso, o romance é a pedra angular da empatia e da inteligência emocional, porque permite uma melhor compreensão da natureza humana e faz crescer a compaixão e a tolerância e valorizar e conectar-se com outro diferente.

Não resta dúvida de que a nossa caminhada moral não foi construída apenas a partir de normas, mas principalmente a partir de livros clássicos e outras fontes das humanidades.

Nossas convicções antirracistas se consolidaram, por exemplo, com Madame Butterfly. Poderá haver melhor introdução ao horror da pobreza e à desolação que ela traz do que Os Miseráveis de Victor Hugo? Ou uma melhor compreensão da diversidade infinita da natureza humana do que A Comédia Humana de Balzac, ou dos conflitos entre política e poder do que as peças de Shakespeare? Ou compreender a força do amor sem Neruda?

Existe uma ligação muito forte entre a literatura, a democracia e a valorização dos direitos humanos. O romance, ao promover a empatia e a compaixão, permite-nos identificar-nos com o sofrimento dos outros e isso é parte constitutiva da cultura democrática. Uma população esclarecida torna possível a participação ativa e informada nos assuntos públicos e uma vida cívica mais fecunda.

Agora, relendo esse breve texto, percebo o quanto é difícil para a racionalidade competir com a gratificação fácil e imediata do Tik Tok!

 

29 de fevereiro de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.




SÉRIE ESTUDOS - BANALIZAÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE


 Ficção da Representatividade

Vagner Gomes de Souza

 

O tema da representatividade racial foi aos poucos dominando o mundo globalizado a partir de suas fontes norte-americanas. Tanto lá como cá se faz comum em dizer num “lugar de fala” que hipoteticamente estaria a espelhar a face subjugada de um segmento da população. Esse viés hipermoderno esvaziaria a ampla contribuição de obras como a de Karl Marx que fez uma ampla análise do nascente mundo operário sem tocar suas mãos numa máquina fabril.  Assim, editoras, livrarias, imprensa, programas e novelas de TV, enredos de Escola de Samba, Disciplinas foram se fechando para outras interpretações ou temáticas em nome da pretensa apresentação da representatividade. Seria o momento de uma necessária “reparação histórica”, porém ela é modulada por uma elite econômica e social.

Debate muito antigo nos EUA sobre como as “derivas identitárias” estariam deslocados da realidade. O cientista político Mark Lilla muito tem contribuído nessas observações e lamentavelmente não tem uma nova edição de seus livros no Brasil desde a ascensão, nos dizeres de Peter Burke, do “mundo da ignorância” em nosso país (O progressista de ontem e do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias merece uma segunda edição). Logo, seria um equívoco entender esse debate como do “campo da esquerda” uma vez que se insere nas colocações sobre o nível de uma democracia espelhada como se depara em alguns estudos da Ciência Política.

Aos poucos, alguns intelectuais e formadores de opinião se manifestam com maior intensidade sobre o tema “nadando contra uma maré” uma vez que beneficia o mercado. Imagine desejar pleitear uma indicação ao Oscar num momento em que essa problematização de representatividade fez conferir um anacrônico discurso nacionalista para diversos movimentos políticos extremistas tanto no “Make América Great Again” quanto no “Chega” do mundo ibérico.

O filme “Ficção Americana”, em exibição na PRIME vídeo, faz esse desafio de reflexão no quais muitos que resenharam seu enredo tentaram ficar alheios ao seu principal ponto. Seria possível fazer um drama familiar com atores negros sem a necessidade de reprodução de estereótipos. Negros de classe média que atuam numa saúde privada como médicos (um deles é cirurgião plástico) e não tem condições de pagar à custa da atenção a mãe em início de degeneração da memória. Todavia não se trata de um filme sobre a “saúde preta”, mas uma sátira política social de como a ficção da representatividade afasta o debate do bem estar social. Parece revolução, mas é tudo neoliberalismo.

O seu diretor é estreante na função. Muitos podem apontar os chamados clichês cinematográficos, porém o debate sobre a representatividade é uma sequência de clichês. Cord Jefferson, assim como Barack Obama, é filho de pai negro e mãe branca (os avós maternos nunca aceitaram essa relação ao contrário do acolhimento que houve pelos avós maternos do ex-presidente), mas tem a melanina raramente acentuada. Entendemos que o drama familiar seria a base de um filme sobre a busca de um representatividade no mundo real.

Cord Jefferson: Black or White nos dizeres de Michael Jackson

Cord faz um belo roteiro adaptado do romance Erasure de Percival Everett[1] o que demonstra ser um filme de opinião com o objetivo de corrigir essas “derivas identitárias”. A escolha do elenco foi nesse sentido uma vez que observaremos atores negros que atuaram em séries de TV e filmes a margem da “onda da representatividade” apesar de seus talentos conferidos em Ficção Americana.

Jeffrey Wright é o protagonista do filme depois de ter sido Felix Leiter nos filmes de James Bond estrelado por Daniel Craig entre essas aparições ele está em Cassino Royale (2006), Quantum of Solace (2008) e No Time do Die (2021) e o tenente James Gordon em Batman (2022). O ator teve um bacharelado em Ciência Política que pode lhe ter ajudado na construção desse personagem diante do tema da representatividade. Ele é Monk. Um escritor negro brilhante, mas seus livros não são populares já que ele se recusa a retratar negros de forma estereotipada em seu trabalho. Ele decide criar uma obra comercial e escreve uma história carregada de preconceitos como piada. Só que o livro se torna um best-seller da noite para o dia. Com o dinheiro caindo em sua conta, mas com a consciência pesada, Monk é obrigado a encarnar um personagem do gueto para manter a farsa.

No decorrer do filme temos o drama romântico e outros dramas vividos por negros e outros seres humanos diante do mundo real. Por exemplo, o que faz uma Clínica de Programa de Controle de Natalidade ter detector de metais? Os fundamentalistas defensores da vida usam armas e ameaçam a vida de médicos que fazem a prática humana do aborto nos EUA. Essa contradição sutilmente entre nesse filme de reflexão aonde um negro não esconde sua homofobia. E o Diretor, nascido em Tucson (Arizona) faz uma piada sobre sua cidade natal.



[1] Autor que só tem uma publicação traduzida no Brasil (As Árvores) com um valor de capa inacessível para uma previsão de entrega de 110 dias segundo o site de uma grande rede de livraria. Uma demonstração que falta um debate sobre os livros nacionais e traduções no atual Governo das Representatividades.