George, a dentadura e o SUS.
Marcio Junior[1]
Para minha musa Lavínia, que logo será uma
dentista exemplar.
No livro Os dentes falsos de
George Washington (Companhia das Letras, 2005), o historiador e ex-diretor
da Biblioteca de Harvard Robert Darnton conta que, ao visitar a propriedade de
George Washington em Mount Vernon, se deparou com as dentaduras de madeira
utilizadas pelo primeiro Presidente dos EUA. As decisões tomadas por essa
figura importante da história norte-americana e mundial, seus momentos de maior
responsabilidade, eram transpassadas pelo impacto da peça de madeira dura
contra as gengivas ao mastigar. Além da dor que, convenhamos, era costumeira. O
mesmo historiador salienta que, ao ler um volume relativamente grande de cartas
que datam do século XVIII, era comum encontrar reclames de dor de dente que, à
época, só era sanada pela breve tortura que era a extração. A dor de dente
transpassava as gerações e marcava o modo de vida e os costumes.
Com a publicação da Lei 14.572, de maio de 2023 (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14572.htm), e a tardia incorporação de diretrizes para
uma Política Nacional de Saúde Bucal à Lei Orgânica da Saúde, advinda do
Projeto de Lei de autoria do Senador Humberto Costa, aquilo que foi iniciado como
o Programa Brasil Sorridente (na gestão do próprio Humberto no Ministério da
Saúde do primeiro governo de Lula) se transformou em uma alteração do arcabouço
legal do SUS, que agora tem a saúde bucal nas suas linhas. A principal
consequência disso é a exposição dos desafios para o atendimento à população em
grande número. Ainda tínhamos, por exemplo, pouco material quantitativo para a
compreensão, inclusive epidemiológica, das patologias que os brasileiros e
brasileiras apresentam na boca e a relação destas com outras, já que a boca é
inseparável do resto do corpo. Teremos mais? Sem eles não é possível desenhar
políticas públicas, mas é visível um esforço empreendido no Ministério da Saúde
conduzido pela socióloga e ex-presidente da Fiocruz Nísia Trindade, com
discussões em formato de Webnários no canal do DATASUS (https://youtube.com/@DATASUSAOVIVO).
Porém, vejamos com lupa o desafio: Gilberto Freyre bem percebeu, ao seu
modo e em seu tempo, que em todo médico há um pouco de sociólogo. Como não
haver? Condição econômica, trabalho, residência, etc., são matérias de
sociologia, e as diversas patologias, inclusive orais, não são passíveis de
diagnóstico preciso e intervenção bem-sucedida sem compreender o paciente como
um indivíduo que é dotado de um corpo biológico, mas também é partícipe em um
grupo social que, em uma leitura durkheimiana, pode estar em funcionamento
anormal. Nesse sentido, é razoável tanto pensar em uma sociologia da medicina
orofacial e suas especificidades, algo completamente diferente (porém
dialógico) da odontologia social, quanto pensar que a ausência de orientação
sociológica na base da formação odontológica deixa uma lacuna que, já no seu
tempo, Gilberto percebeu não só quanto aos que se ocupam das ciências médicas,
mas aos profissionais liberais que tendem a centralizar seu ofício nos
indivíduos e só, hoje dito potenciais clientes. Lições de antropologia social
seriam, decerto, mais úteis para a compreensão da realidade que se apresenta do
que o dito empreendedorismo que está em muitos desenhos curriculares dos cursos
de graduação.
Nesse sentido, estarão os profissionais aptos a pensar com competência
na saúde bucal como uma questão de saúde pública? Por exemplo: políticas
relacionadas à odontopediatria são estratégicas como prevenção à tratamentos de
maior custo ao longo da vida. Um acompanhamento bem-feito das crianças
acarreta, ao longo do seu crescimento, em ausência de patologias bucais que
teriam custo mais elevado. Dito isso: como fica a educação básica? Temos
condições de fazer dela espaço de disseminação a partir de políticas de saúde
bucal para as crianças nas escolas? E os pais? Eles foram algum dia também
educado para cuidar bem da boca? Não deveriam também participar? Sendo ainda
mais radical: ainda temos educação básica ou, com ou sem saúde bucal, estamos
em apuros? O ponto fundamental é que, depois de resolver esse problema maior
obviedade que era a ausência da saúde bucal no arcabouço legal do SUS, a partir
de agora que o trabalho se inicia de fato, e há muito o que fazer.
Quando George Washington usava sua dentadura de madeira para mastigar a
comida e ajudou a fundar os EUA, o Brasil ainda não existia; ele não viu o
nosso nascimento, pois morreu anos antes. Porém, apesar da nossa idade menor do
que a do país que ele foi Pai Fundador, fizemos mais do que eles em termos de
assistência à saúde, em todos os níveis de atenção. Podemos fazer muito mais,
mas para que tal tarefa seja bem-sucedida havemos de formar gente para dar
conta e ter orgulho dela. Somos o país com mais dentistas no planeta, então
potencial temos. Tudo que os brasileiros e brasileiras querem é poder sorver,
sem dor, com saúde e dignidade, o arroz e feijão que ainda não sabemos se um
grande número da população terá no futuro próximo, quiçá no mais distante. Se
para muitos ainda mal há recursos para comida, haverá recursos para pagar um
consultório ou clínica privada?
[1] - Doutorando em Ciências Sociais
em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro.