terça-feira, 9 de maio de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 013 - ENTRE PELÉ E BEETHOVEN NA ANÁLISE DE CONJUNTURA


Escutemos o silêncio ao redor

 

Em memória de Fernando de Carvalho (Ferdo) – Uma presença da PRESENÇA e do Sebo João do Rio

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

 

Várias semanas se passaram desde que o Brasil foi atravessado por um silêncio ensurdecedor que veio do grande marco inicial, dos 100 dias de governo e o ataque de 8 de janeiro a Praça dos Três Poderes. No entanto, este ruído parece ter chegado atenuado a política do Palácio do Planalto, quem sabe se por ocasião de trabalhos de manutenção e restauro dos danos ao patrimônio, tem sido instalado um sistema muito avançado para evitar ruídos análogos que venham do mundo exterior, daquele mundo onde vivem o resto dos brasileiros.

A suspensão que ocorreu de trechos dos Decretos 11.466 e 11.467, ambos de 5 de abril por Projeto de Decreto Legislativo (PDL) da Câmara dos Deputados, apoiados pelo Ministério das Cidades do governo, num elemento que não havia sido essencial pois sequer houve debate de programa, parece ter surtido por hora efeito menor, questão que pode significar duas coisas: ou se têm nervos de aço ou se têm perda auditiva política severa.

A coisa sobre nervos de aço consagrado por Lupicínio Rodrigues e que coube nas histórias heroicas da Frente Democrática de outrora não tem combinado ainda e até aqui com o comportamento usual desse primeiro quadrimestre de governo, e parece que eles não estão entendendo o que ouvem.

Ainda não apareceu a mudança de orientação política que deve seguir um evento desta magnitude, os esboços que observamos até agora advindos da participação precisa do governo na agenda da corte do Reino Unido são insuficientes e mais do que responder ao que aconteceu, respondem aos problemas de gestão política que existem.


Sem dúvida, a mudança anunciada lá indica que vai caminhar na direção certa. No coração do Palácio, a inexperiência e a rigidez prometem ser substituídas pela experiência e a empatia, e a inexperiência e a euforia pela experiência e profissionalismo. Isso permitirá ampliar o espaço para a aplicação de políticas mais coerentes e eficazes, que reforcem as realizadas pelos Ministérios do Planejamento e Orçamento e da Fazenda para que não se concentrem apenas na pauta fiscal, mas em promover o desenvolvimento do país. Mas essas mudanças por si só não podem corrigir o curso errático da atual administração, é necessária uma determinada mudança de orientação para obter resultados.

Para que essa mudança seja possível, é preciso que a palavra presidencial de a consistência da realização, perdure no tempo e seja acompanhada sempre de ações que a tornem real. A palavra governamental não pode ser uma série de impulsos verbais que mudam com muita frequência, que avançam e retrocedem, que tentam conciliar o inconciliável por meio de compensações.

Para isso, é fundamental entender o profundo significado do 8/1, para poder explicar o distanciamento que os brasileiros seguem demonstrando àquele evento bestial e reafirmam seu compromisso na esperança democrática.

Por isso ser necessária a nova orientação que não renuncie às mudanças, mas que respeite uma forma de realizá-las com o apoio da república. Além disso, uma governança de maior qualidade é essencial.

A alma da rejeição ao 8/1 é de uma alma moderada, que quer mudanças sem brigas nem imprudências, que quer acordos e não cara feia, que quer viver em paz e que as ruas não sejam campos de batalha de fanáticos inflamados por seus sonhos.

Isso ficou demonstrado pela mudança de clima com o qual vivemos os últimos feriados carnavalescos e o do 1° de maio e pela rapidez com que se descompactou a tensão após 8/1. Parece que começou a haver uma esperança de retorno à sanidade.

As pessoas agora estão esperando, sabem que a situação econômica não é boa e que vai demorar em se recuperar, e o que não podem esperar é que as reformas propostas não tenham efeitos imoderados, mas melhorem de fato suas vidas.

O fato de os cidadãos agirem com paciência republicana e democrática não significa que estejam resignados a uma gestão medíocre de discurso altissonante. Ela não desanima, pois sabe que seu voto é capaz de mudar o que já parecia um destino. É tempo de prestar atenção aos cidadãos que não marcham, não gritam, não destroem, mas votam serenamente. Para mudar de rumo, é fundamental tomar as decisões anunciadas e evitar as visões contraditórias que se produzem dentro do governo, que mancham a sua figura.

O país não conseguirá enfrentar com sucesso os desafios que se avizinham se quem o dirige não criar condição para retomar o crescimento pactuando uma boa reforma tributária sustentável, entre outras mudanças.


Nem o poderá fazer se não deixar de dar sinais ideológicos como o faz aos mais diversos níveis, desde os usos diplomáticos, a visão míope do papel dos acordos comerciais que são essenciais para uma economia como a nossas falsas visões sobre a trajetória da desigualdade nas últimas décadas e muitos outros sinais típicos do bestiário maximalista.

Um novo sujeito reformador com outras formas e outras tarefas começam a ocupar o grande vazio de um reformismo progressista pálido. A Frente Democrática vem se estabelecendo com sucesso e outras expressões políticas também surgirão oferecendo novas alternativas para o futuro.

Surgem posições mais maduras e liberais no centro e na direita que são consideradas diferentes da direita rígida e imóvel. As mudanças também ocorrerão na esquerda e o atual bestiário maximalista provavelmente começará a retroceder. Se assim for, pode-se retomar uma ação política mais favorável a acordos amplos sobre futuras reformas e uma governança mais eficiente, voltada para a solução de problemas prementes.

Oxalá isso se concretize antes que o acúmulo de desenvolvimento e democracia construído nas últimas décadas seja novamente posto à prova como se viu no 8/1, e que pouco a pouco possamos ver novamente números decrescentes de desigualdade e pobreza e crescente de progresso e crescimento rumo ao estado de bem-estar, mas para isso não se pode fazer ouvidos moucos e escutemos o silêncio ao redor.

 

7 de maio de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

SÉRIE ESTUDOS - 50 ANOS DA NOVELA O BEM AMADO (REDE GLOBO)


 

O Bem-amado e o museu de grandes novidades

          Dedicado ao 8 de maio, dia da Vitória dos Aliados contra o nazifascismo

Por Pablo Spinelli

Entre o século passado e o atual foi feito um esforço acadêmico e político em dissolver qualquer possibilidade de síntese (ou “grande narrativa”) em defesa dos interesses atomizados. O que começou na academia sob influência do pensamento de 1968 vicejou pela classe média, pela cultura e chegou à massa popular e às elites econômicas. O bug do milênio (a “loira do banheiro” e a “baleia azul” de 1999) foi o desemprego estrutural, o aumento do neopentecostalismo com um “cristianismo de resultados”, o poder associativo dos anos 1970-80 como associação de moradores e grêmios estudantis diluindo-se nos “eus soberanos”. Não há, como escreveu o historiador Ciro Cardoso a “História” com maiúscula, mas as “histórias de”. O fragmento, a valorização da diferença, o divisionismo, a perspectiva de controle de fatias do mercado pela quantidade de melanina ou pelo uso do pronome, programas que demonizavam a política, o discurso da meritocracia e do empreendedorismo criaram, numa satânica combinação,  uma montanha que pariu o capitão rato.

Caso tenha chegado até aqui, bravx leitorx, o tema são os 50 anos da estreia da novela “O Bem-Amado” na Rede Globo no horário das 22 horas, o que seria o equivalente à 1h da manhã nos padrões atuais. Uma novela que só poderia ir ao ar a partir dessa hora para não sofrer com a censura mais do que já era previsto. O seu autor, o baiano Dias Gomes, readapta sua peça teatral para o meio da comunicação de massa em 1973. Um comunista trabalhando na maior emissora de comunicação do país. O Bem-Amado foi a primeira novela em cores do país. E foi uma das mais perfeitas sínteses do Brasil no século passado.


O prefeito Odorico Paraguaçu (interpretação imortal de Paulo Gracindo) da fictícia cidade de Sucupira estava obcecado em fazer algo vistoso em seu mandato. A sua iniciativa empreendora foi criar um cemitério municipal. Porém, por motivos da Fortuna, ninguém na cidade morria. Dias Gomes, em pleno Governo da Ditadura Militar, usou e abusou do termo que a literatura de Jorge Amado e a sociologia de Vítor Nunes Leal consagraram sobre as práticas políticas do mundo agrário: o coronel. Ao mesmo tempo, estreando como ator na Globo, Lima Duarte viveu de forma tão imortal o pistoleiro arrependido Zeca Diabo, cuja alcunha era como a do cangaceiro Lampião: capitão. Pronto. Coronel e Capitão eram usados em associação com autoritarismo, corrupção, imoralidade, lascívia, assassinato. Demorou, mas a censura percebeu e mandou parar com os termos.

A trama apresenta o famoso trio das “Irmãs Cajazeiras” – mulheres de profunda religiosidade e defensoras da moralidade e da virtude que não conseguiam sucumbir ao licor de jenipapo e, sem saber, faziam um vanguardista poliamor com o Prefeito viúvo, a ponto de uma delas engravidar do coronel e a responsabilidade recair em um gago com orientação sexual fluída 50 anos antes de Fred Nicácio do BBB 23, o subserviente Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz, magistral), que será responsável por um crime passional similar ao que apareceu em Gabriela, de Jorge Amado. Era a crítica ao patriarcado feito por um homem.

Há que se destacar o casal vivido por Milton Gonçalves e Ruth de Souza, pioneiros da presença negra na teledramaturgia nacional. O Zelão das Asas de Milton era o homem simples, pescador, que tinha que voar para pagar uma promessa – o voo era a metáfora para a liberdade, para a democracia – e a Chiquinha do Parto representava a sabedoria feminina tradicional, quem acudia o depressivo e revoltado Dr. Juarez Leão, (Jardel Filho) o único que afrontava cinicamente o poder.

Não menos importante é a oposição. O dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) era o vereador da oposição a Odorico. Bom no discurso, na defesa da ética, seu perfil era apoiado pelo idealista intelectual periférico Neca Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), jornalista responsável pelo jornal da cidade. A família que se opunha aos Paraguaçu-Cajazeiras, os Medrados, também eram da oposição ao Prefeito. Destaca-se a mulher da casa que fazia o papel de delegada no lugar do marido, Donana (Zilka Salaberry). Eis a questão: no que há de diverso entre patriarcado e matriarcado?


Dentre os vocabulários únicos criados para o Odorico, a novela apresentava a exploração da mão de obra de pescadores num sistema de cooperativa sem CLT organizado pelo vil Jairo Portela (Gracindo Jr.). Além do coronelismo, esse ponto, pouco explorado pelos historiadores da cultura do período é importante ser lembrado em tempos de uberização e sem revogação da reforma trabalhista. Tirando os maneirismos e gírias da época, quais as grandes diferenças entre os jovens Telma (Sandra Bréa) e Cecéu (João Paulo Adour) e os de hoje? A Igreja, na figura do Vigário (que não tem nome), tenta equilibrar os antagonismos da cidade. Profeticamente, Dias Gomes coloca um triste vaticínio para a massa popular: todos virarem o Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar) que, quando sóbrio gritava Viva Odorico! e, quando embriagado, Abaixo Odorico!

O Bem-amado é uma referência da cultura nacional-popular que atua como o anjo da história. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de individualismo pautado nos interesses. Parece revolução, mas é só neoliberalismo.



sábado, 15 de abril de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 012 - SAÚDE MENTAL NAS ESCOLAS


 Professor se fantasia em Darth Vader durante as aulas on-line em 2020

Sociedade das Escolas Mortas

Vagner Gomes de Souza

 

Não há um grande evento na história das multidões que não gere inúmeros traumas que podem abalar com a psique dos indivíduos. Nossa sociedade amplamente individualizada desde que os impactos de duas décadas de smartphones tenham entrado em ação com suas seguidas atualizações e fragmentações em redes sociais nos faz pensar o tempo gasto pelas novas gerações diante das “maquinações digitais”. Os bots como se fossem os “clones” a serviço de um subterrâneo em distintos subconscientes. Assim estamos a mercê dos perigos do contrataque do Império com Darth Vader em série.

 A velocidade das imagens competindo com a leitura e dando círculos nas mentes das pessoas esvaziadas de conhecimento diante de uma educação em ruínas. As escolas por muito tempo ficaram sem atividades presenciais no Brasil na pandemia da COVID19, diante de uma omissão do Ministério da Educação ideologizado no governo derrotado nas urnas em 2022. Muito se prometeu, mas pouco se fez para que alunos fossem acolhidos naquela fase em relação ao ensino a distância.

As redes de ensino públicas, sejam estaduais ou municipais, mais pensaram em gastar em plataformas digitais que exigissem aos profissionais de educação o cumprimento de uma carga horária de ensino para um diminuto público. A memória da educação pública brasileira na pandemia não pode ser silenciada, mas, aos poucos, parece que não houve problemas socioemocionais desde que os índices de reprovação estejam sempre abaixo de “metas” tecnocráticas que se dizem pedagógicas.

Então, muitos jovens alunos se viram em níveis escolares sem saber ler ou escrever e as autoridades da Educação sorrindo como se tudo estivesse na mais perfeita tranquilidade. Olhares tristes desses jovens que percebem o abandono enquanto que as forças ocultas do ódio avançou diante deles via redes sociais. Então, precisamos muito de falar sobre a saúde mental das alunas e alunos que sofreram e podem ainda estar a sofrer inúmeras formas de violência.

Errados eram aqueles que avaliavam que um simples recomeçar das aulas presencias iria fazer a reconstrução da educação. Não é momento para ampliar o balanço de tamanho descaso, porém suas feridas estão a disposição da nação brasileira e muitos profissionais capacitados podem auxiliar nesse debate. Não se assustem com a realidade sombria diante de nós, mas tudo é fruto de planos educacionais em que as escolas tenham morrido como espaço de reflexão da República em favor da democracia.

O descaminho se faz com a redução de cargas horárias de disciplinas como Geografia e História (rede de ensino que fez isso não está ao lado de uma saúde do aprendizado). O negacionismo sobre as mudanças climáticas é uma realidade na juventude enquanto há jovens que pouco sabem sobre o mundo no entreguerras e se tornaram possíveis “presas” de grupos extremistas.

Assassinaram a gramática como se fosse o fruto da base autoritária da sociedade, porém sem ela não há uma liberdade para melhor interpretar o nosso mundo ao redor. Estamos num século de muitas mudanças velozes e assumindo muitas novas tecnologias diante de uma juventude com pouco conhecimento e reconhecimento da ciência. Os números nos falam, contudo poucos entendem a vida diante dos números uma vez que a matemática foi colocada como “vilã” de nosso sistema educacional. As metas trilhadas muitas vezes intimidam os profissionais de educação.

Mentes insanas em corpos aprisionados a aparelhos de celulares ou fones de ouvidos para se ouvir musiquinhas repetitivas. Joguinhos em grupos clandestinos nos deep web. E seguimos em nossos dias letivos vazios de debate e reflexão. Mais uma vez a saída tem que nascer na Educação com uma gestão do Ministério de Educação que coordene as redes municipais e estaduais de ensino em profundo diálogo com o Ministério da Saúde. Fala-se muito na necessidade de levar psicólogos para as escolas e nada se faz referência em começar por levar as escolas para conhecer o espaço público da cidade a partir de seus bairros. Passeios pedagógicos são necessários com maior frequência e como parte da carga horária do ano letivo. Ou seja, usar melhor a verba da educação com educadores e alunos em salas de cinema, em teatros, em apresentações musicais, etc., pois agora temos o Ministério da Cultura que voltou. Uma sugestão para a nova abordagem para o Novo Ensino Médio e para as redes municipais de educação que custariam menos que a militarização do ambiente escolar.


segunda-feira, 10 de abril de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 011 - CEM DIAS DO GOVERNO LULA & ALCKMIN E A LENDA PURI


 

Os Originários princípios da República e da Democracia

Vagner Gomes de Souza

 

A lenda da Pedra Sonora conta que há muitos anos, na região da Mantiqueira, os índios Coroados disputavam com os índios locais, os Puris, a posse das terras. Certo dia, um chefe índio, fazendo reconhecimento do local, recebeu uma flechada no pescoço. Impossibilitado de gritar por socorro, sentindo que ia morrer, ajoelhou-se junto à pedra, deixando seu machado cair sobre ela. A pancada emitiu um som que ecoou pela encosta. Ao constatar o fenômeno, o índio bateu outras vezes com o machado. Curiosos com o ruído que ouviram seus companheiros não tardaram a chegar ao local, a tempo de salvá-lo.

Eis que assim foram os eventos que se desdobraram após o 8 de janeiro desse ano, quando os atos contrários as instituições da República ocorreram em Brasília demonstrando a gravidade presente na sociedade brasileira diante das mobilizações antipolíticas. Fez-se necessário agregar todas as forças comprometidas com o arcabouço da carta de 1988 para isolar esses devaneios. A lenda da Pedra Sonora é essa lição de unidade e agregação para repudiar aqueles que acham possível refundar nossa nação. Nossa força de mobilização contra as ameaças se faz com mais unidade sempre.

A nação brasileira é um processo em formação a partir de muitos “povos”. Nossa democracia política necessita aprimorar seu conhecimento sobre essas origens sem que trilhemos os “atalhos” de um sectarismo. Por exemplo, os povos indígenas muito contribuíram na formação da família brasileira, portanto a iniciativa do Governo Federal em criar o Ministério dos Povos Indígenas como atenção a uma promessa de campanha é um marco civilizatório desses primeiros 100 dias de governo na trilha de uma frente democrática. O sentido da casa brasileira emergiu na rede indígena segundo alguns estudiosos esquecida na literatura acadêmica muita prisioneira de modismos eurocêntricos.

O marco regulatório do Ministério dos Povos Indígenas tem sua atual estrutura organizacional disciplinada pelo Decreto federal nº 11.355, de 1º de janeiro de 2023. Sua estrutura com mais de 80 cargos comissionados e funções gratificadas deve estar a serviço de aprofundar o debate das lições que a unidade se faz a partir da diversidade. Entretanto, o sucesso de tamanha inovação deve passar por uma melhor percepção dos ganhos educacionais da Lei 11645/2008 que aborda sobre o ensino da temática indígena.

As trilhas do conhecimento sobre o tema não se faz em poucos dias de Governo diante dos problemas que foram de uma campanha eleitoral com pouco debate programático. Entretanto, por exemplo, somos uma nação que em 1971 teve o filme “Como era gostoso meu francês” com roteiro de Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos. Em mais de cinco décadas poderíamos dizer que muito se tem aprendido sobre o nosso país em sua manifestação antropofágica distinta das denuncismo de nossa história. “Tupi or not Tupi”, eis que também aprendemos sobre as lendas dos Puris. E nesse sentido não há como fazer da Educação um processo de regeneração ou reconstrução de outros caminhos. Esse poderia ser o aprendizado da luta contra o autoritarismo na ditadura militar no qual o “milagre econômico” de um desenvolvimentismo sem democracia atingiu muitos povos indígenas.

Nesses cem dias do governo de Frente Democrática podemos perceber que há muitas forças políticas ainda a se juntar para que avancemos. A tarefa democrática se faz muito também com a valorização da inserção dos aprendizados tradicionais e de uma memória que marcam a luta dos povos indígenas. Portanto, realçamos a necessidade da defesa de um amplo debate sobre educação brasileira atacada nesse momento pelas forças retrógradas, que dialogam com um “fascismo digital” e tenta recrutar uma juventude que nem trabalha e nem valoriza o estudo. A Carta de 1988 deve ser a pedra sonora emitir os sons da República e da Democracia pela sua pauta de bem estar social.

sábado, 8 de abril de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 010 - CEM DIAS DE GOVERNO LULA & ALCKMIN


Por um Brasil a toda prova

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Entre as ruínas do Fórum Romano, muito perto da Basílica Emília, existiu outrora o templo de Jano que abrigou sua estátua de bronze. Era um templo pequeno, mas de antiga linhagem. Hoje existe apenas o vestígio com uma pequena estrutura de tijolos que continua a desafiar o passar dos séculos.

Jano era um Deus muito singular, pois não vinha de uma mistura sincrética com a tradição cultural da península grega. Talvez seja também por isso que os romanos sentiram uma fraqueza particular por ele. Ele era um Deus popular e amado que geralmente apelava para coisas gentis e protetoras.

Sua figura foi representada com duas faces olhando em direções opostas. Ele era um Deus de muitas coisas, do começo e do fim, da entrada e da saída, do passado e do futuro, ele era o protetor de Roma tanto na paz, quando seu templo permanecia com as portas fechadas, quanto na guerra quando aquelas portas se abriam.

Ele era o Deus da mudança das estações e nem mais nem menos do que o guardião dos portões do céu. Sua condição de dupla face sugeria que ajudava na reflexão sobre decisões complexas.

Por isso, os romanos deram nome ao primeiro mês do ano, janeiro (Ianuarus) e chamaram Ianiculus a uma das mais belas colinas de Roma, aquela que circunda Trastevere e o cemitério que sepultou Antonio Gramsci, e quem sabe seja o bairro mais romano em Roma, que hoje é percorrido por milhões de turistas, com olhos ávidos de história e cor.

Mas Jano, com duas faces olhando em direções opostas, é necessariamente um Deus ambíguo, pede uma dupla interpretação: para onde ele nos diz para ir? Qual é a direção que devemos tomar? É sobre isso que queremos refletir, claro que sob o manto protetor de Jano.

Há 100 dias assumiu o governo de Lula e Alckmin, que possuem ambos uma forma de apego à religião cristã, mas até onde sabemos nenhuma à mitologia, inclusa a da Roma Antiga antes de tornar o cristianismo sua religião, e eles tem se revelado diligentes em face às provações correntes.

Mas cabe esclarecer desde o início que a ambiguidade não é um conceito necessariamente depreciativo. Tudo circunda no uso que lhe é dado e, como tantas outras coisas, em que dose é mobilizada. O ambíguo é o que pode ser interpretado de diversas formas e as diversas interpretações podem fazer sentido. Isso significa que o uso de certa ambiguidade é capaz de evitar conflitos, poupar humilhações, abrir possibilidades de convivência que o excesso de límpida franqueza tornaria impossível.

Vocês conseguem imaginar a vida diplomática sem uma dose adequada de ambiguidade? Ou acordos políticos, relações trabalhistas, sem ao menos um pingo de ambiguidade, sem dúvida seriam uma dificuldade intransponível.

O atual governo começou a praticá-lo antes mesmo de existir, durante o segundo turno de sua eleição, quando surgiu uma segunda faceta agregadora da chapa, serena, simpática, assumindo o véu da Frente Democrática.

Uma vez no governo, como era de se esperar, ele nomeou um grupo dirigente para os cargos principais, agradável ao seu coração, mas muito mais reconstrução do que união; no entanto, ele colocou Nísia Trindade Lima, uma reformadora proeminente, no Ministério da Saúde. Isso produziu no Brasil e no exterior uma boa expectativa.


Marcelo Camargo AB

O período de instalação do governo foi marcado por muitos erros por conta de posições doutrinárias e problemas de gestão, mas também por acertos na defesa da estabilidade econômica e política internacional, onde embora houvesse erros pontuais. Nesse sentido, a ambiguidade do governo permitiu-lhe manter certo equilíbrio.

Sem dúvida, uma boa intuição política levou Lula e Alckmin a gerar uma nova correlação de forças entre as alianças para governabilidade, mais condizente com a realidade da Frente Democrática. Isso também tem gerado uma melhora na gestão, com a inclusão de políticos, principalmente políticos com capacidade de governo em cargos de decisão.

Mas essa ambiguidade do governo tem permitido manter a estante de pé, mas não é suficiente para dar boas políticas públicas ao país. É necessária uma orientação programática mais clara para melhorar a liderança e a gestão e enfrentar questões muito difíceis nas esferas econômica e social, como a crescente percepção de insegurança diante da presença das milícias, do narcotráfico e do crime organizado. Os recentes passos para avançar nos acordos de segurança publica cidadã é um bom presságio, que esperamos não ser frustradas por considerações mesquinhas. É necessário reduzir ao mínimo a ambiguidade e abraçar uma orientação consistente, que evite o sentimento de confusão, ambivalência, dúvida, desconfiança e turvação que obscurece toda a clareza sobre para onde vai o país.

Urge, pois, estabelecer uma nova orientação programática, mais clara e compacta, capaz de promover reformas sustentáveis ​​e consensuais. Se assim não o fizermos, poderemos ter uma má surpresa com o fim deste governo, que, tendo prometido ser o mais avançado da nossa história, pode terminar o seu mandato não só maltratado a língua vernácula com o uso abusivo de palavras supostamente inclusivas, mas também com os seus números, podendo mesmo ir ao ponto de mostrar um crescimento da desigualdade. Isso pode ser evitado. Para isso é necessário um forte senso republicano de Estado e uma profunda lealdade democrática aos interesses estratégicos do Brasil sobre quimeras ideológicas e cumplicidades tribais.

É melhor fechar a porta do templo de Jano e levar a Frente Democrática adiante. Na nossa experiência, não para reconstruir uma volta seja lá ao que, mas a união por um Brasil mais próspero e justo. Este é o caminho para se construir, passo a passo, um Estado de Bem-Estar Social firme.

 

7 de abril de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.



quinta-feira, 6 de abril de 2023

A DOCE POLÍTICA DO CINEMA - NÚMERO 17 - A ESPERA FELIZ DOS ELEFANTES NA ÍNDIA


 

Integração e dignidade por toda a vida são possíveis em um mundo fragmentado?

 

Pacelli H S Lopes

 

No curta-metragem documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante ganhador do Oscar de 2023 em sua categoria, podemos aprender várias lições para nossas humanidades compartilhadas em meio a era do Antropoceno. A história se passa em uma das mais antigas reserva naturais de elefantes, Santuário de Vida Selvagem de Theppakadu, criado há mais de 140 anos, dentro da Reserva do Parque Nacional de Mudumalai Tamil Nadu, na Índia.

A história conta a relação entre os cuidadores Bellie e Bomman com dois elefantes, Raghu e Ammu, sendo que estes cuidadores foram os primeiros a terem sucesso ao cuidar de elefantes órfãos. A integração entre os seres humanos, a natureza e os animais nos traz caras lições sobre a aprendizagem ao longo da vida e a proteção da nossa casa comum.

Ambos os cuidadores, são idosos, estando eles seguindo uma tradição de família e ela nem sempre exerceu este trabalho. Ambos demonstram resiliência para recomeçarem suas vidas depois de tragédias pessoais vividas, sendo exemplos de que se pode aprender por toda a vida e que um trabalho digno, sendo este a principal fonte de sustento de ambos, é capaz de trazer felicidade em meio a uma vida simples.

Outro ponto a se destacar é o respeito para com a natureza que fica evidente na fala: “Só pegamos da floresta o que precisamos.” Com isso, vemos como que o cuidado com a natureza pode ser um aliado na geração de trabalho digno, entretanto é difícil imaginar isso em escala global por conta do avanço do mundo sistêmico que já busca criar um mercado de carbono no mundo da vida.

Em um mundo fragmentado e cada vez mais sem história, política e ética este povoado demonstra que sua integração ocorre através do projeto de cuidar dos elefantes, algo que eles deixam claro que estão ávidos por ensinar para as próximas gerações. Essa preocupação com o amanhã e com a aprendizagem das crianças ocorre no dia a dia do povoado, sem com tudo, abandonarem seu passado.

É assim que a educação na vida deveria ser construída, uma ciência no mundo real e concreto, e ciente da sua história, consegue conhecer e agir no presente, com consciência que as ações de hoje construirão o amanhã. E quem sabe a realidade documentada pode servir de inspiração para o atual governo Lula & Alckmin que próximo de completar cem dias ainda falta nos apresentar integração, programa e projeto para a nação.

segunda-feira, 27 de março de 2023

SÉRIE ESTUDOS - CIDADE INVISÍVEL SEGUNDA TEMPORADA

A Frente é Visível

Vagner Gomes de Souza

 

“Madrugada fria de estranho sonho acordou João

Cachorro latia, João abriu a porta

O sonho existia

Que João fugisse

Que João partisse

Que João sumisse do mundo

De nem Deus achar, Ierê”

Trecho da letra Matita Perê de Tom Jobim e Paulo César Pinheiro

 

A segunda temporada da série Cidade Invisível (NETFLIX)[1] é uma fábula sobre a política da Frente Democrática que pode nos permitir um aprendizado para muitos sujeitos políticos prisioneiros de derivas ainda mais nesse momento de reconstrução do país, quiçá de nossa nacionalidade pelos tortuosos caminhos da República e da Democracia. Se você, meu caro leitor, ainda não assistiu a essa série não tema em ler as próximas linhas uma vez que nosso intuito é pensar a conjuntura política a partir do universo da ficção. Por outro lado, se você se considera um fã da série não busque aqui um debate sobre se a segunda temporada é melhor ou pior, pois nosso intuito é realçar que politicamente é muito superior.

O tema do garimpo ilegal sai do universo da sociologia como observamos no filme “Serra Pelada” (2013) - que seria um belo “Era uma vez no Oeste” se fosse mais ousado no roteiro. A série, apesar de ter cinco episódios, nos permite melhor pensar numa proposta de um manifesto das forças do campo democrático a partir do tema do meio ambiente. Um Avatar brasileiro muito melhor na sua envergadura política.

Na segunda temporada, somos levados aos subterrâneos da extração ilegal de ouro em terras indígenas no Pará. Um tema de tamanha atualidade diante da questão Yanomami que se tornou uma emergência nacional nesses primeiros 100 dias do terceiro Governo Lula. A linha da fantasia através da inserção das lendas de povos originários da Amazônia ao roteiro nos permite em muito elevar a importância do pensamento social de Darcy Ribeiro para enfrentar os desafios de um estreante Ministério dos Povos Originários.

Nas águas sagradas renasce o pai de todos os seres míticos da natureza mesmo que ainda não se perceba. Afinal, Eric é um ex-policial ambiental que será chamado de “gringo” pelos moradores locais por ser branco e de olhos azuis. Sua reaparição é como se fosse a ressurreição de Lázaro nas passagens bíblicas, mas porque a filha Luna faz um pedido a Matita Perê[2] em troca de um dilema de algo. O renascimento pai de Luna e dos seres míticos se faz numa forma confusa e desnuda. A confusão é muito comum nas forças democráticas se essas estiverem ainda prisioneiras do individualismo. Enfim, ele sai em busca de sua filha e vai num gradual processo de “acumulação de forças” ao longo dos episódios.

Sugerimos que há uma crítica ao hegemonismo no interior da política de Frente, pois não se podem pensar as alianças como uma “maldição”. A Inês/Cuca chama a atenção de que os seres da floresta (assim como os seres do mundo político) não podem se sentir amaldiçoados. Todos estariam conectados com a natureza. Portanto, na Democracia todas as forças políticas do campo democrático precisam estar em harmonia em que cada um acolha um ao outro. Não se pode fazer da ação política uma explosão voluntarista como Eric faz em seus momentos mais perigosos.

A Democracia brasileira precisa de passar por um longo processo de travessia pela sua cura. Belas palavras como “racismo ambiental” não aparecem na série que se pautou pelo que seria pela ascensão dos herdeiros dos colonizados (nos dizeres de Caio Prado Júnior em Formação do Brasil Contemporâneo) no mundo do Direito. Aliás, o espanto do “chefão” do Garimpo com a sentença desfavorável se assemelha ao pioneirismo da sentença dada ao Coronel Jesuíno Mendonça no livro Gabriela de Jorge Amado. Os dois autores irmanados pela interpretação do tema democrático no Brasil e que foram alunos do curso de Direito. Entendamos, que a Frente está muito visível nessa série como um bom remédio para exorcizar as ameaças da possível volta do Corpo-Seco.

[1] Criada por Carlos Saldanha (Rio), Cidade Invisível tem Marco Pigossi (Tidelands), Alessandra Negrini (Travessia), Julia Konrad (1 Contra Todos), Simone Spoladore (Desmundo) e Zahy Tentehar (Independências) no elenco.

[2] Tom Jobim, em 8 de maio de 1973, lançou um álbum com esse nome. Esse álbum é muito conhecido pela composição “Aguas de Março” em que Matita Pereira está na primeira estrofe da música.

terça-feira, 21 de março de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 009 - NOVO ENSINO MÉDIO É TANTA COISA QUE NÃO CABE NUM CARTAZ


 "É tanta coisa que não cabe num só cartaz" - Manifestantes de 2013

O Novo Ensino Médio (NEM) e O Eu Soberano

Pablo Spinelli

Vagner Gomes de Souza

Um debate sobre reformas do sistema de ensino exige muito de uma postura sobre o futuro que se deseja para o país a partir de um balanço da sociedade em que vivemos. Olhar para frente sem que se tenha uma perspectiva de Frente Democrática pode nos render uma sociedade fraturada com o perigo de colocar a Democracia em colapso. A aprovação do chamado Novo Ensino Médio ocorreu num momento de exposição da crise política e do centro democrático “esvaziado”. Muitos simplificam que tenham na Reforma do NEM vertentes do neoliberalismo, porém, também havia muito da expressão do individualismo nas manifestações de 2013 na sua variedade de cartazes. É bom lembrar que o foco da oposição nas ruas no Governo Temer foi de dupla natureza: a narrativa do golpe e a oposição à Reforma da Previdência – o que mostrou muito do esvaziamento dos sindicatos e da sociedade civil quanto à boiada que passava: a Reforma do Novo Ensino Médio e a Reforma Trabalhista (que após um silêncio forçado publicamente, não se fala em revogar, mas aperfeiçoar).

Quando nas ruas a indignação se fez presente através de uma “fantasia antipolítica”, nada mais factível que as ideias iliberais se fizessem presentes na elaboração do aparato legal que vai moldar o Novo Ensino Médio. Redução das disciplinas obrigatórias a se estudar como se fosse a busca por mais autonomia e permissão para que o “self-made man” fosse formado num ensino de “self educação”. É o caso típico do autoritarismo travestido de opções individuais que permitem a um jovem de 13 anos ter uma antevisão madura quanto ao seu futuro, posto que a escolha de itinerários formativos começam no primeiro ano do Ensino Médio.

No transformismo a emergência dos indiferentes ocorre em diversos segmentos. Os professores deixaram há muito tempo seu perfil de intelectuais formadores da sociedade, caso não se apoiem em argumentos mais históricos sobre determinados debates. Esse grupo renuncia ao seu papel intelectual para ficar preso a um economicismo da pauta salarial sem incluir os docentes na sua agenda propositiva.

 Então, vejamos que ao se fechar o século XX (2000) são lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), em quatro partes, com o objetivo de cumprir o duplo papel de difundir os princípios da reforma curricular e orientar o professor na busca de novas abordagens e metodologias.


Uma década se passou para que houvesse a Conferência Nacional de Educação (CONAE), com a presença de especialistas para debater a Educação Básica. O documento fala da necessidade da Base Nacional Comum Curricular, como parte de um Plano Nacional de Educação. O CONAE foi saudado pelas lideranças das entidades de educação como um necessário avanço na luta por uma nova trilha. Portanto, em 2010, na gestão do campo democrático já havia uma proposta de mudança do Ensino Médio que passou sem a mobilização – o que não significa ausência de debates – da sociedade civil organizada, posto que o Estado das Coisas era benfazejo às demandas corporativas.

Cabe ao historiador lembrar aquilo que as pessoas querem esquecer. No discurso de posse da presidente Dilma em seu segundo mandato – cujo tema era com forte viés positivista: “Pátria Educadora” – aparecia a necessidade de mudar o Ensino Médio para que fosse uma forma de diminuir a evasão escolar e o norte apontava para entender melhor o jovem de nosso tempo e saber como inseri-lo no mercado de trabalho e “no mundo dos adultos”. Essa política tem um nó górdio quando nos deparamos com as mudanças das relações de trabalho, pois se não há trabalho, o que farei na escola? – uma indagação legítima dos jovens dentro desse acordo. Portanto, o ovo da serpente não pode ser fulanizado no debate político. O que a sociedade deve discutir é o que pode sair dele: omelete ou a serpente? Como aumentar carga horária sem comida? E a pauta da alimentação converge com a do meio-ambiente e da saúde. Logo, a revogação é o caminho mais fácil para nada ser feito, ao invés de se pensar uma política pública interministerial.

No ano de 2017, a Lei nº 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para 1.000 horas anuais (até 2022) e definindo uma nova organização curricular, mais flexível. Muito estranho que o parágrafo abaixo não esteja em pleno vigor ao rigor da legislação educacional em muitas unidades de ensino médio quanto ao referente a carga horária.

“§ 1º A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017.”

Mais tempo de estudante na Escola significa mais custos orçamentários, sociais e políticos, uma vez que atravessamos os últimos três anos sob o inédito impacto de suspensão das aulas presenciais por causa da Pandemia da COVID 19. Sem nenhum balanço estrutural ou das cores do sistema de ensino, a gestão anterior do Ministério da Educação permitiu que as circunstâncias agravassem uma implementação de grande envergadura para a educação brasileira.

O Plano Nacional da Educação previa que em 2024 o ideal seria a meta de 85% dos adolescentes no Ensino Médio. A pandemia escancarou as dificuldades que temos nas macrorregiões do país. Peguemos apenas o exemplo da inacessibilidade de internet em todos os cantos do país na rede pública (uma vez que algumas disciplinas foram sugeridas a serem feitas em EAD). Além disso, para uma classe média empobrecida, a falta de um pacote de dados individual torna-se a realidade. Esse ponto mostra que um debate sobre o futuro tem que passar pela equidade, pela política pública sem voluntarismos, pois o que temos do NEM é NEM estudo e NEM trabalho. O empreendedorismo – a religião desse século – pode confinar as classes subalternas para as franjas do tecido social para um mundo sem república com resultados de patologia social que tem nesses jovens NEM-NEM um manancial de pessoas para alimentar tropas do tráfico e da milícia à prostituição digital. Esse tem sido o Projeto de Vida do mundo das coisas reais. Querer todas as coisas ao mesmo tempo é bom para ganhar o Oscar.


sexta-feira, 17 de março de 2023

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE A MEMÓRIA


 

Pensar para agir; agir para pensar.

 

Marcio Junior[1]

 

Não há dúvidas, inclusive para as pessoas comuns, que andam pelas ruas das cidades e seguem a vida, que estamos em tempos de mudanças profundas e dolorosas. Tempos de incertezas. Há, decerto, várias formas de “ler” esses fenômenos, inclusive a um nível que, ao falarmos de humanos, não é visível a olho nu.

Eric Kandel, neurofisiologista vienense que, em 2000, foi agraciado com o Nobel de Fisiologia e Medicina, relata em livro como que, para ele, a busca pela memória é, antes de tudo, uma preocupação pessoal e histórica. Aos 9 anos, filho de um judeu dono de uma loja de brinquedos na Viena de 1938, cidade em que tanto o desejo sexual quanto o antissemitismo se podiam sentir tensionados no ar, viu os citadinos se oporem firmemente tanto à chegada de Hitler à Áustria quanto à anexação desta à Alemanha nazista. Porém, na ocasião da chegada do exército alemão e posteriormente também a do Führer no dia seguinte, este foi ovacionado pelos vienenses, tendo os judeus que apagar as pichações feitas na rua, com mensagens contra a anexação.

Seu pai estava lá, esfregando o asfalto com uma escova de dente. Isso o levou e a família a emigrar aos EUA, onde estudou marcado por este e outros tristes episódios biográficos. Assim, os estudos de como os neurônios se comportam, conjuntamente, para que seja possível a aprendizagem e a memória, buscou responder antes de tudo como, de um dia para o outro, parte considerável do povo da sua cidade natal simplesmente esqueceu e aderiu, sem filtros, à experiência nazista.

Ao lembrar-se dos nazistas adentrando a sua casa enquanto brincava com seu carrinho azul, do pequeno apartamento da família em Viena, da viagem aos EUA com o irmão, o seu corpo captou tudo que ocorria através de várias vias sensoriais e seu cérebro processou essas informações a partir de uma complexa rede de células que se comunicam de forma igualmente complexa. Há uma relação complexa do mundo exterior, ambiental, com o interior do corpo e do cérebro. Descobrir estes mecanismos, porém, não surgiu de algo centrado no eu sem o nós. Havia, decerto, uma preocupação intelectual que ultrapassava o indivíduo; um contexto a ser compreendido. Afinal, corre-se um grande risco ao operar conceitos, inclusive os das ciências naturais, sem tempo e espaço.

Assim, a falência da educação é transpassada por uma falta de rigor que tem consequências, inclusive, cerebrais. Afinal, é também a partir do contato com o outro, ocorrem processos a nível molecular: basicamente, ao vermos e/ou sentirmos algo, essas informações chegam por sinal elétrico aos nossos neurônios responsáveis por elas que, por sua vez, liberam neurotransmissores para enviar essas informações em cadeia a outros neurônios, com endereços certos. Ao fazerem as leituras dessas informações, os genes presentes nos núcleos desses neurônios mudam os perfis das proteínas produzidas por eles, o que muda também a forma das sinapses, isto é, a comunicação bioquímica e elétrica entre essas células, acarretando, à nível molecular, na aprendizagem e na memorização. Porém, não se trata de um processo isolado nas nossas cabeças: ele está em constante interação com o mundo em que vivemos, nossas relações com as pessoas e com a história, e a ausência de educação cuidadosa e bem feita tem consequências, inclusive, a nível celular. Nesse sentido, não seria, de certa forma, sugestivo o uso do arcabouço conceitual de um Durkheim? Afinal, as sociedades já estavam aqui quando nascemos e, assim como o corpo, o cérebro e a mente, também são capazes de aprender, esquecer, adoecer e sofrer.

Em tempos de certo "narcisismo normativo", em que as preocupações das pessoas estão demasiadamente voltadas ao seu interior e seus sentimentos, sensações e outras variáveis subjetivas e biológicas que não apenas bastam como também se tornam sobretudo normas para julgar quem é superior ou inferior na hierarquia da sociedade. Neste contexto de fácil aderência a um patrulhamento ao que é aprendido, "não pode haver intelectuais se não há leitores", diz a manchete de uma entrevista de Habermas ao El País, em 2018. A título de exemplo e um breve exercício, quem somos nós, enquanto Brasil? Estas e outras perguntas podem e devem ser respondidas através do rastro deixado pelo nosso pensamento social: somos americanos, mas americanos ao nosso modo, ibéricos, mestiços, marcados pela escravidão e falamos português. São as características primas, se estudadas de forma competente, para a compreensão e construção progressiva da nossa democracia e nossa República, e não podem ser esquecidas.

Porém, os tempos não deixam de ser oportunos: as agendas em voga, principalmente a ambiental, nos obrigam inevitavelmente a sermos seres globais, reconhecendo que não podemos enfrentar nossos problemas sem o outro e o outro não pode enfrentá-los sem nós. Logo, para que as respostas a esses problemas sejam dadas à altura deles, seguir o exemplo de Kandel torna-se sugestivo. É preciso que as novas gerações tenham acesso, desde a infância, ao melhor que a humanidade fez para que existam condições de responder aos problemas que são, cada vez mais, criados por ela própria.





[1] - Doutorando pelo CPDA/UFRRJ.

domingo, 12 de março de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 008 - QUARESMA: AJUSTES NECESSÁRIOS NA FRENTE DEMOCRÁTICA

Acertos e provações

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O Carnaval passado não foi muito favorável para leitura e reflexão, pelo menos para os governos. As chuvas, ou melhor, a negligência com elas têm sido vorazes, terríveis e destrutivas, uma grande catástrofe das que vem acontecendo cada vez mais e não foi diferente há pouco.

Alguns feriados carnavalescos foram suspensos. Alguns sopraram a ideia de que tinham de ser adiados como fez uma cidade da região metropolitana carioca. De fato, o Carnaval que esteve desaparecido com a pandemia e sempre costuma estar no radar das altas responsabilidades governamentais.

O governo Lula e Alckmin fez bem em ter suspendido as suas férias momescas por ocasião do desastre do litoral paulista, e de imediato ofereceu a ação republicana responsável e foi apreciada pelos cidadãos tal como ocorrerá com a emergência yanomami.

Parece que o pior já passou e o país, e como nas ocasiões anteriores, vem dando o melhor de si.

Os bombeiros em primeiro lugar, as Forças Armadas e os Policiais, autarquias e funcionários públicos, trabalhadores, vizinhos e cidadãos apoiados pela ajuda de todas e todos mostrou que o país permanece a ter capacidade de resiliência diante das adversidades e uma generosidade de espírito que nos fez muita falta à bem pouco tempo.

É claro que a prevenção está longe de ser como deve, também é claro que as causas das chuvas não se enquadram apenas como fenômenos naturais. No antropoceno existe um percentual considerável da participação das humanidades, seja por motivos culposos (por leniência) ou dolosos. Ambos são sérios e não  devemos ignorá-los. Na ausência de uma Autoridade Climática (e que talvez nunca venha ou tarde a vir), os poderes constituídos tem o dever de proceder a uma investigação aprofundada e apurar a magnitude das componentes que deram causa as tragédias.

O esforço terá agora de se dirigir na reconstrução da devastação das chuvas, queimadas e desmatamentos com realismo e aplicação. O pior é fazer promessas no ar que podem se transformar em frustrações dolorosas em poucos meses. É preciso exercer a crítica, mas também ter prudência na análise do ocorrido. O Brasil não tem mostrado uma capacidade de resposta melhor à de outras experiências planetárias diante de catástrofes comparáveis.

É claro que as medidas para prevenir os riscos de desastres no país terão que ser reexaminadas à luz destas sucessivas tragédias. As medidas regulatórias devem situar a proteção dos assentamentos das humanidades nas áreas metropolitanas e turísticas, lembrando sempre que está ultima trata de uma atividade importante para a economia nacional e que é preciso aliar o bem principal de proteger as vidas com o esforço do desenvolvimento.

Liderar um país com responsabilidade é fruto de reflexão constante e não de impulsos. Como não entender que o Brasil está sob grande pressão econômica e social neste ano e nos próximos, mesmo quando a situação econômica mundial não apresentará alguma melhoria que nos ajudaria?

Como não entender que a necessária reforma tributária exigirá um esforço de acordos, mas não porque nenhuma força política tenha grande maioria? Como não inferir que essa pauta exigirá esforços claramente suprapartidários?

O que está em jogo hoje não são os vacilantes sonhos de todos os tipos, mas sim o perigo de que o país volte para o pior, que os nossos indicadores económicos e sociais estagnem ou desçam, e que a nossa convivência retorne a dureza dos últimos anos. Não é apenas um perigo do aprofundamento do declínio político, social e econômico, é também o perigo de se enraizar o declínio de nossa cultura cívica.

Não podemos nos acostumar a pensar que nosso sistema educacional seguirá sem melhorar e que as atividades culturais de qualidade continuarão diminuindo, que nossa língua será cada vez mais pobre, como se não houvesse o uso repetitivo e abusivo de rabiscos em nossas conversas e que tem sido cada vez mais curtas, com longos silêncios até nos ministérios.

Também não devêssemos pensar que é normal que reações irritadas e insultos fáceis tenham uma presença na vida cidadã e/ou se acostumar com o fato de que a leitura é uma atividade estranha para muitos jovens, quase uma raridade.

Nesse caminho, a atratividade do Brasil se abrigará apenas na sua pujante paisagem majestosa, enquanto o nosso povo persista se tornando cada vez mais ruinoso.

Claro, surge a pergunta, como reverter o curso? A resposta em sua gama de ações republicanas e democráticas é longa e complexa, mas o passo inicial não. É um esforço coletivo e plural que não faz da adversidade um muro intransponível contra os acordos básicos de cooperação que toda sociedade exige para avançar.

Trata-se de abrir-se à esperança de uma convivência de maior qualidade que evite que nosso ethos cidadão da brasilidade seja novamente invadido pela deterioração, insegurança e barbárie.

 

11 de março de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.