quarta-feira, 8 de março de 2023

OSCAR 2023 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR PABLO SPINELLI


Nada de Novo na Frente

Em 60 dias do nosso “Capitólio”, a cultura política no país não estabeleceu um meio de se fazer estabelecer a superação das contradições num Governo que ainda não se apresentou como de “transição”. O “3”, mesmo que tenha características diferentes já se coloca na linha de uma continuidade como se não tenhamos vivido 2013, 2016, 2018 e se esquecem das sequelas da pandemia de COVID 19. Nada de novo na Frente é uma temeridade diante do vazio a se pensar o Brasil no contexto das novas tendências da cultura.

Nosso objetivo nessa entrevista é situar o leitor nesse momento de crise das instituições da Democracia e fazer com que se possam perceber suas referências na produção cinematográfica. Algumas sugestões apontadas nas respostas abaixo demonstram o quanto a fratura da política de frente democrática no contexto global diante de uma Guerra que se prolonga na Europa exige que tenhamos uma melhor formação para a juventude. No ano passado alertávamos que a "privatização" da criatividade poderia atomizar ainda mais nossa sociedade. Estamos cada vez mais vulneráveis ao imediatismo.

Não podemos deixar de lado a República e a Democracia. Não se convida apenas para a leitura, mas que essa entrevista seja uma possibilidade de debate de como melhor entender nosso mundo contemporâneo. E VOTO POSITIVO, mais uma vez, publica uma entrevista com o Professor Pablo Spinelli que faz do cinema uma trincheira para tentar resgatar muitos jovens que saem do senso comum para melhor compreender os impactos do pensamento iliberal nas redes sociais.



1) A Edição do Oscar 2023 sugere alguma mudança em seu conteúdo de opinião ou haverá o aprofundamento de tendências anteriores?

Creio que houve uma mudança da academia por conta da perda de audiência e da importância da premiação para criação de um público. O Oscar era uma bússola para assistir aos filmes indicados, os jornais publicavam as indicações com destaque e ficar fora dessa conversa era ser um “alienado”, especialmente nas camadas sociais com maior formação educacional.

O discurso da bolha da costa leste americana, com certa influência das patrulhas acadêmicas identitárias e em resposta à América “profunda” (a mesma que foi mobilizada desde o 11 de Setembro até o ataque ao Capitólio) acabou por fazer perder o apoio do “homem comum”. Nos anos de Tik Tok e netflixação do olhar, o que representou o chatíssimo “Nomadland”? A refilmagem de sessão da tarde “No Ritmo do Coração”? O polêmico e fraco “Green Book”? E o identitário “Moonlight”? E “Argo”superou o gosto do público de “Django Livre”? O Oscar tem sido o apoio a um estudo antropológico ou etnográfico para dizer que os EUA do Afeganistão, do Iraque e que não quer a paz no conflito europeu atual é legal com toda a humanidade. Virou um prêmio mais étnico do que por mérito. O que vemos agora? Uma necessidade de dialogar com o público. Os jovens foram convocados em “Nada de Novo no Front” e em “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”. Os liberais conservadores dos anos Reagan estão felizes por “Top Gun: Maverick”. Mulheres estão presentes no libelo “Entre Mulheres” que fala da religião e misoginia que agradará os coletivos, talvez não o coletivo e em “Tar”. A pauta ambientalista – um dos grandes temas contemporâneos – está em “Avatar 2”. A esquerda do século passado pode se encontrar no “Triângulo da Tristeza”, uma piada pronta. Europeus estão em “Os Banshees de Inisherin”. E Hollywood se premia com o pupilo que dialeticamente a destruiu, Spielberg, no filme autobiográfico e com um dos ícones mais importantes do século passado, “Elvis”, do injustiçado Baz Luhrmann.

Em suma, desde 2013, quando o filme vencedor faz parte de uma média de quantas vezes foi citado entre os primeiros lugares houve aquilo que Tocqueville nos sinalizou sobre a América: o paraíso da mediocridade no sentido do termo. Apesar de todas as minhas rabugices a lista de indicados sempre tem filmes acima do que temos ao longo do ano. A premiação caminha para o Nobel de Literatura. É bacana, mas ninguém atualmente lê um autor por conta do prêmio como no passado assim como ninguém – além de certos nichos – verá um filme por conta de um Oscar, mas pelo que os algoritmos e um website como o desprezível Rotten Tomatoes (propriedade da Warner) indicam.

 

2) Na sua opinião, a dupla indicação de Nada de Novo no Front (Melhor Filme – Melhor Filme Estrangeiro) o coloca como favorito para derrotar Argentina, 1985? Ou há algum filme “correndo” por fora?

Sim. O tema da guerra está na pauta. O historiador Hobsbawm em vários livros nos disse que tivemos no século passado poucos momentos de paz, muito pequenos. E que não via algo diverso para esse. O modo de guerrear talvez seja diverso. De qualquer forma, para uma juventude que tem fetiche pelo militarismo e armamentos a pergunta é óbvia: quer estar lá? O filme alemão também de forma sutil nos aponta que a carne mais barata do mercado é a da classe subalterna.

O filme argentino ganhar seria uma benção para o governo como foi a Copa. Para nós o entendimento que “sem anistia” é não ter julgamento justo e equilibrado, portanto, a ausência da instituição democrática, diverso do que o filme argentino expõe. Os roteiros argentinos deveriam ser mais estudados nas faculdades de cinema e de letras no Brasil. Eles não fazem tratados sociológicos. Eles contam uma boa história. Caso o sul do mundo vença será interessante. O terceiro prêmio para a Argentina sobre o mesmo tema. Começou com A História Oficial (1985). Veio depois O Segredo dos Seus Olhos (2009). E nós aqui vamos de “Marighella”.

3) Na categoria animação, avalia a possibilidade da vitória de Pinóquio?

Sim. É o melhor dos filmes. Deveria ter sido indicado como principal. Um trabalho artesanal do Guillermo Del Toro, premiado pelo “A Forma da Água” (2017), já resenhado nesse blog democrático e não visto com bons olhos. Espero que a fábula tristíssima que mostra o fascismo para crianças e adultos tenha melhor fortuna. Curiosamente, um dos filmes mais vistos no Brasil no ano passado e pouco debatido. Estranho. Talvez uma fábula nigeriana ou senegalesa tivesse mais impacto aqui. O filme mostra a importância da Frente Democrática para os momentos que vivemos. O Gato de Botas 2 é um filme muito divertido, anárquico, resgatou a linha do Shrek e trata do difícil tema da morte com muita leveza. Mas Pinóquio anti-Disney é o melhor.

4) Quais seriam suas “apostas” para Melhor Roteiro Adaptado e Original?

O melhor roteiro original para mim seria Triângulo da Tristeza ou Glass Onion, ambos com ferinas ironias ao mundo contemporâneo. Temos a luta de classes no primeiro, as Big Techs e o banditismo dos Jobs, Zuckemberg e Musk da vida, no segundo. Mas creio que “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” vença. O que não seria de todo o mal, visto que ele abordou com muito melhor acabamento e maturidade a ideia do multiverso que fracassou na Marvel (Disney) e “Travessia” (Globo). Quanto ao Roteiro Adaptado, um destaque para o escritor premiado com o Nobel, Kazuo Ishiguro, o que dá um verniz mais autoral para a indicação. A indicação a Top Gun: Maverick é uma gentileza sentimental ao último grande astro do cinema, Tom Cruise. Caso seja a esquerda que não vota para presidente nos EUA, ganha “Entre Mulheres”, caso contrário, “Nada de Novo no Front” ou “Living”.


5) A categoria Melhor Direção poderá ter alguma surpresa?

A surpresa será o Spielberg – que agradece a presença do público na sala de cinema pessoalmente – ganhar. A dupla Daniel Kwan-Daniel Scheinert deve levar por “Tudo em Todo o Lugar”. A Academia foi feliz na escolha dos diretores. Todd Field corre por fora por “Tár”. Os outros são azarões.

6) Em relação aos atores coadjuvantes, tanto feminino quanto masculino, como avalia as nomeações?

Bem, nessas categorias mais visíveis ao público há uma demonstração da diversidade étnica decorrente do aumento dos votantes espalhados pelo mundo. É uma premiação que quer ser mais internacional, portanto, há a atriz negra, a asiática, a europeia. Curiosamente, a premiação está entre duas veteranas que já fizeram trabalhos melhores, a rainha de Wakanda, Angela Basset concorre com a eterna irmã de Michael Myers, de “Halloween”, Jamie Lee Curtis, que teve uma boa atuação no esquecido (e bom) “True Lies”. Há algumas semanas tendia para Basset, que viveu uma grande Tina Turner num filme que deveria ser revisitado. Creio que ganhe a filha do ator Tony Curtis. Para ator coadjuvante há uma lei que diz que dois atores do mesmo filme divide o prêmio. A minha preferência, mesmo assim, seria Brendan Gleeson por Os Banshees de Inisherin. O trabalho de Bryan Tyreen Henry em “A Passagem” deve ganhar – por mérito.

 

7) Na categoria Melhor Atriz, será o ano de Cate Blanchett, quase 10 anos após vencer na atuação em Blue Jasmine, uma vez que ganhou o BAFTA e o Globo de Ouro?

A atriz ganhou um Oscar por um diretor cancelado, sem anistia. O Oscar nunca ligou para o BAFTA, infelizmente. E o Globo de Ouro passou a ser pateticamente maldito. Mesmo assim, a sucessora de Meryl Streep deve ter uma disputa acirrada com Michelle Yeoh, uma atriz malaia-chinesa que foi esquecida após O Tigre e o Dragão (2000), que hoje os jovens devem achar que seja um filme velho. Como há dois anos, apostaria um pedaço de picanha na chinesa. Destaco a intensa atuação da ótima e carismática Ana de Armas, a sucessora de Penélope Cruz, como outro ícone pop, no sofrido e desgastante “Blonde”, uma biografia romanceada sobre Marilyn Monroe.

 

8) Na categoria Melhor Ator, parece que teremos uma disputa mais “apertada” ou há um favorito?

Hollywood gosta de redenções. Brendan Fraser é a encarnação desse modelo. Ele sempre foi um bom ator, subestimado por alguns filmes que fez mais jovem. Quem o viu no filme que “revelou” Ian McKellen (Magneto/Gandalf) para os EUA, chamado “Deuses e Monstros” (1998), não é uma surpresa seu favoritismo. Ele interpreta com os olhos e com o peso da maquiagem um professor com obesidade mórbida, cardiopata, bissexual, que quer reconquistar sua filha. Impossível não ganhar. Austin Butler carregou com coragem a interpretação de Elvis. Seria um grande favorito se não fosse o Fraser. Colin Farrel corre por fora, mas seu passado rebelde ao sistema hollywoodiano talvez não o coloque com a estátua careca nas mãos. Bill Nighy é um ótimo ator quando bem dirigido e Paul Mescal fez um excelente trabalho em Aftersun.

9) Por fim, na sua opinião quem merece ganhar o Oscar por Melhor Filme?

O termo foi merecer. Gostaria de Nada de Novo no Front. A produção foi muito caprichada, igual ou melhor do que “1917”. Seria muito bom ter um Spielberg de volta, mas parece que ele terá seu nome lembrado em deferência à Nova Hollywood dos anos 1960-1970 como o Scorsese. Creio que vá dar um filme que aborda uma pessoa com problemas com a Receita Federal, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, um misto de aventura, ficção científica e surrealismo. Foi o filme mais visto nos EUA depois de Avatar e Top Gun: Maverick, logo, o reencontro do prêmio com o público.


sábado, 18 de fevereiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 007 - CARNAVAL: PARA QUE A DEMOCRACIA ENTRE NA AVENIDA


A frente democrática, o centro político e as reformas

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Fevereiro, coração do Carnaval Brasileiro, quando o país trabalha minimamente. O tempo passa com um ritmo diferente, certa languidez envolve tudo o que acontece, parece que de repente o Krónos, o tempo real segundo os gregos da Antiguidade, o tempo da atividade, pressa, ação e ambição, é deslocado em apenas um mês para os Kairós, "tempo para si", para certa introversão, para a contemplação, do prazer e do descanso dos longos crepúsculos. O tempo em que o celular perde sua urgência insólita, a menos que seja usado para fins recreativos.

Pode ser também um momento de reflexão, de interrogação sobre o sentido das coisas e da vida, do que foi feito no ano anterior e do que nos espera a partir de março, quando os músculos que dormiam despertam e a ambição que descansava voltam a se triturar nos sonhos tão mesquinhos, parafraseando Cartola em seu samba O mundo é um moinho, que bem poderia ser uma homenagem a Karl Polanyi.

A reflexão deve ser particularmente importante para aqueles da Frente Democrática que colocaram, por decisão da vontade popular, a liderança do país em seus ombros.

Se o fizerem honestamente, não poderão ficar satisfeitos com o pouco que fizeram no pouco tempo, e não só por causa de sua inexperiência na condução dos negócios públicos, mas também por causa de sua orientação confusa pela ausência programática que sequer moldou. Parece, em todo caso, um governo de partida lenta.

Na verdade, não deve ser fácil entender que a ação pública não é pura questão de vontade e que a prudência, a gradação e o andar sereno não foram desculpa para acomodar pusilânimes, mas sim uma opção responsável para quem deseja conseguir fazer as mudanças sociais sólidas democráticas e republicanas com o apoio dos cidadãos.

Não seria justo, porém, fazer uma avaliação totalmente positiva nem negativa do que foi feito nesses quase dois meses do atual governo.

O governo da Frente Democrática com Lula e Alckmin a frente tem mostrado certa abertura em vários assuntos nacionais e internacionais, moderou posições anteriores e até mudou de opinião como convém a Chefes de Estado quando conclui que as suas ideias não eram boas.

Resta, porém, um longo caminho a percorrer para corrigir rumos e evitar erros. Porque o ano de 2023 será um ano difícil e com muitas armadilhas. O principal para o setor político que nos governa será entender que reconstrução e via democrática não devem se opor.

Historicamente, os ímpetos das reconstruções contemporâneas nunca puderam coexistir bem com o sistema democrático e republicano. Exigem como água a sede da impostura para compelir suas verdades que tendem a ser absolutas.

Nisso eles são semelhantes ao mundo dos reacionários. Veja a tentativa de golpe que estava se formando por trás das violentas manifestações ocorridas nos idos próximos passados de oito de janeiro.

A expressão mais clara dessa reconstrução da Frente democrática benfazeja foi, sem dúvida, o estender as mãos aos nossos ianomâmis motivados por uma solidariedade que fortalece nossa institucionalidade e ajuda a reforçar mudanças democráticas, compartilhadas e inclusivas.

A resposta popular foi clara e foi à demonstração do bom senso democrático. A prova disso é que tudo se fez de acordo com nossa Constituição, que reconstrói a confiança popular no processo constitucional de forma pluralista, que esperamos venha a provar que ela responde bem aos desafios do século XXI, em que todos nos sentimos representados.

Essa lição decisiva deve ser transferida para as diversas políticas e reformas públicas, em sua seriedade e profundidade, pensando no longo prazo e que dá ao centro politico na Frente Democrática todas as credenciais de colaborador para a popularidade inicial do governo.


Se a experiência política ensina alguma coisa à carnavalesca muito como mostra Júlio Lopes com o seu Brasil: A nação carnavalesca, é que a pura ação de comunicação não pode, em um sistema democrático e republicano, transformar coisas sem valor em pepitas de ouro.

É possível melhorar nos próximos meses? Sempre é possível, mas para isso a conduta do governo deve ser do espaço para maturidade e experiência, que deve ser ampliado em seus quadros gerenciais.

Só de falar de acontecimentos recentes, num país como o nosso, que passa por graves problemas, não podemos nos permitir um carnaval de descuidos. Também não é bom armar acusações ministeriais e tampouco instrumentaliza-las banalmente nas batalhas políticas.

Seria mais do que desejável que este Carnaval incluísse além do bom samba muita reflexão e boa leitura, que Oxalá passasse por uma releitura crítica dos nossos autores preferidos, embora não nos custe nada atravessar o Rubicão intelectual e ler tantos outros sobre a teoria democrática e republicana. Que pudessem conhecer os percursos, virtudes e erros das grandes figuras políticas que marcaram as experiências democráticas dos últimos dois séculos.

As leituras poderiam permitir argumentar solidamente contra aqueles que deliram com a moeda única para a América, quando a integração continental ainda não consegue superar o estado de prostração a que a levou a retórica irresponsável de muitos líderes da região em nosso século.

Administrar um país é coisa séria, e sem uma ampla cultura política para à Frente Democrática, puras boas intenções nos levarão diretamente a pavimentar o caminho para o inferno.

 

18 de fevereiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 006 - CRISES DA DEMOCRACIA

Desemperrando as Democracias

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Que as democracias na América vinham sendo emperradas podia parecer ser uma lenda a poucos anos atrás. Nos últimos tempos não mais. Os motivos desse estado de coisas são bem conhecidos e os eventos também. Mas é conveniente revisar rapidamente três histórias e suas raízes.

Brasil, Peru e El Salvador são as experiências icônicas da conjuntura. Em 8 de janeiro próximo, uma multidão invadiu o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palacio do Planalto da Presidência em Brasília, protestando contra uma fake news de fraude eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem a menor evidência correspondente. Eles causaram estragos, fizeram com que imagens vergonhosas - análogas a do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021 - fossem transmitidas em todo o mundo e fizeram com que o novo governo recorresse as prisões, investigações e atos simbólicos em defesa da democracia, mostrando sua robustez. Não tanto pelos manifestantes, mas pelo grande número de brasileiros que, de fato, acreditam nessas teorias da conspiração sobre o resultado das eleições. O evento vai além da ideia dominante de polarização, que pode até existir em outros países ou mesmo no Brasil em outros momentos.

O exemplo do Peru é diferente. A disputa lá não foi sobre os resultados eleitorais, mas em relação ao conjunto de instituições existentes no país. Certamente, as eleições de 2021, onde Pedro Castillo foi eleito no segundo turno por pequena diferença, foram questionadas por seus adversários. E o Congresso peruano, poderoso devido ao sistema híbrido que existe no país, passou um ano e meio dificultando a vida de Castillo, tentando destituí-lo em diversas ocasiões, acusando-o de corrupção e incompetência.


O país de Mariátegui não enfrentava um simples conflito de poderes. Por trás do confronto havia - e hoje mais do que nunca - divisões de classes, regionais e étnicas. Apesar do bom desempenho econômico insustentável deles no conjunto da América desde o ano 2000, subsiste uma reivindicação ancestral da maioria das peruanas e peruanos contra exclusões multifacetadas. Os protestos que começaram no sul do país após a destituição de Castillo e se estenderam até Lima foram violentamente reprimidos - com mais de 50 mortos - e às vezes parecem assumir um caráter quase insurrecional. Os manifestantes exigem a renúncia da Presidente, que substituiu Castillo, eleições imediatas em vez de 2026 - como anunciou Boluarte - e uma Assembleia Constituinte.

Ao contrário do Brasil, onde o andamento econômico tem sido mais difícil, e sem que se culpe a democracia representativa pelos graves atrasos sociais, no Peru esperava-se uma prosperidade graças à democracia, ou pelo menos uma profunda redistribuição. O sentimento também surgiu em outros países: dezenas de milhões de Americanos pedem à sua democracia - nova ou antiga - bem-estar, saúde, educação, moradia, preços justos e melhores empregos. A rigor, a democracia serve para retirar legalmente os governos que não entregam bons resultados e, quando possível, para distribuir de forma mais justa e sustentáveis o crescimento econômico, quando ele existir. Mas isso aconteceu nas velhas democracias após intermináveis lutas, reformas, guerras, eleições e crises: não foi feito de um dia para o outro. As peruanas e peruanos sentem a necessidade premente em exigir mais de sua democracia e isso é bom quando conduzido democraticamente, mas sempre tendo a clareza de que por ela esse intento levará tempo.


Em El Salvador, a democracia deve muito aos seus cidadãos. Ao final de décadas de autoritarismos, violências, pobreza e exílio entre outras intempéries, os acordos de paz de 1992 abriram caminho para um sistema bipartidário de democracia representativa que poderia ter mudado as entranhas do país. As partes em guerra – a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e as elites salvadorenhas, com o Exército, empresários e partidos políticos - deram uma grande lição de sabedoria e habilidade. Mas tudo o que se seguiu foi para minar essas conquistas. Os quase 30 anos seguintes foram de destruição. A corrupção atingiu extremos e as violências das gangues fez o reembarque no caminho autoritário supostamente apagado.

Nayib Bukele, após eleito em 2019, instalou outra vez a mão autoritária no país. Ao obter resultados contra a violência, o povo o aplaude de acordo com as pesquisas de popularidade, e quase ninguém defende os acordos de paz de Chapultepec e/ou a democracia hoje precária que eles deram origem em outrora. Ele é o ditador mais legal do mundo, um dos líderes mais populares do mundo, e está prestes a ser reeleito - até agora ilegalmente - por ampla margem. Quase toda a sociedade parece aprovar a regressão autoritária, acreditando que isso resolverá seus problemas.

Por enquanto, os partidos, movimentos e lideranças que contribuíram para a instalação de regimes democráticos na América - exceto as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela - tem mantido o ideal democrático vivo, apesar de todas as suas deficiências como ficou claro no encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, as instituições construídas ao longo de várias décadas são preferíveis a qualquer ditadura, mesmo que ainda não proporcionem o tão desejado e digno bem-estar. Novos eventos surgem na Argentina - pelo crescente conflito entre Executivo e Judiciário - e no México, ante a investida do Executivo contra a autoridade eleitoral. A América não é a Europa, onde há tentações autoritárias em vários países - e em alguns governos, como o da Hungria - tem sido rejeitado, até agora, pelos eleitorados sensatos. Mas desemperrar as democracias é o caminho a ser seguido planetariamente.

 

26 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 16 - A PÁLIDA CEGUEIRA DA SERPENTE

O Pálido Olho do Horizonte

Pablo Spinelli[1]

Dedicado à lembrança dos trinta anos das chacinas da Candelária e de Vigário Geral – o ovo da serpente carioca.

Os acontecimentos em Brasília no dia 8 desse mês abre um leque de questões que o espaço não permite, mas ao vincular com o filme em questão, podemos abrir uma seara importante seja como análise do passado, seja como proposta de intervenção no porvir. Qual a faixa etária dos manifestantes de 2023? Haveria uma relação com uma parte da sociedade que aos 25, 30 anos participou dos movimentos de 2013? E os cinquentões, será que colocaram o verde e o amarelo nos rostos enquanto “cara-pintadas”, movimento que trouxe à luz uma liderança da UNE na época? E os militares, tanto os do Exército, como os policiais, que tipo de ensino há nas academias? O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Governo Bolsonaro foi alinhado ao Ministro Sílvio Frota, um dos líderes da “linha-dura” do exército que foi enquadrado pelo então Presidente Geisel na transição da “Ditadura Escancarada” para a “Ditadura Derrotada” iniciada após o falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas instalações do II Exército, em São Paulo, sendo que este nunca defendeu a luta armada como Marighella; mas a luta pela política, com a defesa pela Frente Democrática.

Essas perguntas sobre a cultura política na formação do seio militar são importantes porque não houve em nenhum momento desde a redemocratização o diálogo para uma revisão acerca de termos e conceitos da Guerra Fria, como por exemplo, a permanência da Doutrina de Segurança Nacional que tinha (e tem) como princípio a busca pelo inimigo interno, anacronismos conceituais que perpassam gerações de soldados a futuros generais e coronéis da AMAN, dentre outras instituições. Além disso, as irrupções da massa nas ruas sem a política – ou com a sua carnavalização com adesão às paixões extra-institucionais – desde os anos 1990 em diante não sofreram uma contribuição crítica nas escolas, nos sindicatos, nos partidos políticos ou pela mídia tradicional. Com as mudanças estruturais – e a estrutura sempre fala -, houve um brado, um grito de caráter individualista, ególatra, iconoclasta (a destruição do patrimônio cultural em Brasília com a visualização nas redes sociais sem se preocupar com o amanhã demonstram o paroxismo desse brado) no último dia 8.

O filme O Pálido Olho Azul, que estreou há dias na Netflix tangencia nossas perguntas. O filme começa com um enforcamento à Herzog – pernas arqueadas que demonstram que foi um homicídio – cujo corpo sofreu uma profanação que será investigada. O detalhe é que o morto era um cadete das boas famílias americanas na famosa academia militar de West Point.

A pedido do oficial Hitchcock (sim, bela homenagem em um filme de suspense com muitas loiras), a investigação caberá ao bem afamado  Augustus Landor (que tem a religião no nome), interpretado pela excelência costumeira de Christian Bale, que carrega em cada ruga a tristeza da tragédia familiar do personagem. Em um cenário de cores frias e paixões e sangues quentes, com uma fotografia de muitos, muitos azuis, o investigador Landor tem o apoio do jovem cadete Edgar Allan Poe (aquele que será o autor americano mais conhecido do mundo gótico, sombrio, romântico e que é o patrono da escola de Wandinha), vivido com competência e sensibilidade por Harry Melling, “primo” de Harry Potter.

A narrativa é de um filme lento, mas não entediante, que acaba por envolver o espectador mais na relação entre o investigador e o jovem poeta do que na resolução do crime em si. Como de hábito, após um cadáver haverá outros. O isolamento do lugar com um serial killer à solta nos remete ao icônico O Nome da Rosa (1986). Cumpre chamar a atenção para o binômio que Landor enfrenta e discute: o fanatismo religioso – instrumentalizado para interesses egoístas – e o militarismo (similar às críticas de Stanley Kubrick em alguns de seus filmes). Da boca de Landor/Bale surge a pergunta: “que tipo de homens vocês (militares) estão formando aqui?”. Levando-se em conta a faixa etária dos cadetes e que o filme se passa em 1830, aqueles jovens foram formados para serem os generais no mais sangrento conflito estadunidense: a Guerra de Secessão (1861-1865). Essa pergunta também está presente no filme A Fita Branca (2009), assim como está ecoando na nossa conjuntura. O que foi formado até aqui? O que será formado adiante? Seria o caso de parafrasear o corvo do poema de  Allan Poe e diante do ocorrido dizer: “Nunca mais! Nunca Mais!”. Não adianta um manancial de boas intenções sem a práxis democrática universalista. Do contrário, tudo será pálido e cinzento, como no final do filme.

Pálido Olho Azul (2022)- disponível: Netflix

Direção: Scott Cooper

Roteiro Scott Cooper

Elenco: Christian BaleHarry MellingGillian Anderson

 




[1] Professor de História da Rede Privada de Educação Básica do Rio de Janeiro.

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 15 - CINEMA É HORIZONTE

Contatos Imediatos com o Cinema

Gina Lollobrigida, PRESENTE!

Por  Vagner Gomes de Souza

 

Entrar num cinema é uma diversão cada vez menos associada as camadas populares no aguardo da “Terra Prometida” da picanha e cerveja. As salas de cinema saíram da convivência com as ruas das grandes metrópoles e foram inseridas nos Shoppings Centers como já denunciava uma das temporadas de Stranger Things. Além disso, o avanço tecnológico do audiovisual reduziu as intervenções do homem como se um filme fosse uma obra de arte “pasteurizada” na inteligência artificial. Por fim, o filme foi “uberizado” pelas redes de streeming em ascensão nesses tempos de pandemia. Mais dinheiro, mais tecnologia, mais mercado, morte dos empregos gerados pelo ir ao cineminha. Na residência o telespectador fica isolado do espetáculo do cinema e pode fraturar um filme para cuidar seus outros afazeres. Ganha espaço as séries em episódios de menos de 40 minutos e um filme se fragmenta mais ainda na mente do público. As cenas de ação ganham mais velocidade e menos tempo é dado para longos diálogos ou longos dramas. Não se espera ouvir os personagens ou destrinchar seus sentimentos, mas simplesmente compartilhar um pouco de adrenalina com menos reflexão. Aparentemente, o grande cinema estaria morto pelos novos tempos, que são sombrios, pois devemos refletir mais e nos reeducar a ouvir os outros.

Então, eis que o diretor de Indiana Jones (Steven Spielberg) nos faz o convite para viver a  emoção do cinema numa trajetória de uma família Os Fabelmans deu título ao filme que se apresenta como a frente democrática na resistência as derivas autoritárias que esse mundo sem cinema está fazendo. O diretor não aceitou fazer um lançamento nos streemings, pois deseja que o público vá ao local aonde ele teve seu primeiro contato com a sétima arte. Antes da exibição, nos lembrando de Alfred Hitchcok que aparecia em seus filmes, Spielberg faz um agradecimento ao público que saiu de sua residência para viver um momento de sonho e emoção no cinema. O filme começa em 1952, tempos em que o macarthismo (caça aos comunistas norte-americanos como atividade contra a pátria) desestruturava a vida de muitos artistas e intelectuais que tinham se aproximado da União Soviética por causa da luta antifascista[1].

Os pais levam Sammy a sua estreia ao cinema para o sugestivo filme “O Maior Espetáculo da Terra” de Cecil B. DeMille. A reação do garoto ficou entre o susto, mas o desejo de buscar entender aquele processo como se fosse a metodologia de ensino do incentivo pela curiosidade. Da infância até a fase jovem adulta ele passa por esse processo de luta para buscar adquirir um entendimento do que lhe está ao seu redor o que lhe fez descobrir segredos na própria família. Os olhos de Sammy se abriram para uma tradução da realidade naquilo que poderia ser somente uma expressão artística. Arte, técnica e ciência são os ingredientes que o personagem principal agrega ao “modus operandi” do filme. Aqueles que assistiam ao drama familiar ou autobiográfico do cineasta na verdade estavam sendo apresentados ao horizonte de um mundo em que o Sonho Americano tinha suas contradições. Por exemplo, nos alertar para a força do antissemitismo na Califórnia dos anos 60 ainda antes do Governo do Cowboy Ronald Reagan.

Consequentemente, os personagens não são apresentados como  paradigmas da essência tóxica, mas se abrem para que o espectador busque compreender suas motivações. Está em aberto muito do que se assiste para que se pense muito. Até que nos aproximamos aos momentos da belíssima interpretação de David Lynch que merece destaque por muito bem caracterizar um John Ford entusiasmado com o olhar para frente. Spielberg realiza uma justa homenagem ao diretor de Rastros de Ódio (1956) e nos brinda com Lynch magnífico sob a sua direção. Enfim, tudo como o bom velho cinema nos ensina a ser para sempre como espaço democrático de convivência.


[1] Há inúmeros filmes em Hollywood sobre esse período, sugerimos  Trumbo – Lista Negra direção de Jay Roach (2015).

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 005 - LIÇÕES SOBRE FRENTE DEMOCRÁTICA

Visão sobre os graves incidentes de Brasília

 

Para Frida Pimentel Gomes de Souza para saber um pouco sobre Filipinas e Frente Democrática.

Por Vagner Gomes de Souza

 

Imaginemos uma família de filipinos acompanhando os graves incidentes de Brasília no dia 8 de janeiro e seus desdobramentos. A longínqua Filipinas teve um governo centralizador de 21 anos de Ferdinand Marcos que foi eleito em 1964 (ano do Golpe Militar do Brasil). As sucessivas reeleições foram questionadas como fraudulentas e feitas por uma administração corrupta desse quase desconhecido país que foi colonizado pelos hispânicos. Seu processo de independência, muito diferente do brasileiro, foi “abortado” pelo Tratado de Paris em que passou a ser um "protetorado" dos Estados Unidos. As forças do Eixo invadiram esse país na Segunda Guerra Mundial agravando sua desigualdade social. A vitória das forças coligadas contra o Nazifascismo garantiu que ela se tornasse independente em 1945. A Segunda República das Filipinas é uma dádiva da luta antifascista o que não impediu a triste política autoritária que vai durar de 1965 até 1986.

Sem falar das extravagâncias da esposa do Presidente, Imelda Marcos, Aos 18 anos de idade, Imelda Marcos venceu um concurso de beleza local, conquistando o título de "Rosa de Tacloban". Depois venceu concurso semelhante, conquistando o título de "Miss Leyte". Em 1950, conquistou o título de "Musa de Manila", uma espécie de prêmio de consolação que ganhou do prefeito de Manila, após ter sido derrotada no concurso para eleger a Miss Manila. Imelda teria contestado o resultado desse último concurso, alegando que sua derrota não teria passado de "marmelada". Em 1954, ela conheceu o então deputado Ferdinando Marcos. O noivado foi brevíssimo: 11 dias depois eles se casaram na Catedral de Manila. Para manter seu estilo de vida extravagante, Imelda desviou milhões de dólares dos cofres públicos para comprar joias, roupas, casas e apartamentos em diversas partes do mundo. Costumava fazer compras em lojas caras de Nova York e de cidades da Europa. Ela comprou diversas propriedades em Manhattan, entre as quais os edifícios Crown e Herald Centre.

Nossa família fictícia de filipinos poderia muito opinar sobre os descaminhos dos laços familiares na política uma vez que Imelda Marcos chegou a ser eleita Deputada após o retorno a Filipinas e dois filhos do casal seguiram na carreira política ao ponto do atual Presidente ser um Marco (acrescentemos que a Vice é filha do autoritário Rodrigo Duterte). Os traços do patriarcado não se acabam por decreto ou outros atalhos nos territórios e lugares de fala.


Em 1986, Corazón Aquino tomou posse na Presidência fazendo um "L"

Essa seria a distante possibilidade de visão distante que nos recorda o quanto não se pode distanciar das lições da vitoriosa  Frente Democrática no segundo turno no Brasil. Corazon Aquino não foi uma oposicionista feminista, mas a esposa de um líder assassinado que chegou a ter um filho na Presidência. Os sucessores Fidel Ramos e seu próprio filho não impediram que uma política reacionária de Duterte/Marcos se instalasse pela via do voto. Recordemos que nossa Frente foi vitoriosa por uma histórica pequena margem de votos o que nos ensina a ser cautelosos nas posturas de governança e nas falas em todos seus lugares. Uma vez que os fantasmas do populismo reacionário são um espectro muito real a rondar as ações antipolíticas e antidemocráticas. O isolamento e possível derrota política dessas forças requerem muito tempo, paciência e saber fazer pontes com todos aqueles que se sentiram até iludidos pelos “acampamentos pacíficos”.

O inimigo comum não pode ser esquecido pelos cálculos eleitorais, o que estava a se desenhar. Muitos estavam também iludidos que o jogo de 2022 já estava jogado. Não se preveniram da pulsação de um movimento internacional iliberal que se consolida nas Filipinas e deseja reverter a situação aqui no Brasil pela via do voto. Não nos iludamos que querem fazer do voto uma arma para que se instale a “soberania das multidões” como uma ameaça do igualitarismo empreendedor. Uma soberania do social pela base sem mediação de atores da política uma vez que os Partidos Políticos são vistos como lugares de construção de espaços políticos individuais até por figuras do campo progressista. Menos individualismo se exige das novas lideranças que devem defender a República e a Democracia. Olhai as vinhas sem vinho da ira dos nossos hermanos do Chile para se ver que temos que aprofundar os caminhos de respostas institucionais aos graves acontecimentos de Brasília. “Democracia Sempre” será uma tarefa para uma maior unidade com as forças da Democracia desde já nesse movimentado ano de 2023 pois 2024 está para “brotar” na política como diria no “carioquês”.

sábado, 7 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 004 - GOVERNO LULA


 Foto: Equipe de VOTO POSITIVO 01/01/2023

Visões da Posse Presidencial Brasileira

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

De Paris, pelas capas e páginas do Le Monde, as notícias que se conhecem sobre a América (salvo os EUA) são muito escassas, exceto, aliás, o triunfo da Argentina na Copa do Mundo, naquela esplêndida final contra a França e a posse de Lula.

Como se era de esperar os franceses ficaram tristes, mas com uma tristeza contida, que se combina com as baixas temperaturas deste inverno, os dias de chuva e muitos dias em que o céu tem uma cor acinzentada.

Após a Copa do Mundo, que agora parece distante, as notícias continuaram a se concentrar principalmente na invasão russa da Ucrânia e esse relance sobre o país de Pelé, inclusive a sua despedida e as homenagens.

A Ucrânia, já se disse, tem uma história difícil, complexa e até inconstante na sua relação com a Europa, mas hoje se tornou um símbolo europeu não só como realidade geográfica, mas como portadora dos valores que incorporou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e por meio de um espírito de incrível resistência à anacrônica lógica imperial do século XIX da Rússia contemporânea.

A chancelaria do Brasil não errou em condenar tamanha invasão e é motivo de orgulho, pois só no confuso e triste momento que a América atravessava inclusive com o Presidente daqui a época que brincava de aprendiz de feiticeiro e assumira posições alheias à condenação da invasão, reagindo com posições ambíguas.

Claro que aquele populismo reacionário que imaginava viver na velha guerra fria e até pensou que o regime oligárquico russo havia um que de similitude com o que aqui se fazia. Mas Bolsonaro, um personagem de extrema direita, viúvo de Trump, também fez o que é de praxe fazia diuturnamente em sua conduta: o disparate total.

Nossa América tem em seu radar ser a favor o abraço e respeito ao Direito Internacional e a defesa das democracias, por mais imperfeitas que sejam. E é aí que a cerimônia da Posse Presidencial Brasileira entrou nos jornais planetários.

Ficou claro nela que nosso lugar é no Ocidente, com base em nossos valores fundadores e históricos, incluindo a miscigenação e o sincretismo intercultural, e o gesto brilhante da subida e entrega da faixa repôs a bela realidade do nosso extremo ocidente, como apontou Alain Rouquié.


Pedro Castillo quando assumiu o mandato.

Paralelamente a situação que o Peru atravessa fez pouco barulho, embora tenha sido manchete o autogolpe do ex-presidente Pedro Castillo, depois de um mandato presidencial tão inútil quanto perigoso, indecifrável, pitoresco, etéreo, sem orientação conhecida, por onde passaram numerosos ministros e ministras, de diversas cores políticas, cujo trabalho ninguém conhecia, até porque duraram muito pouco. Foi declarado pelo Parlamento com "incapacidade moral permanente", conceito muito elaborado, onde bastava dizer incapaz tout court.

Também se falou em corrupção. O Parlamento, que também não é um caldeirão de virtudes democráticas e republicanas, agiu legalmente nesta ocasião contra o autogolpe.

Já faz algum tempo que o Peru quase não tem sistema político. Sua economia cresceu e tem riqueza, mas a desigualdade é grande e a pobreza social e territorial continua alta. Os partidos políticos são fragmentados e nas mãos de caudilhos e seus presidentes muitas vezes terminam muito mal. Nada que Mariátegui não tenha visto e escrito.

No entanto, não podemos considerar o Peru como uma exceção. Os fenômenos descritos estão presentes em toda a América (e não só) de forma mais ou menos aguda.

Ninguém na América poderia atirar a primeira pedra. Em todos os países, a crise das instituições democráticas tendeu a se agravar, a pobreza e a desigualdade aumentaram, a insegurança cidadã e o aumento da criminalidade existem em todos os lugares. Embora as Américas Central e do Sul representem 8,6% da população mundial, um terço dos crimes do mundo ocorre por aqui.

Estamos longe do período de prosperidade que terminou em 2013. Como aponta o último Balanço Preliminar das Economias da CEPAL, na década de 2014-2023 experimentaremos um crescimento ainda menor do que o dá década perdida da crise da dívida, ocorrida nos anos 1980.

O esforço que devemos fazer para sair desta prolongada crise, certamente agravada pela pandemia, será enorme.

A retórica populista, seja qual for sua cor, mostrou uma total incapacidade de combinar mais crescimento, mais igualdade e mais liberdade para a sociedade dos indivíduos. Os três elementos que John Maynard Keynes definiu como o problema político das humanidades.

O Brasil que quase não era falado passou para as manchetes e talvez isso seja, afinal, um bom sinal. Em comparação com a grande maioria dos países da América, o Brasil resistiu e conseguiu manter muitas vantagens acumuladas pelos anos democráticos. Mas essa perspectiva só renderá mais frutos com um impulso permanente, boa governança republicana, melhor prática da política da frente democrática, mais cooperação do que conflito. Pelo que se anunciou voltamos a este caminho, as situações mais negativas que vimos à nossa volta nos últimos 4 anos, devem fazer parte da coleção tristonha de nosso passado de murmúrios e que não mais voltem a nos assombrar.   

                                                                                             5 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 14 - 50 ANOS DE O PODEROSO CHEFÃO


                                                              O Poderoso Chefão – 50 anos

Em memória da ibérica Nélida Piñon e de Pedro Paulo Rangel

Por Pablo Spinelli

Um dos conceitos basilares para a formação da humanidade é o da família. De antropólogos a arqueólogos, de historiadores a sociólogos, esse é um dos temas que perpassa a noção de clã, de formação do Estado, de alianças por posse de terras e águas em tempos primitivos. Falar a partir de um núcleo familiar em qualquer expressão das artes é passar uma mensagem universal, apontar virtudes e defeitos, projeções e frustrações em um imaginário coletivo familiar.

O Brasil é um país que desde a formação das Capitanias Hereditárias e pela tradição ibérica ao se misturar com a ameríndia teve a tônica do núcleo familiar. Uma dos grandes pensadores brasileiros, Oliveira Vianna, apontava os núcleos dispersos das famílias como um entrave para um modelo liberal para o país. Gilberto Freyre, na sua obra-prima muito criticada e pouco lida fala das acomodações familiares onde os escravizados acabaram por reproduzir aqui os núcleos familiares de molde do colonizador, como nos mostrou Robert Slenes, dentre vários. Para dois dos fundadores do PT, a família é uma herança do patrimonialismo ibérico dos Donos do Poder e que poderia ser uma raiz ruim dentro das Raízes do Brasil.

Ao contrário do que se pensa, o núcleo familiar não é originário do mundo ibérico, mas do mundo antigo, destacadamente, Roma. Portanto, na Itália, o conceito de família está presente e transborda para a cultura política do país – a nação como uma família, nos parâmetros fascistas, ou a família como núcleo de divergências, debates, conflitos, festas, alegrias dentro da tradição do cinema italiano que vai de A mão de Deus (2021) à Feios, Sujos e Malvados (1976). 


Coube a um descendente italiano lançar em dezembro de 1972 a maior obra do cinema sobre uma família. Francis Ford Coppola adaptou com o também ítalo-americano Mario Puzo, o livro The Godfather (uma mescla da família e religião), conhecido no Brasil pela hipérbole O Poderoso Chefão.

Há 50 anos, os EUA viviam um momento de ebulição com os escândalos – para nós, algo pueril – do Watergate que levou à renúncia do Presidente Richard Nixon, um dos pais da manipulação do que hoje se chama de fake news havia passado pela morte dos Kennedy (uma família muito sombria), de Luther King e Malcolm X. Os EUA viviam uma onda de pessimismo e ceticismo que o novo cinema americano abordou em formas cínicas, críticas e variadas. Coppola escolheu os Corleone como um símbolo de uma instituição que teria como concorrente à corrupção e violência o próprio Estado. O esquerdismo do diretor acabou por glamourizar a família principal com características que um reacionário adoraria: honra, tradição, hierarquia, patriarcado, lealdade. Os filmes posteriores ajustaram isso e fizeram dos Corleone a maior saga familiar desde Shakespeare.

Como qualquer escolha é de caráter subjetivo, entendo O Poderoso Chefão como o melhor filme do cinema jamais feito por conta da correção em todos os seus elementos: o elenco que vai desde o desacreditado Marlon Brando – que é o coadjuvante, mas sua estupenda atuação faz parecer o protagonista – aos já iniciados Robert Duvall e James Caan até aos “novatos” Al Pacino e Diane Keaton. A fotografia do mestre das sombras Gordon Willis, cenários de Dean Tavoularis, a trilha inesquecível de Nino Rota, parceiro de Fellini, as locações na Sicília (destaque para os cartazes do PCI nos muros por onde anda Michael Corleone), o roteiro que nos ensina que um filme lento é diferente de monótono e o seu final catártico, barroco, que tem muito a ensinar ao Tribunal da Virtude Linguística que nos domina: palavras não determinam ações.

Para um país que viveu por 4 anos sob o jugo de uma família farsesca de origem italiana, que tentou trazer para si o paradigma familiar a partir de valores ditos medievais mas que viveu sob a sombra do liberalismo – o pai é um divorciado e foi um amasiado -  e que agora pode viver novamente sob a sombra das famílias corporativas da representatividade identitária e do aparelhamento para os “bons companheiros”, um alerta do país ao governo que se organizar pela premissa de que “não é nada pessoal, são apenas negócios”: uma nova cabeça de cavalo ou de burro pode aparecer na cama. O Centrão pode passar o garrote.