quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

ESQUERDA PELAS CANELAS (NÚMERO 1)


 

Por uma estratégia de Interiorização da Migração republicana e democrática

 

Por Pacelli Henrique Silva Lopes

 

La tierra giró para acercarnos,

giró sobre sí misma y en nosotros,

hasta juntarnos por fin en este sueño,

como fue escrito en el Simposio.

Pasaron noches, nieves y solsticios;

pasó el tiempo en minutos y milenios.

Una carreta que iba para Nínive

llegó a Nebraska.

Un gallo cantó lejos del mundo,

en la previda a menos mil de nuestros padres.

La tierra giró musicalmente

llevándonos a bordo;

no cesó de girar un solo instante,

como si tanto amor, tanto milagro

sólo fuera un adagio hace mucho ya escrito

entre las partituras del Simposio.

 

La tierra giró para acercarnos (1986)

Eugenio Montejo (1938-2008)

 

Neste último trimestre de 2021 a Escola Estadual Fazenda Paraíso, juntamente, com a instituição de transformação social Teia de Saberes tivemos conhecimento da construção do I Plano Estadual para Migrantes, Refugiados, Apátridas e Retornados de Minas Gerais. Tal evento tem sido promovido pelo Governo Mineiro através da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE). Nosso envolvimento surgiu por termos na comunidade escolar famílias de migrantes venezuelanos que estão sendo alocados na região através da Estratégia de Interiorização da Migração promovida pela Operação Acolhida.

A Estratégia de Interiorização iniciada em fevereiro de 2018 é uma parceria do Governo Federal, Forças Armadas e ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). O seu objetivo é a inserção da população venezuelana e aliviar o impacto dessa crise humanitária no estado brasileiro de Roraima. Seus três principais eixos de ação são, a saber: 1 – ordenamento de fronteira e documentação; 2 – fornecimento de assistência humanitária, e; 3 – interiorização.

De acordo com o Subcomitê Federal para Recepção, Identificação e Triagem dos Imigrantes através do seu Informe de Migração Venezuelana de outubro de 2021 entre janeiro de 2017 e outubro de 2021 tivemos um número total de entradas de 652.322 e uma movimentação de saída de 364.465, sendo que, 36% foram para outros países e 20% retornaram para a Venezuela. Dados da UNICEF Brasil apontam que em média 31.943 migrantes venezuelanos vivem em Boa Vista, Roraima, sendo que, 9.583 crianças estão em situação de vulnerabilidade.

Os dados educacionais demonstram que os venezuelanos tendem a ser mais velhos que seus pares brasileiros nas séries iniciais, causando uma distorção idade-série que reflete na inclusão no mercado de trabalho onde os venezuelanos têm colocações inferiores à sua formação profissional e trabalham mais horas que os brasileiros na mesma situação. Dentre outros problemas educacionais analisados, podemos destacar: a falta de acesso à internet; falta de acesso ao material escolar, problemas como transporte, faltam informações suficientes disponíveis, xenofobia e o principal e mais comum problema encontrado, a barreira do idioma.

No artigo intitulado Integração de Venezuelanos Refugiados e Migrantes no Brasil que é parte do programa “Building the Evidence on Protracted Forced Displacement: A Multi-Stakeholder Partnership” que foi estabelecido pelo Escritório de Negócios Estrangeiros, Comunidade e Desenvolvimento do Reino Unido (FCDO), Banco Mundial e ACNUR, são apontadas as seguintes soluções para a crise humanitária analisada:

Facilitar o processo de verificação e validação de diplomas e habilidades que irá minimizar o rebaixamento desnecessário educacional e ocupacional para o mercado de trabalho formal.

Ampliar a oferta de treinamento em idiomas para ajudar as crianças a se inscreverem na série de acordo com sua idade e que também pode promover maior empregabilidade para os adultos.

Garantir o apoio contínuo do ACNUR e da sociedade civil no fortalecimento de esforços do governo federal na realocação voluntária para áreas com mais oportunidade de geração de emprego e renda.

Desenvolver estratégias de intermediação de mão de obra focados com uso de conselheiros especializados que conhecem empregadores para os quais o idioma é menos importante ou procurem conjuntos de habilidades específicas.

Ampliar a capacidade das escolas, por meio da introdução de turmas matutinas e vespertinas, poderia ajudar a aliviar a superlotação em escolas e a reduzir o tamanho das turmas.

Fortalecer os programas de ativação do mercado de trabalho, que incluam a intermediação de empregos e treinamentos de habilidades e do idioma para ajudar a superar as dificuldades de colocação no mercado de trabalho.

Continuar a assistência aos venezuelanos no acesso a informações sobre emissão de documentos, acesso a serviços de educação, saúde e assistência social, e também sobre seus direitos sociais e garantias de acesso.

           

Através de nossa conferência livre para a construção do I Plano Estadual para Migrantes, Refugiados, Apátridas e Retornados de Minas Gerais chegamos as seguintes indicações para a criação da política pública:

 

Proposta 1: Criar um cadastro estadual que possibilite a realização de uma triagem que seja utilizado como processo legal de integração junto ao governo federal, forças armadas e ACNUR sobre a entrada dos migrantes no estado via estratégia de interiorização da migração. Permitindo melhor conhecer e alocar os públicos migrantes em regiões que possibilite um melhor uso das suas habilidades profissionais e facilidade de adaptação ao território.

Proposta 2: Capacitar os migrantes sobre os processos básicos de acesso as políticas públicas brasileiras.

Proposta 3: Capacitar os profissionais das escolas que receberão os migrantes através de formação continuada em trabalho.

Proposta 4: Ofertar a contratação de um professor para língua portuguesa para aulas extras aos migrantes alunos e seus familiares.

Proposta 5: Ofertar a contratação de professor da língua pátria dos refugiados para facilitar e mediar o processo de integração dos migrantes e facilitar a comunicação.

Proposta 6: Priorizar e ofertar cursos de capacitação profissional e técnico nas escolas que recebem públicos migrantes dando acesso e capacitação a essas famílias.

Proposta 7: Fomentar a criação nos municípios de uma rede de atenção básica e apoio a migração, sendo essa multidisciplinar envolvendo representantes das políticas públicas locais, poderes políticos e judiciários, sendo os envolvidos, capacitado previamente sobre a temática.

 

Para além das propostas citadas acima, o principal e mais preocupante problema de todo processo de interiorização da migração é sua falta de integração republicana e democrática com o poder público local. Ficou claro que a tentativa de inclusão é débil, seja via mercado de trabalho como aludimos acima, seja produtiva e quiçá financeira, o que em última análise levará a uma condição típica que sugere perigos presentes ao filme 7 prisioneiros.

Tal problemática que envolve a complexa relação entre Democracia e República que se evidenciou na ausência de comunicação e preparo e disponibilização aos poderes públicos locais da cidade de Espera Feliz dos instrumentos necessários para a boa consecução dessa política. Claramente, faltam República e Democracia nas ações propagadas na Estratégia de Interiorização, levando em algumas situações a sérios problemas que dificultam o alcance da cidadania tão almejada para os refugiados, migrantes, apátridas e retornados que procuram no Brasil a realização de um sonho e a concretização da esperança de uma vida melhor.


sábado, 4 de dezembro de 2021

LIVRO EM DEBATE: EM BUSCA DA NAÇÃO por ANTONIO RISÉRIO

NOTA PRÉVIA 

VOTO POSITIVO abriu um espaço para que leitores debatam suas interpretações sobre o livro Em Busca da Nação de Antonio Risério (Ed. Topbooks, 2020). Leitores que se interessarem pelo debate podem enviar seus textos. Sugerimos limite de 2 páginas (800 palavras) em Word para vgsouza@bol.com.br

O Editor.


EM BUSCA DA NAÇÃO

Por Ana Beatriz Camarinha[1]

 

A aproximação do ano de 2022 nos provoca a reflexão sobre uma temática centrada em um conceito que hoje vive o processo de desconstrução e esfarelamento: nação. Diante do bicentenário de nossa Independência, logo, do início de um debate acerca da criação de um projeto nacional fora dos controles portugueses, e de eleições – principalmente, de nível federal –, o tema “nação” e a posição da mesma na contemporaneidade brasileira se tornam pautas necessárias para serem postas em discussão.

Reunindo uma coletânea de ensaios, o livro Em Busca da Nação de Antônio Risério (Editora Topbooks: 2020), antropólogo, ensaísta, historiador brasileiro, herdeiro da Tropicália e peça presente nos governos Lula e Dilma Rousseff, particularmente no Ministério da Cultura do novo imortal Gilberto Gil, propõe questões fundamentais a serem analisadas. O título revela seu principal objetivo: encontrar, ou reunir meios para encontrar, a nação brasileira. E esse movimento acontece através da exposição crítica à posição em que a mesma foi colocada, distante do campo social e político, os desafios que a envolvem e os seus usos atuais. A ausência contemporânea – ou negação – dessa noção no espectro sociopolítico e até mesmo cultural tem sido, segundo o autor, gerada pela precariedade e o pouco avanço das discussões sobre democracia social e cultural, conjuntamente com o avanço agressivo do movimento de “fragmentarismo identitário-multicultural”.

Definir o conceito de nação é uma atividade complexa. Risério apresenta-a como uma criação histórica moderna, produto de misturas e diversidade. Diferentemente do Estado que se apresenta por um sentido político, a nação é identificada como uma entidade antropológica, cultural, que transcende os aspectos definidores comuns (bandeira, língua, território), abarcando uma comunhão de destinos. Isso não significa similaridades sociais, uma homogeneidade, mas a sintonia do modo com que os processos foram vividos por aquele grupo. Essa integração é dada por questões objetivas e pelo reflexo subjetivo sobre a consciência coletiva, de acordo com a apropriação teórica feita pelo autor do historiador Miroslav Hroch, em que a componentes como a memória, integração nacional e laços culturais são importantes. Nesse sentido, é igualmente interessante visualizar a aproximação do conceito como um universo simbólico, uma entidade imaginada responsável por promover a relação e a coesão social, quando o autor se apoia no pensamento de Benedict Anderson.

No entanto, com a fragilidade e perda do debate conjuntural e das agendas políticas partidárias, que se proporiam a pensar a categoria de povo além das separações identitárias, mas como agentes sociais presentes em um sistema complexo, cria-se um esfarelamento da concepção nacional e da identificação social que essa noção se propõe a gerar. O universo nacional se encontra cada vez mais inclinado à direita, não só pela fragmentação das esquerdas no campo político em face do crescimento da direita extremista, como através do processo do globalismo neoliberal que se apropria cada vez mais do movimento identitário realizado pelos grupos minoritários brasileiros em prol de seu mercado. Porém, se esse universo é, então, imaginado, criado, abre-se a possibilidade de reimaginarmos, repensarmos coletivamente e no campo democrático a nação brasileira.

Essa guinada, no entanto, não acontecerá como nos demonstra o autor, sem uma revisão histórica em nível sociocultural do Brasil e dos partidos políticos quanto as suas trajetórias. Faz-se necessário, logo, em meio a comemoração do bicentenário, retornar o olhar à Geração de 30 pós-centenário, em que a meta central dos artistas engajados se baseava no conhecimento da história nacional, a temática da mestiçagem no sentido da defesa da diversidade, com propósito de afirmar a nação.

Nademos contra a corrente que nos divide e caminhemos em busca da nação, em um sentido democrático e pensando a sociedade como um todo, ultrapassando as pedras do meio do caminho. Sim, em todo caminho há uma pedra – ou mais –, parafraseando Drummond, mas cabe a nós sabermos como permanecer em movimento, levantando a bandeira do povo: o agrupamento social e político dotado de agência e múltiplo em sua composição.



[1] Graduanda de História na Universidade Federal Fluminense (UFF).


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 25


 Senadores Getúlio Vargas  e Luiz Carlos Prestes  num comício (1947)

Olhai o “chuchu” no campo

Por Vagner Gomes de Souza

 

A história da reconciliação está muito próxima aos princípios do cristianismo anunciados no “Sermão da Montanha” nos quais muitos atribuem o título “Olhai os Lírios do Campo”. Nos anos 30, Érico Veríssimo escreveu um livro em que Olhai os Lírios do Campo atribui ao personagem Eugênio a tensão entre a ambição e a consciência de uma aliança social. A ascensão das camadas sociais deveriam ter “atalhos” numa década posterior a crise de 1929 ou bem aventurados seriam os pobres na Era Vargas.

O Estado Novo (1930 – 1945) foi um período de construção de uma nacionalidade pela via de um programa que se distanciou da possibilidade democrática após 1937 com apoio da grande oficialidade das FFAA (Forças Armadas). Esse eixo programático constitui está no subconsciente da sociedade brasileira na sua formação como Nação. Getúlio Vargas foi, e continua sendo, um personagem controverso em nossa História pelas nuances das alianças de cunho político e social que se fez na garantia, para mencionar um famoso exemplo, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que certa vez foi confundida metaforicamente como o Ato Institucional 5 da Ditadura Militar (1964-1985).

A volta de Getúlio Vargas a presidência da República na vitória eleitoral de 1950 poderia ser atribuída a uma busca de reconciliação nacional que analistas políticos se deixam levar pelo desfecho da tragédia do suicídio. Todavia o programa de um grande salto na economia pela via da industrialização é uma lição quanto ao debate programático nas campanhas eleitorais. Nesse momento as contradições entre as classes dominantes e subalternas foram eclipsadas pelo nacional e pelo popular. A democracia foi deixar de ser uma figuração como programa justamente pelas mãos dos comunistas do PCB, mas somente após 1958.

Isso exposto nos demonstra o quanto as linhas de nossa história política não se fez por linhas retas ou curvas. Nossa vida política está com inúmeros exemplos de ir e vir numa constante ziguezaguear o qual demonstra que ser prisioneiro de narrativas fará de muitos ativistas/militantes mais um           “negacionista” da natureza da Frente Democrática. A ideia de Frente não se aplica aos limites de uma disputa eleitoral, mas se constitui a partir da avaliação de uma conjuntura política. Há diversas naturezas frentistas (Única, Popular, Ampla, de Escquerda, Conservadora, Democrática, etc.) que ganham força na sociedade pela sua base programática.

Uma vez que a face política de uma Frente nasce de um debate de um programa político, as possíveis confusões de nivelações políticas seriam superadas até nas negociações dos atores políticos. Por exemplo, em Política, um diálogo amplo com inúmeros atores políticos não significa ser a realização de uma “Frente Ampla”. O debate “frentista” sem conteúdo programático é apenas uma “sopa de letrinhas” que recai na americanização das disputas eleitorais com cálculos de ganhos ou perdas de votos. Programa e sociedade em segundo plano o que coloca também a Democracia em perigo por mais que se derrote só eleitoralmente um candidato claramente autoritário nas urnas. Uma vitória de uma Frente Política precisa ser uma nova fase no processo político de um país.

Portanto, todos os nomes do campo democrático seriam bem vindos numa Frente Democrática com vistas as Eleições Presidenciais/Parlamentares e Regionais de 2022 no Brasil. A ideia de “Campo Democrático” necessita ter uma fundamentação programática a partir do que se inscreve na Constituição de 1988, o que não implica em simplesmente defender atos revogatórios de Emendas Constitucionais já debatidas e aprovadas. Democratizar não se faz sem exposições de justificativas políticas muito bem fundamentadas. Essa seria o melhor entendimento para que o “Campo” pudesse ter um pouco de “Chuchu”. A “invenção” na política brasileira é uma qualidade que alguns atores políticos souberam conduzir, mas sempre com uma linha programática. Caso contrário a política brasileira continuará na perigosa trilha da negação da política (diálogo/conciliação/reconciliação) que é o antiprograma desse Governo sem gestão.


sábado, 13 de novembro de 2021

POLÊMICA - NICARÁGUA NA COVA DOS LEÕES

O Sorriso do Jaguar

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Em julho de 1986 Salman Rushdie, atendendo a um convite, viaja para Manágua (capital da Nicarágua). Várias semanas depois da viagem, ele ficou tão afetado pelo que vira que não conseguia parar de pensar e de falar sobre a Nicarágua. Como literato a forma de lidar com essa sensação era escrever. E assim nasceu O Sorriso do Jaguar: uma Viagem pela Nicarágua (Editora Guanabara) publicado em 1987.

Para Salman, os melhores momentos ocorreram ao ser entrevistado por Bianca Jagger, uma nicaraguense, para a revista “Interview”. Toda vez que ele se referia a um nicaraguense conhecido, de esquerda ou de direita, Bianca comentava, vagamente, em tom neutro: “Ah, sim, a gente namorou, faz tempo”. Essa era a verdade a respeito da Nicarágua. Era um país pequeno, com uma classe dominante minúscula. Os combatentes, dos dois lados, tinham todos frequentado a escola juntos, eram membros daquela classe dominante e um conhecia a família do outro, ou até, quanto aos Chamorro, vinham da mesma família; e todos tinham namorado uns com os outros. A versão de Bianca dos eventos, não escrita, seria mais interessante (e, com certeza, mais picante) do que a dele.

Por ocasião do lançamento do livro nos Estados Unidos da América, um apresentador de um programa de entrevistas, a quem desagradara sua oposição ao bloqueio contra a Nicarágua e ao apoio de Reagan aos “contras”, que tentavam derrubar o governo sandinista, perguntou-lhe: “Senhor Rushdie, até que ponto o senhor é um inocente comunista útil?”. Com uma gargalhada — o programa era ao vivo —, Salman aborreceu o apresentador mais do que com qualquer outra resposta que tivesse dado. Mas aqui começa o espinhoso problema da definição de crimes e presos políticos.

Na grande maioria dos países onde houve, há ou haverá presos políticos, existem leis que criminalizam certos atos políticos. No México existe, em Cuba idem, e as normas hoje vigentes na Nicarágua punem qualquer conexão com financiamento externo a organizações não governamentais (ONGs), um crime tipificado na lei desse país.

Se voltarmos às ditaduras na Ibero-América nos anos 1970 e 1980 ou às leis — incluindo as de Nuremberg — da Alemanha nazista, veremos que o problema não é o fato de um comportamento político violar a lei ou não, porque as ditaduras tendem a ter leis que proíbem certas atividades políticas, principalmente aquelas que buscam acabar com a ditadura.

Portanto, não é apenas o crime em si que define o caráter do preso político. Um preso também pode pertencer a esta categoria se violou uma lei perfeitamente formulada e/ou cometeu um ato contrário a uma ditadura sem violar nenhuma lei, como aconteceu várias vezes na História. Em outras palavras: a definição de “preso político” é sempre movediça, pois, de acordo com o regime, amplia-se seu entendimento para incluir outras tipificações, quiçá várias, “ad infinitum”.

Nesse sentido, até a imprensa nicaraguense foi, é e será presa politicamente, além de pré-candidatos, estudantes, dirigentes rurais e defensores dos direitos humanos. Tanto ela quanto outros atores podem ou não ter cometido crimes. E aí surge o problema do Poder Judiciário e do devido processo legal com condenações e absolvições. Mas não se pode responder às acusações em liberdade?

Aqui no Brasil se usou de tudo para prender os mandatários eleitos no período 1945-1950, bem como outras pessoas, a despeito da autoridade ter ou não a certeza (outro terreno de difícil sondagem, o que versa sobre a formação da convicção) de que cometeram os crimes de que eram acusadas. Em vez disso, trata-se de razões, motivações e impulsos políticos por parte dos governantes. É por isso que a experiência das eleições nicaraguenses em curso é especialmente escandalosa.

O fato de os juízes terem negado mais de uma vez as fianças da oposição nicaraguense mostra claramente a intenção política de suas prisões, bem como a impossibilidade de estes atos serem corrigidos antes de existirem condições políticas — não jurídicas — para uma retificação. Por isso é que, apesar das ilusões e dos equívocos de certos entusiastas e suas notas sobre o processo eleitoral nicaraguense, está claro que os aspectos jurídicos que o envolvem são praticamente irrelevantes.

O estranho é que um governo desse tipo recorra a tais práticas depois de ter visto o que aconteceu no seu passado. Poucos países na Ibero-América têm um histórico tão longo — a contar do período colonial — de presos políticos. Mas onde manda o capitão não manda o marinheiro. Esta é a Nicarágua de Daniel Ortega: idêntica ou pelo menos semelhante à Nicarágua da grande maioria dos governos daquele país bicentenário.

 

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2021



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 7 de novembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 10 - QUE FAZER COM A EDUCAÇÃO?

Anísio Teixeira


Apagão Educacional

 

Tiago Martins Simões[1]

 

Apesar de decorrido já algum tempo desde o início da pandemia, ainda há que se falar abertamente sobre a crise educacional. Não é uma crise exclusiva da pandemia porque esta é mais ampla e porque existe um tanto de mau caratismo em creditar a ela boa parte dos problemas atuais. De toda forma, ela agrava o problema e cria tantos outros.

Existe algo de muito nítido que a pandemia revelou, ao menos à maioria dos educadores e estudantes: o ensino remoto não é e não funciona, nem de perto, como substitutivo ao presencial (não devemos jamais cair no equívoco de aproximar essa situação ao conceito de ensino híbrido; são coisas completamente distintas). Quando muito, ajuda a potencializar uma educação que acontece dentro de algum espaço onde as alunas e alunos se encontram, quando estes possuem recursos físicos (internet e computador com definições mínimas) e humanos (alguém com tempo e formação mínima), o que não é a realidade da maioria dos estudantes brasileiros. Este é um problema que a pandemia colocou porque, com isso, ela estancou o processo educacional de milhões de crianças, jovens e adultos.

Outro ponto importante é que a(s) crise(s) possuem efeitos distintos, a depender da região, faixa etária, sistema de ensino, dentre tantos outros fatores. Precisamos resistir e não realizar generalizações sem discutir aspectos regionais e circunstanciais. Ainda não temos um diagnóstico bem definido na política; pelo contrário, existem nuvens de fumaça, quando não há miopia. Mais grave ainda é o fato disso acontecer no nível da gestão educacional.



 Um jovem russo em 1887

A começar pela condução do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Educação, que voltaram suas energias para salvar os anos letivos, criando continuidades entre os anos de 2020 e 2021. Suas resoluções e pareceres[2] mencionaram constantemente a avaliação da aprendizagem das alunas e alunos como critérios norteadores das subsequentes políticas. Pois bem, as políticas educacionais estão à deriva, tocando o barco para cumprir a legalidade do currículo, seja em dias ou horas letivas.

Além do problema das matrículas (democratização do acesso), Anísio Teixeira apontava já em 1952, pela ocasião de sua posse no INEP[3], a inadequação da educação pública básica e superior às necessidades do país à época. Pauta importante e tão cara quanto outras a personagens progressistas, que fora colocada por ele ao lado de temas estruturantes como o da reforma agrária. Naquela época já se falava na importância da formação educacional para processos industriais e tecnológicos. Hoje, vivemos dois fracassos: o de, quase 70 anos depois, continuarmos completamente inadequados às necessidades do país, inclusive em termos tecnológicos; e o da profunda carência de uma diagnose do apagão educacional (agravado pela pandemia).

A gestão (não só do Governo Federal) não está encarando a crise de frente. Abrir escolas sem traçar diretrizes para a recuperação do déficit de aprendizagem[4] joga o problema pra frente que, para muitos, está logo ali (como na questão hodierna dos alunos e alunas que farão o ENEM ou estão para terminar os segmentos de ensino). É insuficiente a política de recursos humanos e formativos dos profissionais (não regulamentação de auxiliares para Fundamental 1; incompletude da transformação das escolas em turno único/integral e sua consequente incompatibilidade com a atual carreira de professores de educação infantil e Fundamental 1 são alguns pequenos exemplos), assim como é insuficiente o direcionamento da reorganização curricular e da carga horária. Não há previsão ou orientação da recuperação do déficit (qual déficit?) dos alunos e alunas mais afetados pelo apagão - eles e elas estão no mesmo bolo dos demais, e cabe às escolas criarem estratégias a partir de um desenho pouco favorável, se assim desejarem. A municipalização do ensino, defendida inclusive por Anísio Teixeira, que também deixou legados como o da educação integral, tem autonomia para colocar remos contra essa maré liberal. Vai depender de quais compromissos vão assumir.



1 Professor do Município do Rio de Janeiro - Segmento Fundamental I. Doutor em História pela FGV/CPDOC.

2 Em especial o Parecer CNE/CP N.º 15/2020 do Conselho Pleno Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação.

3 Teixeira, Anísio. A Educação e a Crise Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. Também disponível eletronicamente em http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/discurso2.html.

4O déficit sequer está sendo revelado - as avaliações diagnósticas do Município do Rio de Janeiro estão completamente mal calibradas (para baixo) com relação às expectativas de aprendizagem de suas séries correspondentes, até mesmo se tomarmos como parâmetro a priorização curricular traçada pela Secretaria Municipal de Educação.

domingo, 31 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 9 - TESE PARA A CONVENÇÃO DOS BRUXOS


 

O momento rebelde do vampiro Edward

 

Marcio Junior[1]

 

Vampiros são personagens que, sem dúvida, já fazem parte do arcabouço clássico da literatura, como Drácula, um Conde. Do ponto de vista mais contemporâneo temas a obra de Stephenie Meyer, listada em uma saga com cinco volumes.

Edward, o principal vampiro da saga, não foge do padrão de personagens vampiros, haja visto que a sede de sangue humano figura como um dado biológico, intrínseco à sua natureza. Resultado da transformação causada pela mordida de um indivíduo da espécie, o pertencimento à ela não está, necessariamente, no registro genético dos seus ancestrais, mas é fruto de uma mudança: no momento de seu renascimento, deixou de pertencer à espécie humana e foi transformado em outra coisa, cujo alimento é o sangue da espécie a qual pertenceu. Transforma-se em uma espécie nociva a aqueles que povoam o planeta em maior número, tendo como habilidade particular a audição para os pensamentos de todos, humanos ou vampiros. Mesmo assim, foi salvo da morte e condenado à vida eterna.

Assim, a alegoria deste vampiro permite o situar em um meio termo: será que toda a humanidade que havia nele se perdeu? É neste ponto que a literatura de Stephenie nos permite uma leitura provocadora, a partir da maneira como a autora arquitetou principalmente as experiências das personagens nas várias circunstâncias vividas por elas ao longo do tempo. Edward e sua família, por vontade própria, não se alimentam de sangue humano e sim de outros animais, vivendo em sua constante luta para domar a si próprios e seus espíritos, compreendendo que há formas de saciar a sede. Essa construção abre a possibilidade para, inclusive, haver amor dele para com uma humana e vice-versa, o que termina por ser o enredo da saga. Como fazer quando a pessoa que ama é, ao mesmo tempo, aquela que pode entregar a vida para saciar o seu instintivo desejo?

Este jovem senhor de “17 anos” tem, por assim dizer, uma biografia obviamente singular, mas olhemos para ela com atenção. Seu “renascimento” data de 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial. Perdera seus pais para a Gripe Espanhola e estava à beira da morte também por ela, como o caso de muitas famílias na pandemia da COVID-19, tal qual ainda não saímos. Durante seu primeiro ano da nova “vida”, a sala dos espelhos do Palácio de Versalhes sediou as discussões que culminaram no Tratado de Paz. No mesmo ano, depois da saída prematura da comitiva inglesa que fazia parte das negociações, Keynes publicou As Consequências Econômicas da Paz. Edward, junto com seu transformador Carlisle (que viria a ser seu novo pai quando a família ganhasse novos membros), precisava aprender a lidar com suas novas condições e seus instintos sanguinários. A rebeldia, portanto, foi motivada pela dieta. Em suas próprias palavras:

 

— Bom, eu tive um ataque típico de rebeldia adolescente…. Uns dez anos depois que eu… nasci…. fui criado, como quiser chamar. Não concordava com a sua vida de abstinência, e me ressentia dele por restringir meu apetite. Então parti para ficar sozinho por algum tempo. (...) Precisei de mais alguns anos para voltar para Carlisle e me comprometer novamente com seu modo de viver.[2]


            Enquanto o rebelde Edward partia, os humanos viram e viveram a crise de 1929. Na crise, período de mudanças profundas e dolorosas nas sociedades do planeta, o vampiro deixou a dieta e ceifou vidas. Em 1936, Keynes publicou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, seu texto mais conhecido.

            Nossa conjuntura hodierna não é muito diferente. A financeirização da vida é vista a olho nu, porém com novos elementos, sobretudo novas oportunidades de acumulação a partir de instrumentos não existentes antes, possibilitados pela marcha do mundo digital. Junto a este complexo processo, pessoas com fome e novos pobres no mundo, fenômeno potencializado pela pandemia. Edward novamente se rebelou, e muitas sociedades planetárias se veem mais individualizadas e tendo como única alternativa (e ideologia apaixonada) a busca da boa vida restrita somente a si e às suas necessidades, sejam físicas e/ou psicológicas.

            Ainda não sabemos até quando será assim, porém é necessária a reflexão que objetive pensar em novas formas de domar a fera, sobretudo para que, em conjuntura de transformação profunda, não interromper de vez a evolução da nossa marcha republicana e democrática, sem a qual não é possível alcançar o bem estar dos povos no mundo e no Brasil.

 



-       [1]Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ.

-       [2]MEYER, Stephenie. Crepúsculo. 3º ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. Pág. 248.

domingo, 10 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - ESTADO E ROUND 6


A batatinha-frita está assando

Por Pablo Spinelli


Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada

“E vamos à luta” - Gonzaguinha


Imagem do líder com uma máscara que lembra a do Dr. Destino da Marvel

O filósofo e antropólogo social polonês Karl Polanyi (1866-1964), em sua obra A grande transformação (1944), descreveu o processo de modernização que gerou a Revolução Industrial inglesa no século XVIII e sua consequente transubstanciação de homens em massa como um “moinho satânico”, termo forte em um país com forte influência católica.

Nos anos 1990, a televisão brasileira foi pródiga em moer gente para apetites sádicos da audiência que eram alimentados por uma lógica neoliberal do mercado que teve seu primeiro momento auspicioso com a eleição de Fernando Collor de Melo no início daquela década. Exemplos para isso não faltam, como o quadro “Olimpíadas do Faustão”, as histórias tristes e comoventes com requintes de dramaturgia nos domingos de Gugu Liberato ou na “Porta da Esperança” de Sílvio Santos, que jogava dinheiro para uma ávida e competitiva plateia no “Topa tudo por dinheiro”, um título que resume o pensamento da época.


 Silvio Santos dança com Carla Perez no Topa Tudo Por Dinheiro (anos 90)

Esse modelo de sociedade teve obstáculos com a formação do Brasil contemporâneo e a história econômica do Brasil. Um Estado demiurgo teve sua melhor encarnação na Era Vargas, síntese da modernização sem o moderno, do transformismo do nosso capitalismo sem abrir mão da tradição que residia na concentração de terras nas mãos de uma oligarquia a qual não era exigido o cumprimento da CLT, posto que as leis trabalhistas não abarcassem o mundo agrário. O mercado era dirigido pelo Estado e por mais que gritasse aqui ou ali, não era refratário de fato a tal direção, mas o mundo se move, e nos anos 1990 o nosso país começa a ter uma onda que começara no Chile de Pinochet, nos EUA de Reagan e na Inglaterra da Dama de Ferro. Meritocracia, capacidade de explorar talentos individuais, espírito empreendedor, inserção no setor de serviços e na III Revolução tecnológica, empregabilidade, são alguns dos termos que começaram a aparecer no cenário político, acadêmico e na imprensa. Como trazer esse ideário para as massas? O apresentador Luciano Huck foi o exemplo mais bem acabado desse modelo midiático, pois apresentava a pobreza e sonhos de uma pessoa que, em troca de um dinheiro teria que acertar no gol com um goleiro profissional em “Agora ou Nunca” Errou o gol? Lamentamos. A culpa é de sua falta de habilidade após treinar uma semana para acertar.

Dessa forma, a televisão aberta deu gradativamente um sentido moral e até apologético aos termos acima. Combinado com o avanço do neopentecostalismo, o processo de derruição do iberismo pelo americanismo seguia seu curso. A sociologia era inútil para explicar as decisões individuais da violência, como se via na exploração de crimes no “Aqui e Agora” do SBT ou nos programas da OM (atual CNT) protagonizados por Luiz Carlos Alborghetti e seu repórter, Carlos Massa, o Ratinho. A violência era explicada como ações de escolhas racionais e individuais. Pedro Dom, Suzane  von Richthofen ou o caso Nardoni transformaram o singular como exemplo generalizante. Vinte ou trinta anos depois, num neoliberalismo que agora tirou seu capuz no país, voltam revigorados como peças de ficção para os jovens. E voltam sem qualquer censura nos canais de streaming, como nos dois primeiros exemplos.


 Luiz Carlos Alborghetti tinha o bordão: "Porrada Neles!"

Assim como o crime, a morte, não pode ser explicada pela sociologia ou ciência política, o desemprego, a miséria, o abandono, passaram a ser vinculada com o binômio competência-incompetência; sucesso-fracasso; esforço-preguiça. A educação passou a ter referenciais mundiais a partir de uma bússola: o exame PISA, cujo uso se assemelha às leituras de economistas e jornalistas quanto ao PIB, déficit público, renda per capita. Uma medida que avalia um grupo de jovens (sem qualquer análise quanto à alimentação, ambiente familiar, acesso a recursos tecnológicos, formação familiar – ou capital humano – para agradar a Jessé Souza) e que além do paraíso educacional finlandês (alvo de grande deboche da genial série catalã Merlí) tinha como parâmetro os resultados dos estudantes da Coreia do Sul.

A Coreia do Sul era a grande referência de modelo de país para um grupo de liberais mais afeitos ao que se chama de neoliberalismo. Paulo Maluf, candidato do então PDS (hoje, Progressista) à presidência da República em 1989 já apontava dois modelos a serem seguidos caso vencesse: o chileno e o coreano.

O ministro da Economia Paulo Guedes, homenageado com o prêmio "Personalidade do ano para o desenvolvimento do setor varejista", durante a primeira edição do Retail Trends Pós-NRF de 2020, já defendia o modelo sul-coreano como um paradigma para sua política econômica do então candidato Jair Bolsonaro em 2018. Curiosamente, Chile e Coreia do Sul tiveram modernizações com generais de longo mandato (para usar um eufemismo), Pinochet e Park, respectivamente.

Interessante notar que a história de modernização da Coreia do Sul teve uma direção estatal em quais setores deveria haver subsídios públicos para as empresas que atingissem as metas estabelecidas pelo governo, o que impulsionou o capital produtivo a exigir uma legislação trabalhista quase inexistente, a destruição dos sindicatos, repressão das forças públicas sobre greves. Nos dizeres de Paulo Gala, professor de economia na FGV-SP, um dos grandes pontos fortes do Estado desenvolvimentista sul-coreano foi sua grande capacidade de não apenas “escolher vencedores”, mas também “podar perdedores”, isso é, não apenas conceder benefícios a empresas potencialmente capazes, mas também retirar benefícios a empresas que se mostrassem incompetentes.[1]Um dos efeitos foi ter acabado com as montadoras “perdedoras” e só ter sobrevivido uma, a Hyundai.

Com esse quadro exposto, chegamos a Round 6, série de grande sucesso e polêmica exibida no Netflix (e pirateada pelo Tik Tok e afins). Escrita em 2008 quando o seu produtor estava em dívidas, a história começa em um jogo infantil cujo nome entre nós é uma piada pronta. O jogo da Lula. Figuras geométricas aparecem na abertura e ao longo de toda a série. Representação do alfabeto coreano que representa o nome da série (letras O, J e M - Ojingeo Geim) também define hierarquias na referência a outro fenômeno pop, os trabalhadores de vermelho (como os assaltantes de A casa de papel) que quando vão trabalhar ao fundo tem uma melodia muito próxima as dos Oompa-Loompas, os escravos anões da Fantástica Fábrica de Chocolate. E o personagem protagonista, vivido por Lee Jung-Jae, interpreta um quase Macunaíma coreano, um misto de Didi Mocó com Agostinho Carrara (A grande família) nos traz uma empatia sem esconder seus defeitos, um anti-herói, um herói onde adolescentes se reconhecem ao ver por conta de não ser a virtude encarnada. Para os mais velhos, não há como não se interessar pela trajetória de um endividado com a milícia coreana (pois é..), com problemas para manter contato com a filha de dez anos, que vive com a mãe e o padrasto; além do caro tratamento de saúde da sua idosa mãe diabética, afinal, na Coréia do Sul não tem SUS.

Ao longo da série outros personagens surgem, como a estrela do bairro pobre que por seu mérito entrou na faculdade sem o FIES, Cho Sang-Woo, um analista de mercado cuja ganância e incompetência faz com que venda a própria mãe. Há Sae-Byeok, uma jovem norte-coreana que enfrenta dificuldades em sua vida de refugiada na Coreia do Sul, vítima do sexismo e pelo seu país de origem (curiosamente, um dos xingamentos favoritos a ela é ser chamada de “comunista”). Cabe destacar Oh Il-Nam (“homem número um” em coreano) um senhor que é uma mistura de Miyagi (Karatê Kid) com Yoda (Star Wars) e o carismático paquistanês de bom coração Abdul Ali. Esses personagens – além de personagens como o cristão do Velho Testamento, do mafioso cheio de clichê, da mulher solitária e falante - terão que passar por jogos infantis que são mortais. Ninguém é forçado. A série exaustivamente mostra que houve o livre-arbítrio, segundo os organizadores do espetáculo de sangue. Basta ver com atenção o segundo episódio para que esse argumento não fique em pé. Para a juventude, um aviso: os participantes estão de verde por ser essa a cor do fardamento usado pelos alunos coreanos do ensino médio.


Tirando a falsa polêmica das escolas brasileiras quanto a alertar os pais se a série é adequada ou não para alunos/filhos, em um momento que se come osso para substituir a carne no prato do brasileiro; tem uma Prevent Senior do darwinismo clínico e 14 milhões de desempregados, a série é o outro lado da moeda de Jogos Vorazes. Na trilogia de Jeniffer Lawrence havia um Estado opressor usando um reality público para moer a juventude para legitimar a força. Round 6 vai além. É o mercado que oprime a todos para um reality privado para legitimar o prazer de poucos. Subir e descer na escada inspirada nas obras de Escher[1] é a essência do sistema de mercado sul-coreano ou brasileiro. Entende-se o porquê de se colocar a série num Index pós-moderno e, paradoxalmente, o sucesso juvenil, que começa a descortinar que os problemas reais ultrapassam fronteiras, etnias, gêneros, orientações, idades. Os grilhões são gerais e só resta à juventude em um caráter universalista se organizar nesse cabo de guerra, passar por essa ponte de cristal, segurar o guarda-chuva, olhar para o Sol, dividr a bolinha de gude e saber que o jogo da Lula não basta para ser feliz.



[1] https://www.paulogala.com.br/o-passo-a-passo-da-coreia-do-sul-para-se-transformar-numa-potencia-tecnologica-mundial-estado-mercado/

[2] Maurits Cornelis Escher (1898 — 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras e litografias  que tendem a representar construções impossíveis, com uso de padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.




sábado, 9 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 8 - JUVENTUDE E DILEMAS DO FUTURO

A Juventude e a Batalha do Futuro Próximo.

Por Letycia Campello

 

Nunca esteve tão evidente o importante papel da juventude no desenvolvimento da sociedade. Entretanto, os desafios e obstáculos que estão aparecendo como consequência dos atos das gerações passadas estão causando sérias preocupações no meio jovem. Existe uma banalização muito grande da educação, onde o jovem com seu diploma em mãos precisam trabalhar em áreas completamente diferentes da que se formou por não ter oportunidades no mercado, e por faltar valorização no mesmo, indo por caminhos distantes do seu ponto inicial.

Hoje em dia, o que mais se vê são pessoas optando por carreiras em que se dê para trabalhar sem depender tanto de vínculos empregatícios, onde a autonomia tem sido o principal alvo das carreiras. Este fenômeno da busca pela falta de vínculos em CLT pode trazer a tona diversas evidencias de coisas que estão acontecendo neste exato momento: a popularização dos ideais liberais sendo apresentados aos jovens de maneira fantasiada, influenciando fortemente a se desprender de tudo e a se tornar cabeça de um mercado que só se alcança sendo puxado por alguém; o fenômeno do coach de empreendedorismo, que planta uma ideia de crescimento no mercado que na prática não é proveitoso e recompensador para a grande maioria das pessoas. A grande desvalorização do diploma e as exigências absurdas de cargos simples. Cada um desses pontos carrega em si um grande potencial em tirar o jovem de dentro da universidade e jogá-lo em uma fantasia de que tudo que tocar as mãos virará ouro do dia para a noite, quando se sabe que não é bem assim que funciona, e o resultado disso são frustrações e a sensação de ter corrido numa esteira, onde se deu tudo que tinha sem sair do lugar.


Na prática, a educação no Brasil sempre foi uma problemática desde os tempos do Império. As exclusões que haviam e os requisitos para ser simplesmente letrado eram absurdos, e hoje conseguimos ver o reflexo claro desta política ultrapassada, que cravou tão forte suas raízes na sociedade que mesmo centenas de anos depois é possível ver a marca da enorme falta de oportunidade que assolou a maioria da população brasileira. O grande desafio do jovem com a educação neste quesito é que a responsabilidade de recuperar todo este tempo científico perdido caiu sobre nós, e ao mesmo tempo, vivemos em um contexto onde a verba para financiar esta corrida contra o tempo se torna cada vez mais baixa a cada dia, sofrendo ataques diretos de um governo que valoriza mais o conservadorismo que a própria evolução do campo científico e intelectual da nação, ignorando completamente uma possibilidade de avanço protagonizado pela juventude brasileira.

Ainda com todos os diversos obstáculos na educação, somos hoje o intermediário entre os últimos suspiros e gritos de socorro da natureza e a mão da industrialização e da ganância que a sufocam. Desde pequenos, fomos ensinados a poupar água enquanto o agronegócio desperdiça, fomos ensinados a não jogar lixo nas ruas enquanto as grandes companhias descartam toneladas de plástico, fomos ensinados a preservar os rios enquanto a cada dia mais litros e toneladas de conteúdo poluente são jogados nos mesmos, fomos ensinados a amar e preservar as florestas enquanto elas são desmatadas dia e noite para enriquecer mais aqueles que convém. Em tudo isto, há dentro de nós um sentimento de culpa por sermos hoje a ponte que tornará este belíssimo planeta em cinzas se não levantarmos nossa voz a tempo, e usarmos a força que ainda nos resta para impedir que destruam nossa casa. Mas como fazer isso enquanto muitos de nós está preso nos pensamentos dos destruidores? A resposta está na educação.


Esta geração que vos fala pode ser a que descobrirá cura para doenças antes consideradas atestados de óbito, esta geração pode ser a que impeça o avanço do relógio do fim do mundo e do colapso ambiental, mas tudo isso dependerá do preparo encontrado nos livros, laboratórios e nas mentes brilhantes daqueles que foram ofuscados por toda a vida por um sistema que preza pelo lucro excessivo em cima de exploração em massa, e ignora qualquer potencial que venha dos mais desfavorecidos. Por mais angustiante que seja a atual realidade desta nação, ainda há esperança nas mãos daqueles que não se conformam com o negacionismo e ignorância, ainda há a possibilidade de reconstruir a estrada para o jardim, e entregar o florescimento de uma nova primavera humana nas mãos de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos. A humanidade ganhou uma nova perspectiva de tempo, o famoso A.C./D.C. poderá facilmente simbolizar um mundo Antes do Covid e Depois do Covid.