A
batatinha-frita está assando
Por Pablo Spinelli
Eu
acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada
“E
vamos à luta” - Gonzaguinha
Imagem do líder com uma máscara que
lembra a do Dr. Destino da Marvel
O
filósofo e antropólogo social polonês Karl Polanyi (1866-1964), em sua obra A grande transformação (1944), descreveu
o processo de modernização que gerou a Revolução Industrial inglesa no século
XVIII e sua consequente transubstanciação de homens em massa como um “moinho
satânico”, termo forte em um país com forte influência católica.
Nos anos 1990, a televisão brasileira foi pródiga em moer gente para apetites sádicos da audiência que eram alimentados por uma lógica neoliberal do mercado que teve seu primeiro momento auspicioso com a eleição de Fernando Collor de Melo no início daquela década. Exemplos para isso não faltam, como o quadro “Olimpíadas do Faustão”, as histórias tristes e comoventes com requintes de dramaturgia nos domingos de Gugu Liberato ou na “Porta da Esperança” de Sílvio Santos, que jogava dinheiro para uma ávida e competitiva plateia no “Topa tudo por dinheiro”, um título que resume o pensamento da época.
Silvio Santos dança com Carla Perez no Topa Tudo Por Dinheiro (anos 90)
Esse modelo de sociedade teve obstáculos com a formação do Brasil contemporâneo e a história econômica do Brasil. Um Estado demiurgo teve sua melhor encarnação na Era Vargas, síntese da modernização sem o moderno, do transformismo do nosso capitalismo sem abrir mão da tradição que residia na concentração de terras nas mãos de uma oligarquia a qual não era exigido o cumprimento da CLT, posto que as leis trabalhistas não abarcassem o mundo agrário. O mercado era dirigido pelo Estado e por mais que gritasse aqui ou ali, não era refratário de fato a tal direção, mas o mundo se move, e nos anos 1990 o nosso país começa a ter uma onda que começara no Chile de Pinochet, nos EUA de Reagan e na Inglaterra da Dama de Ferro. Meritocracia, capacidade de explorar talentos individuais, espírito empreendedor, inserção no setor de serviços e na III Revolução tecnológica, empregabilidade, são alguns dos termos que começaram a aparecer no cenário político, acadêmico e na imprensa. Como trazer esse ideário para as massas? O apresentador Luciano Huck foi o exemplo mais bem acabado desse modelo midiático, pois apresentava a pobreza e sonhos de uma pessoa que, em troca de um dinheiro teria que acertar no gol com um goleiro profissional em “Agora ou Nunca” Errou o gol? Lamentamos. A culpa é de sua falta de habilidade após treinar uma semana para acertar.
Dessa forma, a televisão aberta deu gradativamente um sentido moral e até apologético aos termos acima. Combinado com o avanço do neopentecostalismo, o processo de derruição do iberismo pelo americanismo seguia seu curso. A sociologia era inútil para explicar as decisões individuais da violência, como se via na exploração de crimes no “Aqui e Agora” do SBT ou nos programas da OM (atual CNT) protagonizados por Luiz Carlos Alborghetti e seu repórter, Carlos Massa, o Ratinho. A violência era explicada como ações de escolhas racionais e individuais. Pedro Dom, Suzane von Richthofen ou o caso Nardoni transformaram o singular como exemplo generalizante. Vinte ou trinta anos depois, num neoliberalismo que agora tirou seu capuz no país, voltam revigorados como peças de ficção para os jovens. E voltam sem qualquer censura nos canais de streaming, como nos dois primeiros exemplos.
Assim
como o crime, a morte, não pode ser explicada pela sociologia ou ciência
política, o desemprego, a miséria, o abandono, passaram a ser vinculada com o
binômio competência-incompetência; sucesso-fracasso; esforço-preguiça. A
educação passou a ter referenciais mundiais a partir de uma bússola: o exame
PISA, cujo uso se assemelha às leituras de economistas e jornalistas quanto ao
PIB, déficit público, renda per capita. Uma medida que avalia um grupo de
jovens (sem qualquer análise quanto à alimentação, ambiente familiar, acesso a
recursos tecnológicos, formação familiar – ou capital humano – para agradar a
Jessé Souza) e que além do paraíso educacional finlandês (alvo de grande
deboche da genial série catalã Merlí) tinha como parâmetro os resultados dos
estudantes da Coreia do Sul.
A
Coreia do Sul era a grande referência de modelo de país para um grupo de
liberais mais afeitos ao que se chama de neoliberalismo. Paulo Maluf, candidato
do então PDS (hoje, Progressista) à presidência da República em 1989 já
apontava dois modelos a serem seguidos caso vencesse: o chileno e o coreano.
O ministro
da Economia Paulo Guedes, homenageado com o prêmio "Personalidade do ano
para o desenvolvimento do setor varejista", durante a primeira edição do
Retail Trends Pós-NRF de 2020, já defendia o modelo sul-coreano como um
paradigma para sua política econômica do então candidato Jair Bolsonaro em
2018. Curiosamente, Chile e Coreia do Sul tiveram modernizações com generais de
longo mandato (para usar um eufemismo), Pinochet e Park, respectivamente.
Interessante
notar que a história de modernização da Coreia do Sul teve uma direção estatal
em quais setores deveria haver subsídios públicos para as empresas que
atingissem as metas estabelecidas pelo governo, o que impulsionou o capital
produtivo a exigir uma legislação trabalhista quase inexistente, a destruição
dos sindicatos, repressão das forças públicas sobre greves. Nos dizeres de
Paulo Gala, professor de economia na FGV-SP, um dos grandes pontos fortes do Estado desenvolvimentista sul-coreano
foi sua grande capacidade de não apenas “escolher vencedores”, mas também
“podar perdedores”, isso é, não apenas conceder benefícios a empresas
potencialmente capazes, mas também retirar benefícios a empresas que se
mostrassem incompetentes.[1]Um dos efeitos foi ter
acabado com as montadoras “perdedoras” e só ter sobrevivido uma, a Hyundai.
Com
esse quadro exposto, chegamos a Round 6, série de grande sucesso e polêmica
exibida no Netflix (e pirateada pelo Tik Tok e afins). Escrita em 2008 quando o
seu produtor estava em dívidas, a história começa em um jogo infantil cujo nome
entre nós é uma piada pronta. O jogo da Lula. Figuras geométricas aparecem na
abertura e ao longo de toda a série. Representação do alfabeto coreano que
representa o nome da série (letras O, J e M - Ojingeo Geim) também
define hierarquias na referência a outro fenômeno pop, os trabalhadores de
vermelho (como os assaltantes de A casa de papel) que quando vão trabalhar ao
fundo tem uma melodia muito próxima as dos Oompa-Loompas, os escravos anões da Fantástica Fábrica de Chocolate. E o
personagem protagonista, vivido por Lee
Jung-Jae, interpreta um quase Macunaíma coreano, um misto de Didi Mocó com
Agostinho Carrara (A grande família) nos traz uma empatia sem esconder seus
defeitos, um anti-herói, um herói onde adolescentes se reconhecem ao ver por
conta de não ser a virtude encarnada. Para os mais velhos, não há como não se
interessar pela trajetória de um endividado com a milícia coreana (pois é..),
com problemas para manter contato com a filha de dez anos, que vive com a mãe e
o padrasto; além do caro tratamento de saúde da sua idosa mãe diabética,
afinal, na Coréia do Sul não tem SUS.
Ao longo da série outros personagens surgem, como a
estrela do bairro pobre que por seu mérito entrou na faculdade sem o FIES, Cho
Sang-Woo, um analista de mercado cuja ganância e incompetência faz com que
venda a própria mãe. Há Sae-Byeok, uma jovem norte-coreana que enfrenta
dificuldades em sua vida de refugiada na Coreia do Sul, vítima do sexismo e
pelo seu país de origem (curiosamente, um dos xingamentos favoritos a ela é ser
chamada de “comunista”). Cabe destacar Oh Il-Nam (“homem número um” em coreano)
um senhor que é uma mistura de Miyagi (Karatê Kid) com Yoda (Star Wars) e o
carismático paquistanês de bom coração Abdul Ali. Esses personagens – além de
personagens como o cristão do Velho Testamento, do mafioso cheio de clichê, da
mulher solitária e falante - terão que passar por jogos infantis que são
mortais. Ninguém é forçado. A série exaustivamente mostra que houve o
livre-arbítrio, segundo os organizadores do espetáculo de sangue. Basta ver com
atenção o segundo episódio para que esse argumento não fique em pé. Para a
juventude, um aviso: os participantes estão de verde por ser essa a cor do
fardamento usado pelos alunos coreanos do ensino médio.
Tirando a falsa polêmica das escolas brasileiras
quanto a alertar os pais se a série é adequada ou não para alunos/filhos, em um
momento que se come osso para substituir a carne no prato do brasileiro; tem
uma Prevent Senior do darwinismo clínico e 14 milhões de desempregados, a série
é o outro lado da moeda de Jogos Vorazes.
Na trilogia de Jeniffer Lawrence havia um Estado opressor usando um reality
público para moer a juventude para legitimar a força. Round 6 vai além. É o
mercado que oprime a todos para um reality privado para legitimar o prazer de
poucos. Subir e descer na escada inspirada nas obras de Escher[1]
é a essência do sistema de mercado sul-coreano ou brasileiro. Entende-se o
porquê de se colocar a série num Index pós-moderno
e, paradoxalmente, o sucesso juvenil, que começa a descortinar que os problemas
reais ultrapassam fronteiras, etnias, gêneros, orientações, idades. Os grilhões
são gerais e só resta à juventude em um caráter universalista se organizar
nesse cabo de guerra, passar por essa ponte de cristal, segurar o guarda-chuva,
olhar para o Sol, dividr a bolinha de gude e saber que o jogo da Lula não basta
para ser feliz.
[1] https://www.paulogala.com.br/o-passo-a-passo-da-coreia-do-sul-para-se-transformar-numa-potencia-tecnologica-mundial-estado-mercado/
[2] Maurits Cornelis Escher (1898 — 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras e litografias que tendem a representar construções impossíveis, com uso de padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.