Foto da Edição da Folha de São Paulo de 03 de fevereiro de 2017
Lula recebe visitas no Hospital Sírio Libanês durante a internação de Marisa Letícia
Lula
e o Centro
Dedicado aos 100
anos do livro “Negrinha”, de Monteiro Lobato
Por Pablo
Spinelli
No último domingo a
Globonews, ao meio de manifestações que saíram do distanciamento social para a
defesa da democracia e contra o racismo, apresentou um debate mediado pela jornalista
Míriam Leitão com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros e
ex-candidatos à presidência Marina Silva e Ciro Gomes. O programa, que era
previsto para uma hora acabou por se estender e virou duas horas. As reações do
campo progressista foram mais manifestas do que do campo reacionário. A
pergunta básica tangenciou o porquê de não ter um representante da esquerda, ou
mais precisamente, um petista na mesa?
Independente do espaço
que petistas históricos ocupam na rede – assim como na jovem CNN Brasil – como
em debates aos sábados, a resposta foi dada pelo mais famoso deles, o
ex-presidente Lula que escreveu ao jornalista Bernardo Melo Franco, de O Globo,
recusando o convite para uma entrevista de uma série com ex-presidentes por conta
da adesão das empresas Globo a uma narrativa “golpista” e de “apoio às ações à
Lava Jato”. No dia seguinte, a presidente do PT, deputada Gleise Hoffman em
entrevista ao UOL, afirmou que o partido não deve subscrever nenhum manifesto
pela democracia porque o “PT nasceu na luta pela democracia, na luta dos
trabalhadores. O PT não precisa assinar um manifesto para dizer que é a favor
da democracia.”
Exposto isso, comecemos
pelo começo. A jornalista Míriam Leitão criou problemas para setores da
esquerda por conta de sua adesão aos planos econômicos do governo FHC e pelo
livro de um de seus filhos à Operação Lava-Jato. A ex-senadora e ex-ministra do
governo PT, Marina Silva, é considerada como uma esquerda reformista, moderada
ou com uma pauta única que é a ambiental. Ciro Gomes é apontado como um traidor
omisso por não ter apoiado o candidato petista em 2018 no segundo turno. O
presidente FHC é o pai da “herança maldita”, “privatista”, “neoliberal”. Noves
fora, o que resta? A esquerda fica circunscrita a uma hegemonia que é entendida
como sinônimo de poder por si mesmo.
As novas gerações ficam
vulneráveis a uma panaceia sem qualquer análise crítica e histórica. Míriam
Leitão fez parte do PC do B, seu então companheiro fez parte da luta armada e
ela foi presa e torturada de forma violenta durante o regime militar. Marina
Silva foi uma das fundadoras do PT no Acre, estado com histórico de ação de
grileiros, garimpeiros, grandes empresas do agronegócio junto com o esquecido
Chico Mendes. Ela comeu o pão que Asmodeu amassou com a então ministra Dilma
Roussef por conta de freios que fazia ao projeto desenvolvimentista que era
herdeiro de um projeto do presidente Ernesto Geisel. Ciro Gomes, que começou
sua carreira na militância estudantil na UNE com a esquerda católica, foi
deputado pelo PDS – contrário ao voto para governador e senador pelo seu
partido – e fez parte do PMDB que apoiou a candidatura de Tancredo Neves para a
primeira presidência após a ditadura militar. FHC teve uma longa trajetória com
o campo democrático. Foi companheiro acadêmico de Sérgio Buarque de Holanda e
de Florestan Fernandes, fundadores do PT. Participou da reorganização do MDB
nos anos 1970 para que se fortalecesse o elo com o novo sindicalismo do ABC
paulista liderado pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Foi constituinte, um dos
autores do agora famoso artigo 142 da nossa Constituição. Ganhou duas eleições
no primeiro turno e conseguiu fazer uma das melhores transições da América
Latina para seu sucessor, o qual apoiou de forma discreta, ao invés do
candidato de seu próprio partido. Foi um defensor do sistema de cotas – que só
virou lei em 2012 – que seria uma consequência de suas pesquisas sobre a
escravidão que criticaram o “mito da democracia racial”.
Após esses dados
históricos, quase “wikipedianos”, cabe a pergunta: esses atores não poderiam
falar em conjunto sobre a democracia? Não poderiam defender o Estado
Democrático de Direito? Suas biografias não podem ser levadas em consideração
ou somente determinado campo pode ter biografias destruídas? Após muitos e
muitos anos o ex-presidente Lula, num gesto de grandeza fez algo que lhe é
caro, a autocrítica, quando afirmou que errou ao não deixar o deputado Ulysses
Guimarães subir em seu palanque e que o seu partido errara ao expulsar três
parlamentares que votaram em Tancredo Neves nas eleições indiretas de 1985.
Nada poderia ser perfeito, assim, nada foi dito sobre a postura do PT quanto a
Constituição de 1988.
O Lula de 2002 foi o do
“paz e amor” com ampla cobertura das empresas Globo, onde seu jornal o
apelidara de “nosso urso Ted”, uma referência à história da política dos EUA. A
sua aliança com o empresariado foi afiançada com o industrial José Alencar, do
Partido Liberal, o mesmo do também empresário e ex-candidato à presidência em
1989, Guilherme Afif Domingues que teve como colaborador o economista Paulo
Guedes. Lula abraçou Maluf, Collor, Sarney em sua campanha. Tornou-se o Centro
político. Gradativamente, encapsulou a sociedade civil no Estado, mas isso é
outra história. Fez uma Reforma da Previdência sem ouvir o som das ruas e com
uma base parlamentar heterogênea, que ia do PC do B ao PP de Maluf. Passou pelo
baque do “mensalão” que foi iniciado pelo seu ex-aliado Roberto Jefferson.
Petistas históricos caíram, mas nada recaiu sobre o presidente. O Judiciário
lhe foi benigno. A mídia não construiu uma alternativa ao poder e enfrentou em
um segundo turno o “picolé de chuchu”. A partir desses movimentos construiu uma
teia de proteção social que foi referência e recebeu apoio público de Barack Hussein
Obama. Foi uma referência internacional a ponto de se predispor a dialogar com
aquele que chamou de “amigo” – isso não é monopólio só de um campo político -,
o então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, para fazer a ponte com os EUA.
Muitas de suas políticas foram aprovadas na Câmara dos Deputados que era
presidida pelo deputado Michel Temer. O sectarismo, a preservação de ideais
puros na política, ficou para uma dissidência que organizou o PSOL. Lula
finalmente tinha dado a entender que havia lido Maquiavel.
O Lula que ficou, por
enquanto, livre, voltou às ruas como uma “ideia”. A ideia banhada em egolatria
e que diminuiu o tamanho do PT, refém de políticos que fazem de tudo pela
reprodução do poder pelo poder, do orçamento partidário pelo orçamento
partidário. Virou um estudo de caso do relançado livro da psicanalista Maria
Rita Kehl, “Ressentimento” (Boitempo Editorial, 2020). A sua fala contra
setores da mídia não se contrapõem em nada ao atual presidente. Sua postura de
ressentido também não o é, assim como só querer falar para iguais ou para os
pajens de sempre. A prisão nem sempre faz mal. Gramsci e Graciliano Ramos
mostram que da dureza pode se sair maior. Dessa forma, ao invés do “Lula
Livre”, deveríamos pedir “Volta Lula”. O Lula da política do centro e não o que
faz de si o centro de sua política.