quarta-feira, 10 de junho de 2020

ERA UMA VEZ A ANÁLISE DE CONJUNTURA

 
Foto da Edição da Folha de São Paulo de 03 de fevereiro de 2017
Lula recebe visitas no Hospital Sírio Libanês durante a internação de Marisa Letícia
 
Lula e o Centro
Dedicado aos 100 anos do livro “Negrinha”, de Monteiro Lobato
Por Pablo Spinelli
No último domingo a Globonews, ao meio de manifestações que saíram do distanciamento social para a defesa da democracia e contra o racismo, apresentou um debate mediado pela jornalista Míriam Leitão com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros e ex-candidatos à presidência Marina Silva e Ciro Gomes. O programa, que era previsto para uma hora acabou por se estender e virou duas horas. As reações do campo progressista foram mais manifestas do que do campo reacionário. A pergunta básica tangenciou o porquê de não ter um representante da esquerda, ou mais precisamente, um petista na mesa?
Independente do espaço que petistas históricos ocupam na rede – assim como na jovem CNN Brasil – como em debates aos sábados, a resposta foi dada pelo mais famoso deles, o ex-presidente Lula que escreveu ao jornalista Bernardo Melo Franco, de O Globo, recusando o convite para uma entrevista de uma série com ex-presidentes por conta da adesão das empresas Globo a uma narrativa “golpista” e de “apoio às ações à Lava Jato”. No dia seguinte, a presidente do PT, deputada Gleise Hoffman em entrevista ao UOL, afirmou que o partido não deve subscrever nenhum manifesto pela democracia porque o “PT nasceu na luta pela democracia, na luta dos trabalhadores. O PT não precisa assinar um manifesto para dizer que é a favor da democracia.”
Exposto isso, comecemos pelo começo. A jornalista Míriam Leitão criou problemas para setores da esquerda por conta de sua adesão aos planos econômicos do governo FHC e pelo livro de um de seus filhos à Operação Lava-Jato. A ex-senadora e ex-ministra do governo PT, Marina Silva, é considerada como uma esquerda reformista, moderada ou com uma pauta única que é a ambiental. Ciro Gomes é apontado como um traidor omisso por não ter apoiado o candidato petista em 2018 no segundo turno. O presidente FHC é o pai da “herança maldita”, “privatista”, “neoliberal”. Noves fora, o que resta? A esquerda fica circunscrita a uma hegemonia que é entendida como sinônimo de poder por si mesmo.
As novas gerações ficam vulneráveis a uma panaceia sem qualquer análise crítica e histórica. Míriam Leitão fez parte do PC do B, seu então companheiro fez parte da luta armada e ela foi presa e torturada de forma violenta durante o regime militar. Marina Silva foi uma das fundadoras do PT no Acre, estado com histórico de ação de grileiros, garimpeiros, grandes empresas do agronegócio junto com o esquecido Chico Mendes. Ela comeu o pão que Asmodeu amassou com a então ministra Dilma Roussef por conta de freios que fazia ao projeto desenvolvimentista que era herdeiro de um projeto do presidente Ernesto Geisel. Ciro Gomes, que começou sua carreira na militância estudantil na UNE com a esquerda católica, foi deputado pelo PDS – contrário ao voto para governador e senador pelo seu partido – e fez parte do PMDB que apoiou a candidatura de Tancredo Neves para a primeira presidência após a ditadura militar. FHC teve uma longa trajetória com o campo democrático. Foi companheiro acadêmico de Sérgio Buarque de Holanda e de Florestan Fernandes, fundadores do PT. Participou da reorganização do MDB nos anos 1970 para que se fortalecesse o elo com o novo sindicalismo do ABC paulista liderado pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Foi constituinte, um dos autores do agora famoso artigo 142 da nossa Constituição. Ganhou duas eleições no primeiro turno e conseguiu fazer uma das melhores transições da América Latina para seu sucessor, o qual apoiou de forma discreta, ao invés do candidato de seu próprio partido. Foi um defensor do sistema de cotas – que só virou lei em 2012 – que seria uma consequência de suas pesquisas sobre a escravidão que criticaram o “mito da democracia racial”.
Após esses dados históricos, quase “wikipedianos”, cabe a pergunta: esses atores não poderiam falar em conjunto sobre a democracia? Não poderiam defender o Estado Democrático de Direito? Suas biografias não podem ser levadas em consideração ou somente determinado campo pode ter biografias destruídas? Após muitos e muitos anos o ex-presidente Lula, num gesto de grandeza fez algo que lhe é caro, a autocrítica, quando afirmou que errou ao não deixar o deputado Ulysses Guimarães subir em seu palanque e que o seu partido errara ao expulsar três parlamentares que votaram em Tancredo Neves nas eleições indiretas de 1985. Nada poderia ser perfeito, assim, nada foi dito sobre a postura do PT quanto a Constituição de 1988.
O Lula de 2002 foi o do “paz e amor” com ampla cobertura das empresas Globo, onde seu jornal o apelidara de “nosso urso Ted”, uma referência à história da política dos EUA. A sua aliança com o empresariado foi afiançada com o industrial José Alencar, do Partido Liberal, o mesmo do também empresário e ex-candidato à presidência em 1989, Guilherme Afif Domingues que teve como colaborador o economista Paulo Guedes. Lula abraçou Maluf, Collor, Sarney em sua campanha. Tornou-se o Centro político. Gradativamente, encapsulou a sociedade civil no Estado, mas isso é outra história. Fez uma Reforma da Previdência sem ouvir o som das ruas e com uma base parlamentar heterogênea, que ia do PC do B ao PP de Maluf. Passou pelo baque do “mensalão” que foi iniciado pelo seu ex-aliado Roberto Jefferson. Petistas históricos caíram, mas nada recaiu sobre o presidente. O Judiciário lhe foi benigno. A mídia não construiu uma alternativa ao poder e enfrentou em um segundo turno o “picolé de chuchu”. A partir desses movimentos construiu uma teia de proteção social que foi referência e recebeu apoio público de Barack Hussein Obama. Foi uma referência internacional a ponto de se predispor a dialogar com aquele que chamou de “amigo” – isso não é monopólio só de um campo político -, o então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, para fazer a ponte com os EUA. Muitas de suas políticas foram aprovadas na Câmara dos Deputados que era presidida pelo deputado Michel Temer. O sectarismo, a preservação de ideais puros na política, ficou para uma dissidência que organizou o PSOL. Lula finalmente tinha dado a entender que havia lido Maquiavel.
O Lula que ficou, por enquanto, livre, voltou às ruas como uma “ideia”. A ideia banhada em egolatria e que diminuiu o tamanho do PT, refém de políticos que fazem de tudo pela reprodução do poder pelo poder, do orçamento partidário pelo orçamento partidário. Virou um estudo de caso do relançado livro da psicanalista Maria Rita Kehl, “Ressentimento” (Boitempo Editorial, 2020). A sua fala contra setores da mídia não se contrapõem em nada ao atual presidente. Sua postura de ressentido também não o é, assim como só querer falar para iguais ou para os pajens de sempre. A prisão nem sempre faz mal. Gramsci e Graciliano Ramos mostram que da dureza pode se sair maior. Dessa forma, ao invés do “Lula Livre”, deveríamos pedir “Volta Lula”. O Lula da política do centro e não o que faz de si o centro de sua política.


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