THE POST: O RESGATE DO SOLDADO SPIELBERG
Em homenagem às três décadas da Constituição brasileira
Por Pablo Spinelli
Steven Spielberg teve uma trajetória ziguezagueante na sua produção cinematográfica de quatro décadas. Foi rotulado nos anos 1980 como diretor para crianças e adolescentes a partir de filmes dirigidos ou produzidos por ele, tais como E.T., Indiana Jones, De Volta para o Futuro; Os Goonies, dentre outros clássicos da cultura pop daquela época. Esse rótulo acabou por diminuir algumas pérolas do cineasta. Antes de Ghost, um grande sucesso nos anos 1990, Spielberg já havia dirigido uma história de um fantasminha camarada (Além da Eternidade); dirigiu um dos mais belos filmes que associam o tema da escravidão com o protagonismo feminino (A Cor Púrpura) e expôs fantasia e guerra antes do filme italiano “A Vida é Bela” em “Império do Sol”. Nos anos 1990, cansado do rótulo de um desdém da Academia e da crítica ao conteúdo da sua obra apostou na temática judaica na II Guerra, apelo que sensibiliza sempre a Hollywood. Aí temos o clássico “A Lista de Schindler” e seu Oscar como diretor. Poucos anos depois encontra aquele que será seu melhor cúmplice como ator, Tom Hanks, no extraordinário “O Resgate do Soldado Ryan”. Apesar de um sucesso de bilheteria como Jurassic Park, seu público ou envelheceu ou lhe deixou de ser fiel, assim como a crítica já não lhe era mais benfazeja como se viu em filmes como O Terminal, Prenda-me se for capaz ou Guerra dos Mundos.
Após filmes de certa polêmica como Munique e As Aventuras de Tintim, o diretor enveredou para temas duros, sem se preocupar mais com o público e se desloca do centro político para um olhar de esquerda moderada, uma volta às suas origens de simpatizante declarado do Partido Democrata. Com o denso Lincoln (2012) quando sua história é a clareza de um Maquiavel que vê a política sem moral (moral sem a conotação do bem ou do mal, para deixar claro). Eis que o diretor volta à cena e dá um Oscar ao seu ator. Naquele filme Spielberg mostra o outro lado do “fim justificar os meios”. É esse o caminho que ele nos dá em A Ponte dos Espiões – ritmo lento, histórico, com densidade psicológica, silêncios, destaque para atores. Seu caminho do Maquiavel da República democrática culmina no recente The Post.
Steven Spielberg - Diretor de Cinema
A crítica brasileira associou o filme com o recente Spotlight. Mas entendemos de forma diversa. O filme é recheado de intertextualidade que exige um espectador ativo, que não tenha um olhar passivo aos detalhes. Spielberg talvez tenha construído sua obra mais exigente para a reflexão e participação d espectador. Há um duplo diálogo no seu filme. Um é obrigatório pelas exigências da História. O editor protagonizado por Tom Hanks é o mesmo que foi retratado no filme clássico e obrigatório “Todos os Homens do Presidente” (1976) e o jornal que denunciou os malfeitos do Presidente Richard Nixon é o mesmo, o The Washington Post. A homenagem ao filme que lhe antecedeu é simpática na passagem quando o futuro delator dos papéis secretos de Washington passa por uma sala cheia de cartazes, dentre eles, o do filme “Buth Cassidy”, co-estrelado por Robert Redford, que também co-estrelou “Todos os Homens”. Mas se por um lado Tom Hanks reforça o apelo democrata à liberdade de expressão num claro movimento de protesto ao discurso midiático contra a mídia de Donald Trump, o diretor e o roteiro desconstroem uma atriz que precisava de uma injeção de renovação que é Meryl Streep. No filme, mesmo sendo editora de um jornal familiar que está abrindo seu capital no mercado de ações – algo que mostra a gênese do comprometimento da mídia atual com seus acionistas mais do que com a verdade dos fatos – ela não é a “Dama de Ferro”, filme que fez interpretando Margareth Tatcher, porém, está mais próxima de outro filme que lhe deu grande projeção nos anos 1980, “A escolha de Sofia”. Ali, a personagem de Streep fica em vários dilemas: proteger amigos? Expor a verdade dos fatos? Preocupação com os acionistas? Ficar ou sair da zona de conforto? Quando faz sua escolha acaba por justificar sua “milésima” indicação ao Oscar. Sem bandeiras clichés do feminismo atual, a descida da personagem na escada é um exemplo do protagonismo da mulher cercada de homens, como se vê na redação de um jornal dos anos 1970, diferente dos telejornais e das rádios atuais.
Mas citávamos a intertextualidade do filme e a exigência que ele provoca quanto à atenção do espectador. Por que Clinton perdeu? Como a esquerda e o centro democrático perderam uma eleição para um Berlusconi americanizado? Para responder a essa pergunta Spielberg dialoga criticamente com outro cineasta ao longo do filme e com seu esquerdismo peculiar. Oliver Stone. Parte das obras de Stone aparece no filme como reforço ou para serem desconstruídas. Começa com Platoon. Avança para Snowden. Caminha para JFK, de onde há a maior autocrítica que um diretor democrata jamais fizera no cinema: Kennedy teve ordem ativa no Vietnã, diferente do que Stone colocou em “JFK”. Passa por um paraplégico ex-combatente em um protesto: Nascido a 4 de Julho. E termina com Nixon. O posicionamento de Spielberg e do roteiro são de deferência a Stone, mas ao mesmo tempo de crítica à crítica pela crítica. O filme ainda brinca mais com a intertextualidade. Homenageia Tom Hanks em dois momentos. O primeiro ao atender um telefone e ouvir que “nós temos um problema”, frase que ele deixou em Apolo 13. O segundo é o final, que faz lembrar o inesquecível Forrest Gump que “denunciara” o Watergate. Além disso, a escolha de elenco não é à toa, nos ensina Spielberg. As produções cinematográficas não são – em sua maioria – apenas para comer pipoca, conversar durante a sessão ou namorar. São para refletir também. Diante de um grande problema, o que fazer? Better call Saul. Para quem viu a série Breaking Bad ficará claro que a solução de um grande problema é resolvida pelo ator Bob Odenkirk. Mas a solução de verdade não está nas delações. Não está nos furos da mídia. Não está no protagonismo do Judiciário. A solução de verdade está na Constituição. Esse é o legado de Steven Spielberg.