quarta-feira, 21 de agosto de 2019

COLUNA DO PABLO - SOBRE O FILME TAXI DRIVER

 

Taxi Driver ou Quando DeNiro e DaMatta se encontram

Dedico aos amigos Amanda e Leonardo e à jovem Flora, futura condottiere para melhores paragens.

Por Pablo Spinelli

Fazer uma análise sobre um filme que tem como protagonista um motorista de táxi talvez seja um anacronismo diante dos aplicativos de carros particulares que colocam esse ofício como uma peça em extinção. Fazer uma análise sobre um filme dos anos 1970 talvez seja tão antiquado quanto pensar em comprar uma autonomia de táxi no mundo das startups.

Porém, o filme é um dos maiores expoentes do cinema da “nova” geração de Hollywood que floresceu nos anos 1960 e 1970; geração que dominou as telas e influenciou a política, os costumes, vestuários, expressões no vocabulário e diretores mais jovens de todo o planeta.

Martin Scorsese foi e é um dos maiores nomes de sua geração. Conseguiu ter maior longevidade artística que seus contemporâneos, como Francis Coppola, George Lucas e Peter Bogdanovich. Conseguiu passar por problemas pessoais melhor do que os que Woody Allen enfrentou. Foi mais rico em abordagens temáticas e ousadias que o mais nerd do grupo, Steven Spielberg. A carreira desse ex-seminarista dialogou da máfia ao budismo; da corrupção policial à invenção do cinema sob o olhar de uma criança. Porém, mesmo que tenha feito filmes sobre jesuítas (e Jesus) ou homens milionários loucos; sua temática mais forte, seu laço mais afetivo provém dos personagens que lhe deram mais sucesso nas telas: os subalternos; os fracassados; aqueles que buscam a redenção.  Mafiosos de segunda categoria; boxeadores em sua decadência; prostitutas; policiais corruptos; mulheres solitárias; e, por que não, taxistas enlouquecidos, fazem parte do caldo mais interessante de Scorsese.

Seus filmes dialogam muito com a sua formação católica. O mundo perdeu um padre, mas ganhou um dos maiores amantes e conhecedores do cinema de todos os tempos. Um diretor que tem em seus filmes a questão da culpa, da moral ou sua ausência, da lealdade ou traição, o amor e o pecado como seus motes principais. Taxi Driver talvez seja um dos filmes que melhor traduzem tudo o que foi descrito acima, mesmo que para muitos críticos seu melhor filme tenha sido “Os Bons Companheiros”, mas cremos que não haveria Scorsese sem “Taxi Driver”, assim como provavelmente, não haveria “Apocalypse Now” de Coppola sem esse ter feito antes “O Poderoso Chefão”.

No cinema há grandes parcerias. Os mais jovens sabem que Samuel L. Jackson trabalhou em vários filmes de Tarantino. François Truffaut, diretor francês, fez vários filmes com Jean-Pierre Leáud. No Brasil, Glauber Rocha e Othon Bastos fizeram poucos, mas memoráveis filmes. O diretor inglês Alfred Hitchcock tinha dois ícones, James Stewart e Cary Grant para vários de seus filmes, fora o fetichismo com louras. O cineasta sueco Ingrid Bergman trabalhou com os atores Max Von Sindow (o corvo de 3 olhos de GoT) e Liv Ullman incontáveis vezes; Woody Allen teve como referências Diane Keaton, Mia Farrow e Scarlett Johansson para seus trabalhos; Ridley Scott com Russel Crowe desde “O Gladiador” ou o seu falecido irmão, o também diretor Tony Scott com Denzel Washington; e, o caso mais mítico, a dupla Federico Fellini-Marcello Mastroianni que entrou para a história ultrapassando as fronteiras do cinema italiano. Algo mais próximo aos italianos talvez seja a simbiose entre Martin Scorsese e aquele que foi o seu melhor alter ego entre os anos 1970 e 1990, Robert DeNiro. As carreiras de ambos são indissociáveis. Essas linhas, caros leitores, são para mostrar que a escolha de um elenco não passa pelo acaso. Filmes ou personagens são pensados para determinados atores e isso muito depende da ação do diretor.

Taxi Driver começa com um indivíduo solto na multidão. Um homem de bem. A princípio. Um homem com insônia que precisa do trabalho por terapia. Uma descrição da sociedade atomizada e de alguns dos diagnósticos mais sombrios para a América escritos por Alexis de Tocqueville no clássico “A democracia na América”. Eis que surgem as referências de Scorsese. A música é hipnotizante, assim como as ruelas sujas e o discurso moralizador do homem de bem de Travis Bickle, personagem de DeNiro. A cena inicial estampa uma Nova York colorida pelo voyeurismo do personagem com uma trilha de Bernard Hermann, compositor de alguns dos filmes mais importantes de Alfred Hitchcock. Mas a homenagem de Scorsese a Hitchcock vai para além da trilha.

Travis Bickle, um jovem de 26 anos consegue participar de uma frota de táxis e com isso, enquanto dirige, torce para que um Deus da punição venha a descer a lenha sobre a Sodoma que ele vê em Nova York, inclusive, sobre seus próprios passageiros.  Eis que aparece a maior referência a Hitchcock. Uma jovem competente, linda e loura (como as personagens centrais do experiente diretor inglês de Psicose e Um corpo que cai) desloca o seu olhar da podridão do espaço público. Eis que aparece Cybill Shepherd, uma Vênus que faz a apatia de Travis se desvanecer. Ele se engaja em uma campanha política porque a sua Afrodite é do marketing e da campanha de um político ao qual Travis não sabe o partido, o programa, nada. Algo que nem a equipe do candidato pensa em traduzir, pois Scorsese faz ali uma breve denúncia do sistema americano das eleições: os partidos como máquinas eleitorais que vivem um sistema repetitivo e monótono de venda de embalagens, sem conteúdo.
Travis engata um romance curto, vira um crush, ele e a personagem de Sheperd estão se “conhecendo”, para usar os termos em voga. Só que o conhecimento é trágico. O personagem de Bickle, que pode trazer antipatia pelo que pensa enquanto homem de bem, nos dá um ar desolado por não saber aonde levar sua “crush” ou o que dar de presente. A experiência de ambos em uma sessão de cinema já vale o filme, ainda mais ao se saber que a atriz começou a deslanchar a sua carreira em um clássico dos anos 1970 já esquecido: “A última sessão de cinema”. A rejeição de Betsy (Shepperd) faz Travis descer ao inferno. Mais trabalho como autômato. Começa aí a virada do filme, a Bandeira 2.
 

Porém, antes de fecharmos a corrida, vale destacar outro momento Hitchcock. Esse diretor – que merecerá uma resenha para esse blog ainda esse ano – tinha como uma de suas marcas fazer uma ponta em seus filmes. Era um êxtase descobrir aonde apareceria o diretor. Egos à parte, Scorsese faz uma participação pequena, mas brilhante no seu filme. Ele é o passageiro que é a síntese do discurso republicano mais radical – e atual. Racista, misógino e com pretensão a matar por possuir uma arma de fogo. Essa é quintessência do passageiro que tem um prazer indisfarçavelmente masoquista em ver sua mulher branca o traindo com um negro. Seu radicalismo assusta até Travis. Algo semelhante à família Bush ouvindo o atual presidente dos EUA. Isso para ficarmos nos EUA.
Voltemos à Bandeira 2. Como já escrito, Scorsese tem sua veia católica. Há a redenção. Travis é um esquisito, uma peça fora do lugar. Mas de forma muito sutil o filme aborda algo que poucos destacam. A sua crítica à guerra do Vietnã. Ao lado de filmes como “Amargo Regresso” ou “Nascido a 4 de Julho”, “O Franco-atirador” e “Rambo” (sim, é isso mesmo, mas o primeiro!), “Taxi Driver” fala do retorno dos soldados e seus traumas psicológicos e a dificuldade de sua insersão ao sistema e como ficam descrentes da política, pois se viram marionetes numa guerra que não entenderam o que foram fazer, como “Forrest Gump” denuncia com galhardia.
Assim, para o caminho da salvação de Travis, o renegado, há o caminho de Santiago quando ele se vê na obrigação de salvar outra loira – mais Histchcock, numa alusão clara a “Um corpo que cai” – das mazelas do mundo. Assim é que Jodie Forster faz um dos seus personagens mais marcantes do cinema, a jovem prostituta menor de idade (tal qual a atriz que tinha apenas treze anos), Isis, nome de uma deusa egípcia de grande poder, inclusive o de ajudar os mortos, como é o caso de Travis, que coloca seu cabelo como o de um punk, um moicano que assusta os espectadores, pois DeNiro mostra outro personagem com um simples corte de cabelo. É outra persona. O Vietnã reaparece na selva urbana. E sua missão é tirar a jovem Isis das garras de seu gigolô, vivido por Harvey Keitel (amigo de infância de Scorsese e DeNiro, mecenas para Tarantino fazer seu primeiro filme, pelo qual foi chamado de novo... Scorsese). O insucesso com a Vênus terá sua redenção se houver o salvamento de Isis. As charadas do excelente roteiro de Paul Schrader são espetaculares. A sequência final, salientada pela fotografia em vermelho e escuridão é a descida ao inferno em busca de uma Beatriz, como Dante de “A Divina Comédia”.
Uma curiosidade é que a personagem de Forster motivou a um jovem americano a tentar matar o então presidente Ronald Reagan. Segundo o psicopata, era uma forma de chamar a atenção de Jodie Forster. Taxi Driver, ironicamente, sugere um atentado a um político em uma cena.

 
 
Outra curiosidade. DeNiro e DaMatta. Qual a conexão? O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta escreveu um clássico ensaio presente no livro Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro; no início dos anos 1980. Pois bem, ali, o autor disseca uma característica da cultura do brasileiro, esse povo perdido por conta da colonização ibérica e criado sob o peso do credo católico. DaMatta nos diz que aqui há um certo “jeitinho brasileiro” por conta das relações de pessoalidade. “Você sabe com quem está falando?” seria a frase que mostra uma sociedade hierarquizada e carregada da criação corporativa que veio do mundo católico e foi institucionalizada por Vargas. O Estado patrimonialista descrito por outro autor, Raimundo Faoro, destruiu o nosso liberalismo, as concepções individuais, um ethos que fosse marcado pelo mérito e não pelo sobrenome ou cargo. Esse pessimismo quanto às nossas origens não nasceu com DaMatta e já teve críticas muito melhores do que as que esse autor poderia fazer. A ironia é que DeNiro criou (foi improviso do ator, não fazia parte do roteiro) várias formas de falar uma mesma frase: “Você está falando comigo?”. Ao contrário da idílica formação anglo-saxã, leitura que DaMatta nos permite crer, essa frase mostra a solidão atomística que o ator genialmente resolve: não olhe para mim. Caso persista, sacarei o meu melhor argumento: uma arma em sua direção. Ainda vai querer falar comigo? Esse encontro do ator com o antropólogo ao invés de gerar um maniqueísmo entre a cultura ibérica e a anglo-saxã deve nos alerta para um perigo maior: imagine as relações pessoais, o nepotismo, o patriarcalismo, o uso do sobrenome, presentes no mundo ibérico com o individualismo solitário anglo-saxão que tem como único argumento apontar uma arma para quem está olhando? O pior dos mundos seria a junção do malandro com um herói, um Travis que não aponta a arma para o espelho, mas para todos nós e tenta nos intimidar. Mas como quem cria cadeados antes criou a chave, não há solução sem que o problema tenha a sua solução. Para Travis a sua solução foi salvar a jovem prostituta do perverso mercado do gado humano. Para nós só há uma solução: salvar outra jovem nesse país. A democracia.

 
 

domingo, 18 de agosto de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DO LIVRO A GRANDE SAÍDA


A Grande Ferida


Para Maria da Conceição Tavares

Por Vagner Gomes de Souza

Desde a transição democrática brasileira (1979 – 1988) houve um gradual afastamento do social em relação à formulação da política. A trajetória de vitórias sindicais do “novo sindicalismo” emergiu sob tutela de uma americanização que foi se tornando hegemônica na sociedade com efeitos contraditórios. De um lado um partido de base popular emergia dos movimentos sociais (Partido dos Trabalhadores) enquanto uma esquerda propositiva vinculada ao tema da grande política declinava (entre suas várias vertentes há os partidos comunistas). Essa “cisão” permitiu um “vazio” na disputa eleitoral presidencial de 1989 que permitiu a vitória do programa neoliberal sob o comando de Fernando Collor.

As medidas econômicas do Plano Collor trouxe a primeira experiência da implantação do neoliberalismo ”puro” no país que se beneficiava de dessa cisão entre política democrática e movimentos sociais. A individualização dos sujeitos deixava no “embrião” essa conjuntura em que vivemos na atualidade. A luta do social pelo social, na verdade, só acelerou a despolitização da sociedade a medida que as classes subalternas se viram diante da “Terra Prometida” dos ganhos individuais sem a necessidade da organização coletiva.

Nos meios acadêmicos, a fratura social se embrenhou num mundo de “novidades” fragmentadas na “Nova História” e outras vertentes das Ciências Sociais encasteladas nos Departamentos Universitários. Falar em Pensamento Social Brasileiro seria uma forma política e democrática de resistência acadêmica que não se traduziu em pontes com a formação do ensino básico nacional. Assim, os pensadores da formulação econômica do país foram deixados nas prateleiras do esquecimento enquanto a economia nacional se estabilizava com o Plano Real e na sequência neodesenvolvimentista do Governo Lula/Dilma.

Contradições que aguardam um momento de reflexão do campo democrático pois vivíamos anos de declínio das desigualdades sociais. As forças democráticas não se renovaram para debater a economia política como um campo do saber que esteja a serviço da (re)distribuição de renda. O liberalismo sem a cultura política democrática foi gradualmente cooptado pelo senso comum que tem hoje a “teologia da prosperidade” de fortes núcleos pentecostais como militantes desse mundo sombrio a ser enfrentado.

Abriu-se essa grande ferida que permitiu agora a emergência de uma faceta do neoliberalismo  em segunda onda. O neoliberalismo “puro” se manifesta com a militância digital de grupos cientes da defesa da elite econômica e crítica até das ideias de um capitalismo de face humana. Vivemos o “pinochetismo fora de lugar” com setores militares compromissados com a memória de justificativa dos porões da Ditadura Militar (1964 – 1985) e doutrinados pela ideologia do antipetismo não se incomodam com uma política internacional submissa aos norte-americanos e ao empreguismo.

Esse é o momento em que a leitura do livro A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade (Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2017) ganha um peso político para aqueles que defendem que a pobreza é a demonstração da injustiça social. O autor Angus Deaton não está no campo do marxismo, porém é um exemplo de um intelectual liberal comprometido com pesquisas econômicas que nos ajudam a demonstrar as consequências econômicas da nova orientação conservadora mundial. Portanto, merecidamente foi ganhador do Prêmio Nobel de Economia. Contudo, permanece desconhecido entre as forças políticas que defendem uma frente democrática ampliada contra as forças da tirania da “pós-verdade”.

O livro foi originalmente publicado no segundo mandato do Presidente Barack Obama (2013) aonde ainda havia a baixa percepção da durabilidade dos efeitos retrógrados na política depois da crise do capitalismo financeiro em 2008. Sua análise geral sugere que o mundo melhorou em muitos indicadores socioeconômicos, mas a persistência da desigualdade social seria uma “fronteira” a ser enfrentada com ação política. Aqueles que venceram precisam estender suas mãos para aqueles que ficaram atrás.

Não seria uma ação de caridade. Seria o exercício da solidariedade social como escolha e manifestação humana na política. Um diálogo do pensamento do autor com a sociologia de Durkheim nos permite perceber o quanto o papel da saúde tem um sentido maternal em diversas famílias. A solidariedade orgânica pelas agências internacionais (ONU, OMS, UNICEF, etc.) lhe permite entender o progresso como um fator que deve acolher o bem estar do mundo. A globalização poderia melhor observar os efeitos da redução da pobreza na Índia e na China nas últimas décadas. Por outro lado, o leitor sensível ao momento político contemporâneo compararia com os descaminhos que Brasil e Argentina vivem em anos recentes uma vez que as conquistas sociais desses “países chaves” do Cone Sul estão sendo retirados.

O livro é uma importante aula para que cuidemos das feridas existentes no campo democrático. Está dividido em três partes (“Vida e morte”, “Dinheiro” e “Ajuda”). O capítulo “Bem-estar material nos Estados Unidos” deveria ser reproduzido entre as forças progressistas para questionar as forças conservadoras que assimilam o americanismo como simples desenvolvimento das forças progressistas. Muito bem sabemos que há as contradições das relações sociais de produção e as escolhas políticas sobre o combate a pobreza sempre será uma saída no qual os defensores da democracia devem participar. Assim, A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade é um livro “frentista” em oposição a as fraturas sociais que devoram a essência democrática da Carta Constitucional de 1988.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DE DESMILITARIZAR


Democratizar

 

À memória de Andrea Camilleri, um comunista que escreveu romances policiais sem reproduzir preconceitos.

Por Vagner Gome de Souza

 

Nas eleições de 1998, no estado do Rio de Janeiro, a unidade do campo progressista se fez vitoriosa numa aliança protagonizada pelo PDT e o PT. A duras penas para alguns segmentos mais à esquerda, a eleição da chapa Garotinho / Benedita da Silva impactava na conjuntura nacional diante da segunda vitória tucana as eleições presidenciais já no primeiro turno.

Derrotava-se um Governo estadual que dialogava com uma direita autoritária no campo da segurança pública. Eram tempos do Deputado Estadual Sivuca (eleito pela última vez em 1994) que não se intimidava em repetir: “Bandido bom é bandido morto.” e a sombra da ditadura militar rondava as eleições com acenos para o General Newton Cruz (que nas eleições de 1994 tinha ficado em terceiro lugar com 14% dos votos no Estado). Essas forças reacionárias não tiveram um espaço protagonista pela intervenção da política de frente que se fez com muitas concessões de todos os setores envolvidos na campanha vitoriosa.

Contudo, já observamos que o tema da segurança pública já estava sob hegemonia de uma leitura política alheia a ampliação dos Direitos Humanos. As contradições políticas da gestão Garotinho (1999 – 2002) são fundamentais para compreender o quanto o campo democrático ainda “patinava” no enfrentamento do tema. Agora, temos um cenário que justifica a relevância da leitura do livro Desmilitarizar de Luiz Eduardo Soares (São Paulo, Editora BOITEMPO, 2019), pois o autor foi testemunha dessas contradições na sua atuação. Foi Subsecretário de Segurança e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000), durante o governo de Anthony Garotinho, quando chegou a denunciar a "banda podre" da polícia do Rio (sobre esse momento sugerimos a leitura do mesmo autor de Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Cia. das Letras, 2000).

O viés do populismo da gestão Garotinho não incorporou a necessidade da democratização no aparelho de segurança, o que lhe empurrou para as forças conservadoras com bases no fundamentalismo religioso. Eleito graças ao programa de centro-esquerda, aos poucos, atribuía sua vitória a sua conversão a Igreja Evangélica após um acidente de automóvel ocorrido em 1994. Os grupos do neopentecostalismo foram ganhando espaço em torno do Deputado Federal Francisco Silva (evangélico e proprietário da Rádio Melodia). O projeto político presidencial de 2002 definia-se já em 2000. As forças políticas democráticas foram gradualmente sendo afastadas do Governo como ocorreu na demissão de Luiz Eduardo Soares feita numa entrevista pela TV.

Entretanto, a denúncia da “banda podre” da polícia antecipava em muito que observamos na descaracterização da segurança pública no Brasil ao ponto de chegarmos a elementos que sugerem a aproximação de muitas forças políticas a grupos “paramilitares” conhecidos como milícias. Os livros Elite da Tropa e Elite da Tropa 2 (escritos em coautoria) permitem a evolução do pensamento do autor de Desmitarizar até a colaboração para a apresentação da PEC 51/2013, pelo Senador Lindbergh Farias, que defende a desmilitarização das polícias no país. Assim, compreendemos que a contribuição do livro transcende as fronteiras acadêmicas e contribui para que militantes dos movimentos sociais vinculados ao tema dos Direitos Humanos tenham melhores argumentos para o debate político hoje em curso.

Vivemos tempos sombrios que impõe que livros como Desmilitarizar sejam resenhados com todo esse roteiro político para que o campo democrata entenda que poderíamos estar numa outra situação se as unidades programáticas anteriores não se deixassem contaminar pelos “atalhos” do populismo. De Garotinho (1998) até a eleição do atual Governador do Rio de Janeiro, a esquerda contribuiu para o corporativismo partidário e se deixou levar pelo “culto da identidade” dos movimentos sociais sem fazer a necessária articulação da política de frente. Assim, segurança pública e direitos humanos passaram a ser abordado como polos em conflito, o que empurrou o centro político para esse cenário obscuro em que vivemos.

 O livro é uma coletânea de artigos que não foram acessadas pelo grande público e foram revistas pelo autor com o intuito de fazer esse constante diálogo sobre a necessidade de compreender que a ideia de segurança está associada ao acesso ao bem estar e seus problemas seriam agravados pela consolidação das desigualdades sociais. A denúncia do “racismo estrutural” percorre as páginas de Desmilitarizar com o uso de dados estatísticos que impõe mais racionalidade ao se defender “atalhos” autoritários para reduzir os índices de violência. Os artigos estão agrupados em quatro partes além da Introdução e do Posfácio (Polícia – Drogas – Raízes da Violência – Direitos Humanos, cultura e poder).

O autor defende persuadir até aqueles que desejam resultados no combate ao crime para uma reflexão. Essa é a maior ousadia do livro já presente na Introdução: “A quem acredita na ‘guerra contra o crime’, dirijo a seguinte ponderação. Meu intuito é oferecer argumentos persuasivos mesmo àqueles que não se importam com valores e apenas cobram resultados. (...)” p.14. Ou seja, a leitura do livro é um convite do diálogo com aqueles que se deixaram iludir que é justificável o abate de quem porta um fuzil. O debate deve ser feito para “virar” opiniões que se deixam influenciar pelas redes sociais do ódio.

 Portanto, na primeira parte do livro (Polícia) seria interessante uma leitura atente no artigo “A política nacional de segurança pública: histórico, dilemas e perspectivas”, originalmente de 2007. Nesse artigo, se reconhece o quanto o plano nacional de segurança pública, uma gestação tímida do governo FHC, teve sua ampliação nas gestões posteriores numa caminhada com inúmeros “ziguezagues”. A implementação do bem estar no Brasil se faz nessa linha gradual que caracteriza nossa revolução passiva. As iniciativas mais progressistas são “abortadas”, mas isso não impede que haja avanços. Por fim, há um posfácio que aborda a recente onda de “contra revolução passiva” que atravessamos desde o impeachment do Governo Dilma.

Em seguida, na segunda parte do livro (Drogas), o artigo “A cocaína no mundo, segundo Roberto Saviano” é um convite para observarmos a questão de repressão do consumo das drogas sob um olhar de análise da conjuntura internacional. Pensemos na crise do capitalismo financeiro em 2008 e a expansão do lucro com o tráfico internacional de drogas principalmente para a Europa dos altos índices de desemprego na juventude. Juventude, desemprego e consumo de drogas a serviço do grande capital que “lava seu dinheiro” em outros setores da economia. A “Guerra contra as drogas” só gerou mais desigualdade social, pois os recursos aplicados na repressão não deram resultados e poderiam ser mais bem investido em saúde e educação.

Continuemos a falar sobre a juventude, na terceira parte (Raízes da Violência), o artigo “Juventude e violência no Brasil contemporâneo” nos provoca para uma reflexão sobre as bases do voto conservador obtidos na faixa eleitoral de 18 – 30 anos. A brutalidade policial contra os jovens negros nas periferias das grandes cidades não impediu que segmentos significativos dessa juventude referendasse a negação da democracia e dos direitos humanos. O ódio da juventude no Brasil contemporâneo é um fragelo da dialética sem síntese que surgiu nas manifestações de 2013. Inúmeras “bandeiras” sem uma política aglutinadora abriu esse vazio na política para a juventude. Diante da invisibilidade, os jovens da periferia recorreram ao “linchamento” da democracia à medida que as lideranças juvenis do campo democrático abordam o tema da segurança pública ainda com preconceito.

 Provavelmente, esse estigma seria rompido na política carioca pela Vereadora Marielle Franco que foi brutalmente assassinada em 2018. Assim, o artigo “A segunda morte de Marielle ou Ainda é possível falar em segurança pública e direitos humanos no Brasil?”, na quarta parte (Direitos humanos, cultura e poder), tem relevância, pois foi escrito no calor das eleições de 2018, a primeira versão é de 5 de outubro de 2018. Naquela altura, o autor não teria condições de antecipar a gravidade do resultado do segundo turno eleitoral, mas ao longo da leitura perceberemos um sentimento de balanço político das eleições sob o olhar dos defensores da Democracia. Por fim, o posfácio recebeu o título de “Lições de Marielle” no qual o autor menciona um pouco sobre as ameaças que sofreu nos idos de 2000. O desmanche da centro-esquerda abriu caminho para esse mundo de rancor e ódio. Entretanto, as páginas do livro nos convidam para seguirmos na perseverança por alianças para democratizar todos os serviços públicos, principalmente a Polícia.

 
Resenha: Soares, Luiz Eduardo – Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.

domingo, 16 de junho de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DE LIVRO

 
 
Um Manifesto a procura de um Ator

Por Vagner Gomes de Souza

(Resenha do livro Lilla, Mark. O Progressista de Ontem e o do Amanhã. São Paulo, Companhia das Letras, 2018)

Dedicado ao Vereador Paulo Pinheiro (PSOL – RJ)

Muitos livros, a exemplo dos filhos, seguem uma vida própria que ultrapassam fronteiras territoriais para os quais foram escritos. Mark Lilla, aos poucos, começa a ser lido e conhecido nos meios acadêmicos do Brasil graças ao livro O Progressista de Ontem e o do Amanhã. Os paralelos entre a gestão do atual mandatário presidencial no Brasil com o populismo de direita conhecido como “trumpismo” suscita curiosidades nos leitores brasileiros mais atentos aos caminhos e descaminhos do nosso americanismo.

O livro foi lançado nos Estados Unidos no primeiro ano da gestão de Donald Trump não como ato de resistência política, mas como convite aos movimentos sociais voltarem ao campo da política. No diagnóstico do autor, as forças liberais norte-americanas (mais próximas do pensamento social-democrático europeu) abdicaram da tarefa de fazer uma política de unidade em defesa da cidadania. Trilhando o caminho da valorização das políticas identitárias, eles aprofundaram a “privatização” das ações dos sujeitos sociais num conjunto  de partículas atomizadas.

A atomização da sociedade seria um problema a ser contornado segundo Antonio Gramsci em suas anotações sobre o americanismo. A obra de Mark Lilla faz semelhante alerta, porém sugere, paradoxalmente, que estaríamos em tempos de uma crise da hegemonia do pensamento reaganista (ou seja, os fundamentos de um fundamentalismo liberal e individualista). Contudo, digamos que o velho modo de pensar a política estaria morrendo ao ponto que a nova forma de fazer política progressista ainda não surgiu.

Diante da dificuldade de se fazer política por parte das forças oposicionistas ao individualismo do mercado, Lilla expõe que os movimentos sociais foram “cooptados” pelo senso comum do falar par si próprio ao contrário de fazer um discurso mais amplo para todos da sociedade. Aprofundar a identidade de segmentos sociais simplesmente afasta a preocupação do uso da política democrática em favor de uma mediação. Essa seria a tarefa do ator-político conhecido como Partido.


A epígrafe do livro cita um discurso do Senador Edward M. Kennedy no qual há a valorização do partido que defenda os cidadãos. Um manifesto se desenha desde então pelas mudanças de cunho superestruturais no qual as forças progressistas norte-americanas necessitariam sair de uma pseudopolítica para reaprender a fazer a política. Sugerimos que seja um manifesto para um “moderno Príncipe” em tempos de ativismo digital soa como uma refundação de Que fazer? do marxista Vladimir Lênin. Contudo, identificamos no livro as linhas da política como vocação de Max Weber quase como se tivéssemos que atuar aos passos de uma ética da responsabilidade para conquistar o eleitor comum à medida que a ética da convicção só coloca as forças progressistas no “beco da política”.

Além da ação política weberiana, os ensinamentos de Tocqueville sobre a importância da educação para um mundo democrático surgem em passagens de um livro com esse aporte de manifesto político que conclama ao Partido Democrata fazer uma política de formação de quadros paralela aos meios acadêmicos. A formação política de uma nova geração para além das fronteiras dos campi universitários para inspirar os jovens a pensar de forma coletiva. Portanto, há um tensionamento na busca de um ator político para aproveitar um momento de enfraquecimento do ciclo reaganista. Não nos iludamos. Temos um longo caminho para caminhar diante do vazio de propostas políticas que falem para os cidadãos. Muito semelhante aos ataques sofridos a esquerda brasileira sem que a mesma saiba responder buscando sair das suas fronteiras de sectarismo conhecido como Frente de Esquerda.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: INFILTRADO NA KLAN

 
INFILTRADO NA KLAN: SPIKE LEE FAZENDO A COISA CERTA

Dedicado a um certo capitão Rodrigo, um infiltrado
Por Pablo Spinelli
A construção de um pensamento de um intelectual pode, em muitas vezes, sofrer flexibilidades, mudanças, rupturas, reposicionamentos, aprofundamentos, autocrítica, enriquecimentos de acordo com o avançar da idade. Não é uma lei, mas é o que ocorre na maioria das situações dos escritos deixados por filósofos, escritores de ficção, poetas, pintores, cantores em geral. Um caso de uma percepção arguta, perspicaz das mudanças dos tempos, das variações de um público ao longo de décadas é da extraordinária e multifacetada Bibi Ferreira que nos deixou recentemente. Dos musicais americanos traduzidos para a nossa língua; das comédias de costumes e clássicos de nossa literatura, a atriz mais idosa até há pouco em atividade no país chegou à “Gota D’Água”, musical de Paulo Pontes e Chico Buarque que adaptava o clássico grego, a tragédia Medéia, para o Brasil dos anos de chumbo da década de  1970. Foi Bibi Ferreira que popularizou para as gerações com mais idade a vida e obra de Edith Piaff, antes do excelente filme que nos revelou Marion Cotillard.  Peça política, musicais americanos, divas – além de Piaff, a portuguesa Amália Rodrigues. E muito, muito mais.
Para além da devida homenagem para Bibi Ferreira, podemos usar – a não sem polêmicas – distinção entre “jovem” e “velho” para vários pensadores, onde geralmente, o primeiro adjetivo tem uma carga de arroubos, de insights que se revelariam mais tarde na obra madura, o jovem, como tal, seria o voluntarista, extremista na análise da vida – seja pelo excesso de otimismo da mudança, seja pela perspectiva pessimista que nada há de se fazer. Foi gasto uma energia muito grande para encontrar rupturas e continuidades entre o “jovem” e “velho” Marx, um labirinto que o filósofo Louis Althusser criou e poucos querem sair. Assim aconteceu com Hegel, Tocqueville, Sartre, além dos clássicos gregos, para citar alguns. Claro que o tempo pode gerar mudanças para o bem ou para o mal, depende de quem lê. Do idealismo para o materialismo; do liberal conservadorismo para o reacionarismo, do radical para o moderado, isso tudo fica a gosto do freguês. Há certos parâmetros que procedem. Uma dessas divisões que já é clássica na literatura acadêmica é o caso do jovem Gramsci, cheio de revolução nos capilares, que achava que a Revolução de 1917 contrariava O Capital, com o Gramsci mais velho na cadeia, onde revê seus erros naquela conjuntura, afinal, dissera que o fascismo seria breve. Algo que não viu ao passar de cárcere em cárcere pelas mãos daqueles que ocuparam o poder em 1922 e só saíram oficialmente em 1944, não pela ação do movimento da política na sociedade civil, mas pelo uso da guerra de movimento das tropas aliadas, dentre elas – como tão simbolicamente ficou retratado em A Vida é Bela – a dos EUA que ampliaria o seu americanismo e fordismo pela Europa Ocidental.
Após essa longa introdução cujo objetivo é dizer que uma obra só não sintetiza o pensamento de um autor; que a ruptura entre “jovem” e “velho” não quer dizer que seja progressiva e, em alguns casos tal distinção nem existe, e, não menos importante, identificar que muitos dos que participam com veemência da paranoia instituída por alguns intelectuais e youtubbers que Gramsci com seu “marxismo cultural” foi o patrono da destruição dos valores ocidentais, não leu um terço do que esse autor, professor de Letras, crítico de teatro, escreveu. Mas, vamos ao que interessa: o que isso tem a ver com cinema e Oscar?
Alguns autores marcaram suas obras por certas idiossincrasias a ponto de ser fácil reconhecer o diretor pelo filme. A loira de Hitchcock, diretor que já dizia quem era o culpado logo no início do filme (exceção é Psicose). O personagem Antoine Doinel, alter-ego na maior parte dos filmes de Truffaut. As questões psicanalíticas e o inconformismo monogâmico de Woody Allen. Os personagens da periferia urbana, como taxistas e gangsters de Scorsese. Os silêncios e os enquadramentos de Ingmar Bergman. O surrealismo de Luis Buñel.  O exagero circense e rabeleisiano de Fellini. A câmera na mão e as alegorias de Glauber Rocha. Hoje, alguns remanescentes do que seriam diretores-autores, são Tim Burton, Wes Anderson e Quentin Tarantino. Suas digitais estão em todos os seus filmes de forma perceptível. No caso do diretor Spike Lee, se tivermos que buscar um espaço a partir de sua trajetória, ele está mais para as mudanças entre o “jovem” e o “velho” colocadas no nosso preâmbulo, prezados leitores, do que o diretor que mantém sua marca sem abrir mão de seus conceitos visuais estéticos e de abordagens de roteiro.
 
Spike Lee é um diretor que começou jovem no início dos anos 1980. Começou com documentário que tratavam de forma virulenta o tema do racismo contra os negros. A questão da identidade negra está presente desde sua infância, pois nascera em Atlanta, no sul dos EUA, o mesmo Estado retratado no clássico do cinema que defendeu a causa sulista na Guerra de Secessão, “...E o vento levou”. Sua juventude foi no Brooklin, local onde a vida societária é segmentada: brancos, latinos, negros, orientais. Sua carreira deslanchou no filme Faça a coisa certa (1989) onde aponta uma metralhadora giratória para todas as etnias que teriam como denominador comum o preconceito. Seu filme mais ambicioso – herdeiro de seu início como documentarista – é o polêmico Malcolm X (1992) que foi encarnado magistralmente por Denzel Washington que perdeu para o Oscar porque havia um Al Pacino cego dançando tango. Por falar em dança, Spike Lee, admirador confesso de um cantor de cabelo afro com uma voz singular e uma dança singular, Michael Jackson, acabou por produzir um dos seus álbuns e disse que passou pela filmagem mais difícil de sua vida ao subir em uma comunidade (Dona Marta, em Botafogo) onde o tráfico garantiu a segurança de sua equipe. E assim foi feito o clipe de They Don’t Care About Us, de 1996.
Spike Lee com um cantor que estava sendo alvo de bombardeios por conta de motivos inconfessáveis não assumia sua negritude. Esse é um Spike Lee diferente da pauta da identidade, da valorização da diferença como forma de ampliar direitos. Michael Jackson acabou por ser um ponto gradativo da virada de um diretor que começou a visar os problemas políticos da política americana para além da pauta de um ou outro movimento. É o Spike Lee da frente política. Um dos filmes mais “estranhos” para alguns críticos do já sexagenário diretor é O plano perfeito (2006), estrelado por Denzel Washington, Clive Owen e Jodie Forster. Esse filme, sem querermos adiantar sua trama, é a semente que floresce em Infiltrado na Klan (2018).
A partir de um episódio real que parece inacreditável, Lee resgata a trajetória de um policial negro que consegue se infiltrar na KKK através da sua astúcia e da tecnologia da época: telefone com fio. Spike Lee começa o filme fazendo um ajuste de contas com o seu Estado de origem. Aparece Scarlet O’Hara perdida entre centenas de feridos do Sul à procura de “seus  negros” diante daquele massacre. Logo em seguida, uma homenagem aos filmes que eram tinham diretores e elencos negros (é, leitor jovem... Pantera Negra e Corra não colocaram o ovo em pé), o que foi chamado de blaxpoitation. O mais famoso deles foi Shaft (1971). A musa foi a atriz Pam Grier, a mesma que foi resgatada por Quentin Tarantino em Jackie Brown (1995).
O curioso é que ainda há um pouco do jovem e intempestivo Spike Lee no atual. Um exemplo disso foi uma polêmica onde acusou Tarantino de ser racista por conta do vocabulário que seus personagens de todos os tons de melanina aplicam aos afro-americanos. O estopim foi Django Livre (2013). Tarantino respondeu que além de ter trabalhado com Pam Grier, é notória sua relação com Samuel L. Jackson, além de ter revelado para o grande público Ving Rhames, o temido Marcellus Wallace de Pulp Fiction (1994). O resultado disso foi a provocação com mais dureza ao personagem de Samuel Jackson em Os oito odiados (2015). O ponto paradoxal é que a abertura do filme e algumas cenas e falas remetem justamente a filmes de Tarantino. Seria um indicativo da mudança do radicalismo do diretor?
Infiltrado na Klan é um filme de narrativa irregular. Tem pontos que parece documentário. Outros, drama, outros, comédia de erros (como as dos Irmãos Coen). Não deve ganhar nenhuma estatueta, na melhor das hipóteses, por conta da ardente paixão de Spike Lee, o Ken Loach americano, a de roteiro adaptado. Porém o filme tem méritos. Revela um ator que lembra aos espectadores de mais de 40 anos os maneirismos de outro ator negro (preto, afro-americano) Richard Pryor; o protagonista e herói improvável John David Washington. Um caso semelhante ao do clã Carradine e de Michael Douglas, o poder da genética: o policial que trabalha usando a lei e a política de unidade com um policial judeu contra o racismo é filho do mesmo ator que fez o ativista Malcolm X, Denzel.



O policial judeu vivido por Adam Driver nos trouxe a percepção da má condução dos últimos filmes da franquia de Star Wars. Adam Driver é ator, e dos bons, e não um genérico mal resolvido de neto de Darth Vader. No filme há a presença do ator, cantor e ativista Harry Belafonte, uma das maiores vozes contra a segregação racial no século passado. Todo o elenco de brancos racistas foi bem conduzido pelo diretor e seu roteiro. Infiltrado na Klan nos faz acreditar que Spike Lee ao ver o resultado da última eleição presidencial dos EUA se perguntou: por que perdemos? Lee saiu do Brooklin, de Nova Yorque, do Bronx. Foi para a América profunda do escritor William Faulkner, do dramaturgo Tenesse Williams. Infiltrado na Klan tem muito a dizer para o Brasil atual. Primeiro, porque uma parcela da esquerda ainda acredita que movimentos que apostam cada vez mais na diferença terão mais força do que um princípio da universalidade – quem valoriza a diferença é o extremista conservador, como os membros da Klan, os nazistas, os homofóbicos, os misóginos, como nos revelou o professor Antonio Pierucci no livro As ciladas da diferença (1999).
Segundo, porque parcelas dessa mesma esquerda ignoraram o Brasil profundo, o brasileiro das pequenas e médias cidades; os  brasileiros de Barradinho, do interior de Goiás, Tocantins, Roraima. Terceiro, assim como já fizera em o Plano perfeito, Spike Lee convoca os judeus americanos para dizerem em Infiltrado que está tudo na mesma cruz a pegar fogo. Para superar uma provável reeleição de Trump é necessário invenção na política, criatividade. Obamas e Clintons. A personagem ativista feminista seria uma jovem Michelle Obama? Mulher, negra e protestante. Por fim, mas não menos importante, será que teríamos ineptos que não perceberam que havia um infiltrado no governo que num conchavo com a maior emissora do país passava vazamentos sobre movimentações financeiras? Ou isso é cortina de fumaça para encobrir o que o público conservador adorou, foi ao delírio, quando ouviu o diretor de Marighella falar no final de Tropa de Elite 2 sobre milícias, sistema e Brasília?

sábado, 16 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: PANTERA NEGRA

 Cena do Filme Pantera Negra
PANTERA NEGRA: BLACK IS BEAUTIFUL
Por Pablo Spinelli
Dedicado à memória dos jovens do time rubro-negro carioca
A cultura pop tem canais de reflexão sobre a conjuntura política com muita maestria e sensibilidade, independente da formação ideológica. Um exemplo que vem desde os anos 1960 são os filmes da franquia 007. Outro são os quadrinhos ou em forma cult, graphic novels do mundo da Marvel, algo que está presente nas mais de duas dezenas de produções que começou com Blade e está no apoteótico Thanos, o simbolismo metafórico do desemprego estrutural vigente no mundo onde a robotização num estalar de dedos cria desempregados  e subempregados (há alguns que falam que  é uma alusão aos escritos de Malthus). A Marvel é uma editora de Centro político com viés mais Democrata de um Clinton que um Republicano de Trump; aliás, por sua vez, mais Clinton que Obama; mais George W. Bush do que Trump.
A primeira história do Homem de Ferro se passa no Vietnã. As atrocidades com Tony Stark são feitas por vermelhos, como está escrito na história original. Hulk vem do medo da guerra nuclear e das consequências nucleares de Hiroshima. Homem-Aranha foi a forma pela qual a editora viu a possibilidade de ter o retorno dos jovens aos seus gibis. Já foi questão da UERJ a relação entre os X-Men e os movimentos contra as leis segregacionistas contra os negros. Professor Xavier como Luther King e Magneto como Malcolm X (de onde saiu o “X”). O movimento negro conseguiu um personagem urbano cuja pele era o seu poder, Luke Cage. Assim foi com o leitor católico com o personagem mais barroco dos quadrinhos, Demolidor (cuja adaptação na NETFLIX é a melhor adaptação de todo o universo Marvel, em especial a última temporada). O mundo esotérico entrou em moda? Os costumes foram abalados pelos ácidos lisérgicos dos anos 1960? Aparece o Dr. Estranho. Os filmes do lendário Bruce Lee fazem bilheterias enormes? Cria-se Punho de Ferro. O mercado editorial precisa da Europa para o consumo? Thor, Colossus,  Gambit, Capitão Britânia, dentre outros, cumprem bem esse papel.
 
 Martin Luther King JR e Malcom X
 
Nos mesmos anos 1960 temos um processo intenso e nada fácil de descolonização na África. A “missão civilizadora” de Tintin mostra para que veio. Imerso em guerras civis, o continente tem países novos que precisam criar uma identidade nacional, uma autoestima que tem que ser valorizada. A ideia de valorização da negritude se espalha pela América de norte a sul por conta da infeliz presença da escravidão de origem negra para esse lado do Atlântico. Nos EUA, no início dos anos 1970, após o desaparecimento violento do Dr. King e de Malcolm X surge o grupo Pantera Negra, cujas virtudes – valorização da cultura negra; teias de  solidariedade; politização das  camadas periféricas estadunidenses; uso da lei que permite o porte de arma para todos os cidadãos para intimidarem as batidas de policiais brancos aos negros que por medo, surpresa ou violenta emoção, geralmente terminava em autos de resistência -  acabaram por se perder por perda de líderes que foram substituídos por oportunistas; radicalismo; uso da  luta armada; corrupção. A Marvel, aproveitando a conjuntura e seu tino comercial incansável, acabou por criar um herói que tinha tudo para dar certo: um negro africano. Mas o etnocentrismo não permite grandes arroubos, seria um negro africano com o nome de um movimento dos EUA: Pantera Negra.
O filme Pantera Negra, candidato ao Oscar, é o filme que reúne diversos motivos para estar ali. Foi bem de bilheteria, vai trazer a juventude para a cerimônia, tem um elenco praticamente negro, um bom roteiro (que faz muita falta a todos os Vingadores) e, o essencial: é bom.
O filme usa o visual com muita proximidade ao original. O vilão branco é de origem da África do Sul do apartheid. O filme tem uma toada shakespereana muito interessante ao abordar vingança, traição, disputa por um trono. A dignidade do filme ao tirar do olhar do senso comum que a África é apenas a savana com o leão comendo a zebra ou crianças famélicas com mães desnutridas já vale a sua indicação. Por motivos de direitos autorais já resolvidos, posto que a Disney comprou tudo que tem direito, o vibranium nada mais é que o adamantium de Wolverine e do escudo do Capitão América.  Para ter garras precisa da África do Pantera.
Para as aulas de história há traços importantes que podem ajudar os alunos a compreenderem o valor da oralidade no mundo africano; que diferente do mundo europeu, sentar no trono não é vinculado à hereditariedade, mas é um espaço público e democrático aberto a disputas, sem privilégios. O filme mostra que não existe a África, mas Áfricas, sendo que uma etnia não quis se submeter aos felinos negros. O valor da ancestralidade; o papel dos griôs – o sempre competente Forrest Whitaker que já foi O último rei da Escócia. Para completar, Pantera Negra precisa de cérebros e destreza física de mulheres, seja a irmã adolescente, seja o grupo de guerreiras que o acompanha.


O enredo nos coloca em duas situações muito importantes para os dias atuais. O Brasil, no atual governo, adota uma política externa que contraria a sua tradição desde Rio Branco, passando pela presença em duas guerras mundiais contra governos autocráticos, participou de forma decisiva para a criação do Estado de Israel e Jerusalém como cidade internacional, contraria a política externa dos generais-presidentes na ditadura, posto que Geisel foi o primeiro governante a intensificar  as relações com o continente africano e prontamente reconheceu os governos liderados pela esquerda em Angola  e Moçambique, isso para não citar o Mercosul que foi erigido por Sarney e a abertura radical à globalização de Collor onde o Brasil sediou uma conferência internacional visando a conservação do meio-ambiente (ECO 92). A bandeira do antiglobalismo (sabe-se lá o que é isso em um país derivado de uma Expansão Marítimo-Comercial) defendida pelo chefe do Itamaraty é algo similar aos dilemas de T’challa. Abrir ou não abrir Wakanda para o mundo? Refugiar-se numa zona de conforto que é disfarçada pelo pastoreio e simplicidade ou permitir que sua tecnologia tenha como alvo o bem comum global? Como é estar na África sem ver os mais diversos problemas que rodeiam o continente, como o uso de crianças em exércitos e tráfico humano – como o filme apresenta em seu início – e ficar indiferente? A decisão de T’challa e o discurso final na ONU valem todo o filme. Uma demonstração que se pode falar pouco em uma conferência internacional, mas falar propositivamente, de forma democrática e inclusiva, sem abrir mão de suas tradições.
Além disso, há uma mensagem para a esquerda, negra ou não. A personagem de Killmonger, por conta de um trauma, acaba por servir aos EUA para ter uma expertise que objetiva a conquista do trono manchado de sangue. Sua política é cheia de voluntarismo, uma revolução mundial permanente para acabar com a discriminação sobre os negros nos mais diversos pontos do globo, uma referência ao radicalismo do movimento que batizou o filme. Sua proposta de usar um exército moderno e armas potentes para liberar o povo negro a partir da morte dos não-negros – seria Killmonger um  herdeiro dos malês?  - é contraposta por  T’challa, que crê ser  melhor dar um passo atrás para avançar dois. É possível se infiltrar na Klan para mostrar sua estupidez a partir de dentro ou tem que se fazer a coisa certa, matar logo e resolver tudo? O tempo pode soprar a nosso favor desde que com temperança e paciência. Pantera Negra é a resposta do Spike Lee maduro ao Spike Lee juvenil. O filme com protagonismo negro do ano passado tem que aprender com a política de T’challa: pode-se correr, tropeçar e  não mais levantar  ou caminhar de forma  ziguezagueante, mas sempre adiante, para a inclusão e democracia.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: A FAVORITA

 
A FAVORITA ou “Sabe com quem está falando?
Por Pablo Spinelli”
Dedicado ao grande mestre Ilmar R. de Mattos

Durante cerca de um século, uma frase que foi criada e popularizada entre as elites do Império brasileiro no II Reinado foi muito usada, a ponto, como se percebe pelo recorte temporal, de chegar à República. Essa frase sintetizava um olhar sobre os dois partidos do Império até 1870 (depois foi fundado o Partido Republicano): o Partido Conservador e o Partido Liberal. Em cada um desses partidos havia um núcleo dirigente que mantinha a hegemonia sobre os demais membros do partido (seria bom, prezado leitor, saber que sempre houve, há e haverá disputas internas dentro de um partido político, correntes diversas que são capazes de agredir mais a si mesmas do que o adversário do outro campo, tal marca fez parte da história do PCB, do MDB, do PT, da ARENA, do PSOL e, agora, o partido da hegemonia do nosso atual governo federal, o PSL, reforça tal observação, como no caso do labirinto que os filhos fazem ao General, este à Casa Civil, esta à Câmara dos Deputados etc. etc.)
Voltemos à frase. “Não há nada mais parecido com um Saquarema (núcleo dirigente dos conservadores) do que um Luzia no poder”. Essa frase serviu para a genialidade de Oliveira Vianna afirmar nas primeiras décadas da República que os partidos eram todos iguais, tinham o mesmo plano de governo, que o partido da oposição fazia no poder a mesma política daquele que acabara de sair. Dentro dessa visão, Oliveira Vianna seduz seu leitor para a seguinte reflexão: para que partidos no Brasil se todos são iguais e não representam a sociedade? Daí, um pulo para a criação da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1937.
Coube a Ilmar Rohloff de Mattos escrever em sua monumental obra “O Tempo Saquarema” que as coisas não eram assim, como afirma Oliveira Vianna. Além das nuances que essa frase explicita, Mattos faz uma defesa da democracia ao se defender que por mais que seja duro entender, os partidos não eram ou são iguais, podem ter polos invertidos, pontos tangenciais, mas ao se afirmar uma igualdade se defende a sua anulação.
Para que toda essa introdução? Usamos essa frase para dizer que em política é capaz de fazermos a política do “outro” sem percebermos. Não é importante saber quais são as diferenças ou semelhanças dos atores políticos, mas quem tem o controle do tempo, da direção, quem tem a hegemonia.
O filme A favorita, indicado para 10 Oscars, incluindo filme, atriz, atriz coadjuvante (no caso, duas), edição, dentre outras indicações, é uma produção que pensou em fazer uma coisa e acabou por dar como produto, outra. Esse é o nosso entendimento. Mas antes de explicar nosso argumento, creio que o espectador que vá ver ou rever a película tenha a atenção para a linguagem e o roteiro do filme. Ele é um mosaico rico da cultura inglesa tanto na literatura como no cinema. Vai do citado no filme Jonathan Swift até Monty Python, como fica claro na corrida de gansos. Há por todo o filme a influência de vários diretores e seus estilos. Salta à vista a presença de Stanley Kubrick, especialmente quando usa luzes naturais para os interiores, como Kubrick fez em Barry Lindon (1974). A presença da loira fatal é uma homenagem ao fetiche de Hitchcock em seus filmes. Ao privilegiar a perspectiva aristocrática seguiu a extraordinária adaptação que Stephen Frears fez sobre um triângulo amorosa na Corte francesa pré-revolucionária, em Ligações Perigosas (1987). A escolha pelo tom quase farsesco, picaresco dialoga com algumas comédias de Shakespeare e termina com uma cena cheia de coelhos que muito lembra a abertura e encerramento do filme Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (1972), de Woody Allen, cujo primeiro episódio é na corte medieval inglesa. Para os amantes da literatura ou do cinema (especialmente os vinculados à “alma inglesa”) é um prato cheio.

 
Nos últimos anos, Hollywood tem dado um tom sobre políticas afirmativas. Esse tom se tornou mais retumbante após a surpreendente (para os moradores de Los Angeles, de Nova York, não para os desempregados do “cinturão do aço” ou moradores do Meio-Oeste) vitória de Trump. As cerimônias do Oscar, suas indicações, seus discursos, suas premiações são o ápice do “Sim, nós queremos”. Começou pela salutar reivindicação da presença negra nos filmes; passou pela equivalência salarial e cotas para mulheres nas produções e, diante de um muro no caminho, a celebração do México a partir dos diretores que foram premiados nos últimos 5 anos.
Assim, o filme A favorita tem uma motivação que é um desejo do corpo feminino hollywoodiano há décadas: bons personagens para mulheres. Em um filme onde os homens são acessórios, afetados, agressivos, molestadores, fracos, quase invisíveis (tal qual as camadas subalternas que fazem a roda girar) coube a um naipe invejável de atrizes fazer o navio seguir seu rumo. Olívia Colman – uma atriz de 44 anos que consegue transmitir um peso da idade maior que sua personagem exige – faz uma Rainha Anne mimada, alienada, ranzinza, autoritária e ao final, vingativa, com maestria. Uma personalidade que difere da outra rainha que interpreta, a atual Rainha Elizabeth a série The Crown. As duas oscarizadas Rachel Weisz e Emma Stone fariam o que a mediocridade da mídia diz, uma “disputa pela atenção da Rainha” que daria sentido ao título do filme.
Enquanto que Rachel Weisz usa de artefatos, porte e presença mais masculinizada em sua personagem que – em tese – seria manipuladora dos interesses da burguesia que abria espaço na Inglaterra contra a aristocracia agrária que não queria sustentar uma guerra que interessava financeiramente aos comerciantes e manufatureiros; Stone usa e abusa dos seus olhos e expressões faciais para perceber como são as regras do jogo a partir  do momento que a Fortuna (como diz Maquiavel) poderia lhe gerar uma fortuna se soubesse usar a virtú com a Rainha Anne. Eis aí um breve resumo: o mundo do interesse egoístico. A Rainha seria o canal pelo qual as aspirações da cortesã e da decadente-que-quer-voltar-à-Corte seriam cumpridos.


Diferente de Moulin Rouge (outra inspiração) onde os personagens usavam de artimanhas para o bem comum, dentre eles, o amor, as personagens de Weisz e Stone seriam aquilo que um ex-governador de nosso Estado chamou de “partido da boquinha”. Uma quer a conservação do que tem. A outra, a conquista do que poderia ter tido se não fosse pelas agruras que seu pai a envolveu. Bem, aí voltamos ao ponto inicial. O filme era para ser de um tom onde a mulher fosse o centro, as excepcionais atrizes duelam por conta do protagonismo desejado pelos movimentos feministas mundo afora. Eis o nó górdio.
Sem fazer spoiler, pois em 20 minutos o que será descrito é apresentado ao espectador, a Rainha Anne, após 17 frustrações maternais por gestações interrompidas ou com filhos que não vingaram acaba por ter como escape para suas dores emocionais e físicas o contato carnal com a cortesã de Rachel Weisz. Diante dessa descoberta, Emma Stone corre atrás dos seus interesses e disputa com valentia e amoralidade a cama da Rainha. O duelo é de alcova. O que seria um problema. A Rainha, manipulada pelos desejos carnais sobre uma guerra contra a França, acaba por se tornando exatamente aquilo que os movimentos feministas não querem: a objetificação do corpo numa completa ausência da política. Uma Rainha alienada, mimada, que cria coelhos como filhos ou que se permite ao masoquismo permite a leitura de que a falta do papel de ser mãe cria neuroses, paranoias e obsessões, como se afirmava nos séculos XIX e XX. Os humores da monarca dependem da forma introdutória que as duas personagens usam para criar a felicidade. Não há aqui espaço para um terceiro vértice nesse triângulo (como é explícito no título).
Em um filme que se permitiu uma leitura pop e contemporânea sobre um passado (como fez Moulin Rouge) é algo deveras conservador pensar como Highlander: só pode haver uma, o que soa esquisito para um filme de pegada antenada com seu tempo. Sua mensagem está a léguas de distância de um Bertolucci e Ettore Scola. E o mais curioso: ao se propor que a Rainha é uma alucinada como a eternizada por Lewis Carrol em Alice no país das maravilhas, acaba por reforçar na última cena do filme o poder real, a soberania majestática que coloca de forma uma súdita de joelhos de forma vil uma súdita num famoso sabe com quem está falando? (em pleno terreno anglo-saxão!!! Roberto DaMatta deve ficar horrorizado com isso).  Um filme que desabonaria a monarquia mostra ao final quem tem o cetro nas mãos. Um filme que propôs o protagonismo feminino acabou por repetir clichês machistas sobre a mulher. Um filme que quis ser Luzia e acabou por ser Saquarema.

domingo, 27 de janeiro de 2019

OSCAR 2019 - Como nasce uma estrela

 
Nasce uma estrela: otimismo de uma vontade
Por Pablo Spinelli
Dedicado aos meus alunos e à memória das vítimas de Brumadinho
 
 
Bradley Cooper e Lady Gaga em cena do filme 
 
Nos dias atuais não é costumeiro usar uma resenha crítica de um filme para tergiversar sobre política. Nem sempre foi assim. Muitas resenhas sobre teatro, literatura e cinema sempre tiveram grandes intérpretes que faziam analogias entre as obras e a conjuntura da sua época, a trajetória do diretor, do escritor; a escolha e o método dos atores; os enfoques e sutilezas de um roteiro;  a escolha de cores num figurino ou de um ângulo da câmera ou ainda, a presença (ou ausência) da trilha sonora.  Assim foi com os famosos críticos franceses que viraram cineastas como Godard e Truffaut; com uma crítica na Itália com forte presença em periódicos de onde se destacou um Bertolucci; assim também o foi do Leste europeu socialista a uma New Yorker, revista considerada vanguardista nos EUA e, no caso brasileiro, há o exemplar caso de Paulo Emílio Sales Gomes, dentre outros.
A partir dos anos 1980, seja por mudanças nos cursos de comunicação social, seja por questões mercantis onde o espaço de uma folha de jornal tinha como meta o anúncio, a propaganda, as resenhas críticas – e aqui me fixo nas de cinema – caíram de qualidade tanto de analogia com a conjuntura política e social, quanto na capacidade de intertextualidade, salvo exceções como a do crítico Rodrigo Fonseca e o decano Ely Azeredo. O que o leitor se acostumou a ver foi a posição de bonequinhos, a quantidade de estrelas ou coisa que o valha. Bonequinho em pé, sinônimo de fila cheia. Uma estrela, condenação ao cadafalso do esquecimento. O valor do filme passou a ser meritocrático obedecendo a critérios subjetivos como excesso de explosões, currículo do diretor, pancadaria demasiada, ator carismático ou canastrão, dentre outros. Isso é muito pouco para qualificar uma obra.
Se assim o fosse, Sergio Leone jamais teria sucesso nos dias de hoje por escolher um ator com tão poucos recursos cênicos como Clint Eastwood para fazer a trilogia mais famosa sobre o faroeste americano, assim como Laurence Olivier poderia ser criticado pelos seus maneirismos teatrais levados à tela ou um Marlon Brando que parecia grunhir ou mastigas as palavras. Da mesma forma, a obra de Chaplin seria jogada ao lixo por conta do seu envolvimento com as atrizes de tenra idade ou Elia Kazan seria considerado um diretor menor por conta do seu apoio espontâneo ao macarthismo nos anos 1950.
 Dessa forma, colocamos que seja pela visão rasa determinada pelos espaços de informação, seja pelo subjetivismo político que torna o olhar da crítica muito reducionista e limitado por questões de natureza política, as resenhas viraram as costas para uma tradição belamente construída desde os anos 1920, para não ir além.
Longe de dizer que somos monopolizadores da forma correta de análise de um filme, não somos os únicos e  nem temos essa pretensão. Há blogs bons, mas a maioria se concentra no filme em si de forma primorosa, como o Adorocinema ou Omelete, mas pecam por não abranger mais a sua interpretação. Não podemos criar uma superinterpretação, ir para além daquilo que a obra nos proporciona ao olhar, sentir, dialogar. Mas, como nos ensinou Umberto Eco, podemos ter olhares sobre uma obra que o diretor não imaginou ou se imaginou, não publicizou. A obra de arte pode ser apropriada pelo espectador para dialogar com o seu tempo. Não só pode, como deve, pois se assim não o fosse,  a arte estaria condenada a ter mais e mais fatias de bacon e ser consumida como um sanduíche num fast food.
É muito comum ouvir os espectadores mais jovens falarem: “gostei”, “legal”, “chato”, “nada a ver”, “um porre, não entendi nada, muita viagem”. Não se pode subestimar o público. Claro que uns terão mais sensibilidade, outros menos. Há todo um capital simbólico de cada um, mas independente da formação prévia de quem vê um filme – e no caso do público jovem atual há poucas nuances de percepção e de expressividade como a colocada acima, independente das classes sociais ou gênero – o que se pode deduzir é que desde os anos 1980 e, principalmente, nos anos 1990 (quando o cinema brasileiro foi quebrado pelo governo do primeiro presidente eleito após a ditadura militar) e 2000 houve a falta de uma pedagogia molecular das massas para ver um filme a partir dos mais variados itens já expostos: trajetória do diretor; o que estava acontecendo no momento de sua produção e do ano de seu lançamento; as escolhas dos atores por aquele papel ou filme (nem sempre é o cachê); fotografia, música etc. etc. Isso não quer dizer que essa pedagogia tenha como compromisso fixar  o olhar para um determinado viés político ou ideológico, mas ao contrário, quanto mais olhares e interpretações mais a obra fica rica e ganha relevo e perenidade. Essa educação do olhar não é algo de um campo da esquerda. Começou nos vitrais da Igreja Católica do mundo medieval em uma sociedade iletrada, logo, acima de qualquer suspeita de marxismo extemporâneo, algo que se faz mundo nos dias atuais.
Essa longa digressão tem como objetivo mostrar o que permeará  nosso trabalho acerca não só dos filmes indicados ao Oscar, parceria iniciada no ano passado, mas também sobre séries e outros filmes que virão. Escolhemos para começar nossa conversa com vocês, prezados leitores, o filme “Nasce uma estrela” (2018), dirigido por Bradley Cooper.
O filme ganhou notoriedade pela ousadia e certo oportunismo do diretor de pegar uma história que já ganhou três versões no cinema (1937, 1954, 1976) e colocou uma cantora de grande sucesso para atuar. E conseguiu uma dupla proeza. Não só Lady Gaga atuou bem – o que não quer dizer que sempre o fará – como o próprio ator conseguiu sua melhor atuação (bem superior aos filmes que fez como Sniper Americano,  Trapaça, O lado bom da vida). Cooper deu ao seu cantor pop star decadente por conta de sua dependência de álcool e drogas uma voz que propositadamente imita ao do ator que faz seu irmão, o veterano e sempre bom Sam Eliott, uma rouquidão de uma vida cansada do estrelato, das turnês, da solidão e de um passado onde criou um mito que  desmorona ao longo do filme. Cooper já demonstrara em Guardiões da Galáxia o seu talento vocal. O seu bronzeamento artificial para algo californiano vindo de um cantor que veio do meio-oeste americano é uma demonstração do rótulo que a indústria produz.
Esses fardos fazem da sua vida um ritmo sem sentido, que acaba por ter sua epifania quando encontra uma  garçonete em um bar de drags queens cantando Edith Piaf e, com otimismo da  vontade, afirma que “a vida é rosa”. Aqui, o diretor homenageia uma das  mais importantes cantoras do século passado não só pela música como pelo ambiente com que Piaff começou sua carreira: cabarés, baixo meretrício, rodeada de meretrizes e cafetões. Lady Gaga é a Piaff do século XXI com melhor fortuna (em todos os sentidos). Sobre a Lady Gaga, há outra referência interessante no roteiro quanto às determinações estéticas da indústria, quando se refere ao nariz como obstáculo para uma carreira no show bussiness. Propositadamente ou não, a atriz que encarnara a então última versão de Nasce uma estrela, Barbra Streisand, sofreu muito por conta do seu nariz – referência para a criação da porquinha dos Muppets. Curiosamente, o filme rivaliza com outra película, que o vocalista de uma banda inglesa tinha dentes completamente fora dos  padrões  de mercado do entretenimento.
A história de amor dos protagonistas vai lenta como uma balada, mas segue adiante. Cooper não quis privilegiar o sentimento de posse que permeou as versões anteriores ao optar por um distanciamento agravado pelo escracho público, algo que podem destruir carreiras antes de um julgamento e de uma sentença, como o caso do duplamente oscarizado Kevin Spacey que se viu envolvido em um “Spotlight” para atores, que pode ser o primeiro passo para uma onda neoconservadora de costumes que os democratas não percebem que são os criadores dessa “marolinha”.
A partir dos dilemas da política dos EUA onde um ator do porte de Robert DeNiro foi ameaçado de morte de forma efetiva, qual a solução democrata para a reeleição de Trump? Paralisar o serviço federal ou dar estatuetas para mexicanos (como A Forma da Água ano passado ou Roma, esse ano) é muito pouco para uma nova política. Mas o filme de Bradley Cooper é provocativo para o caso dos EUA e para o nosso. Após Obama não se pensou na sucessão, em novas lideranças, na pedagogia cívica, na superação da crise econômica pela política, mas tão somente pela economia. Assim, a estrela que sobrou pode ter sido “a Estrela da Morte”, como adoram os  Siths. Porém, num viés do otimismo da vontade como já apontado por um cientista  político brasileiro, as novas estrelas estão por aí, podem estar num bar de drags, nas escolas públicas ou privadas, num combalido sindicato, numa ONG, num rapper, numa roda de samba. Nasce uma estrela permite a leitura de uma velha política que se vai – e vira uma estrela presa em uma constelação, não mais do que isso – e a nova política que vem  pelo mundo do interesse, do desejo, onde com treinamento, paciência virtuosa, disciplina, encantamento, pode nos dar a chance de novos pontos brilhantes aqui e alhures. Basta querer achar e fazer estudar o mundo das coisas reais. O filme é o misto do otimismo de uma vontade transformadora com o pessimismo da razão dos fatos da vida, mas essa, tal qual um rio, segue seu curso e cabe a velhos e novos marinheiros quererem dirigir as embarcações, mesmo que se esteja à beira de um precipício, como alude a bela (e possivelmente oscarizada) canção do filme.