domingo, 18 de agosto de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DO LIVRO A GRANDE SAÍDA


A Grande Ferida


Para Maria da Conceição Tavares

Por Vagner Gomes de Souza

Desde a transição democrática brasileira (1979 – 1988) houve um gradual afastamento do social em relação à formulação da política. A trajetória de vitórias sindicais do “novo sindicalismo” emergiu sob tutela de uma americanização que foi se tornando hegemônica na sociedade com efeitos contraditórios. De um lado um partido de base popular emergia dos movimentos sociais (Partido dos Trabalhadores) enquanto uma esquerda propositiva vinculada ao tema da grande política declinava (entre suas várias vertentes há os partidos comunistas). Essa “cisão” permitiu um “vazio” na disputa eleitoral presidencial de 1989 que permitiu a vitória do programa neoliberal sob o comando de Fernando Collor.

As medidas econômicas do Plano Collor trouxe a primeira experiência da implantação do neoliberalismo ”puro” no país que se beneficiava de dessa cisão entre política democrática e movimentos sociais. A individualização dos sujeitos deixava no “embrião” essa conjuntura em que vivemos na atualidade. A luta do social pelo social, na verdade, só acelerou a despolitização da sociedade a medida que as classes subalternas se viram diante da “Terra Prometida” dos ganhos individuais sem a necessidade da organização coletiva.

Nos meios acadêmicos, a fratura social se embrenhou num mundo de “novidades” fragmentadas na “Nova História” e outras vertentes das Ciências Sociais encasteladas nos Departamentos Universitários. Falar em Pensamento Social Brasileiro seria uma forma política e democrática de resistência acadêmica que não se traduziu em pontes com a formação do ensino básico nacional. Assim, os pensadores da formulação econômica do país foram deixados nas prateleiras do esquecimento enquanto a economia nacional se estabilizava com o Plano Real e na sequência neodesenvolvimentista do Governo Lula/Dilma.

Contradições que aguardam um momento de reflexão do campo democrático pois vivíamos anos de declínio das desigualdades sociais. As forças democráticas não se renovaram para debater a economia política como um campo do saber que esteja a serviço da (re)distribuição de renda. O liberalismo sem a cultura política democrática foi gradualmente cooptado pelo senso comum que tem hoje a “teologia da prosperidade” de fortes núcleos pentecostais como militantes desse mundo sombrio a ser enfrentado.

Abriu-se essa grande ferida que permitiu agora a emergência de uma faceta do neoliberalismo  em segunda onda. O neoliberalismo “puro” se manifesta com a militância digital de grupos cientes da defesa da elite econômica e crítica até das ideias de um capitalismo de face humana. Vivemos o “pinochetismo fora de lugar” com setores militares compromissados com a memória de justificativa dos porões da Ditadura Militar (1964 – 1985) e doutrinados pela ideologia do antipetismo não se incomodam com uma política internacional submissa aos norte-americanos e ao empreguismo.

Esse é o momento em que a leitura do livro A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade (Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2017) ganha um peso político para aqueles que defendem que a pobreza é a demonstração da injustiça social. O autor Angus Deaton não está no campo do marxismo, porém é um exemplo de um intelectual liberal comprometido com pesquisas econômicas que nos ajudam a demonstrar as consequências econômicas da nova orientação conservadora mundial. Portanto, merecidamente foi ganhador do Prêmio Nobel de Economia. Contudo, permanece desconhecido entre as forças políticas que defendem uma frente democrática ampliada contra as forças da tirania da “pós-verdade”.

O livro foi originalmente publicado no segundo mandato do Presidente Barack Obama (2013) aonde ainda havia a baixa percepção da durabilidade dos efeitos retrógrados na política depois da crise do capitalismo financeiro em 2008. Sua análise geral sugere que o mundo melhorou em muitos indicadores socioeconômicos, mas a persistência da desigualdade social seria uma “fronteira” a ser enfrentada com ação política. Aqueles que venceram precisam estender suas mãos para aqueles que ficaram atrás.

Não seria uma ação de caridade. Seria o exercício da solidariedade social como escolha e manifestação humana na política. Um diálogo do pensamento do autor com a sociologia de Durkheim nos permite perceber o quanto o papel da saúde tem um sentido maternal em diversas famílias. A solidariedade orgânica pelas agências internacionais (ONU, OMS, UNICEF, etc.) lhe permite entender o progresso como um fator que deve acolher o bem estar do mundo. A globalização poderia melhor observar os efeitos da redução da pobreza na Índia e na China nas últimas décadas. Por outro lado, o leitor sensível ao momento político contemporâneo compararia com os descaminhos que Brasil e Argentina vivem em anos recentes uma vez que as conquistas sociais desses “países chaves” do Cone Sul estão sendo retirados.

O livro é uma importante aula para que cuidemos das feridas existentes no campo democrático. Está dividido em três partes (“Vida e morte”, “Dinheiro” e “Ajuda”). O capítulo “Bem-estar material nos Estados Unidos” deveria ser reproduzido entre as forças progressistas para questionar as forças conservadoras que assimilam o americanismo como simples desenvolvimento das forças progressistas. Muito bem sabemos que há as contradições das relações sociais de produção e as escolhas políticas sobre o combate a pobreza sempre será uma saída no qual os defensores da democracia devem participar. Assim, A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade é um livro “frentista” em oposição a as fraturas sociais que devoram a essência democrática da Carta Constitucional de 1988.

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