domingo, 1 de abril de 2018

INTERVENÇÃO DA EDUCAÇÃO

Nada há ainda de relevante no Rio de Janeiro após o Decreto da Intervenção na Segurança Pública Estadual. A Saúde Pública continua um verdadeiro retrato de violência para as classes populares. A cada dia, a política de confronto policial mata duas pessoas. O futebol carioca transformou-se no mais elitizado do país. E a Educação Pública é tratada como gasto ao contrário de investimento da construção de uma cultura democrática de paz e tolerância.
Não nos calemos diante da gravidade da situação que clama por medidas políticas claras para a sociedade. Esse é o espaço do debate que o BLOG VOTO POSITIVO deseja dar continuidade com a entrevista com o professor Jarley Frieb.
Confira e sigamos em frente nesse movimento de reflexão.
 
Professor Jarley: "A opção por lecionar no Ensino Fundamental foi tomada por mim em uma idade em que já tinha uma vivência intensa das realidades das Classes Populares (...)"
 
1)      O Estado do Rio de Janeiro tem vivido uma sequência de atos associados a violência. Mesmo sob a Intervenção Federal na Segurança Pública, a sensação de tranquilidade da população não existe. Por outro lado, há setores da sociedade que defendem maior investimento social para reduzir os impactos da violência. Como Pedagogo, qual sua opinião sobre esse quadro?
 
Professor Jarley - Como pedagogo, professor na Rede pública Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, cidadão... não vislumbro possibilidade de melhora no quadro de violência em lugar algum do mundo, e ainda mais em um país tão desigual como o nosso, que não contemple amplos investimentos – e melhor uso dos que já existem – na Educação e na saúde. Não que a Segurança não precise de verbas – precisa, e muito – mas se as duas primeiras áreas forem prioridades, a violência diminuirá a longo prazo. A curto prazo, penso que  o fim de incursões em Comunidades como prática corrente, as quais colocam em risco a vida de moradores e dos policiais, sem ter resultado nem próximo do esperado, devem ser repensadas imediatamente. Não me iludo achando que a violência acabará, ela está presente em todo o mundo, mas alimentada pela desigualdade social e a falta de investimento público em setores fundamentais, a espiral de violência não tem fim.
 
2)      Sua formação em Pedagogia foi pela UERJ. Como o Senhor se sente ao ver as notícias relativas a Crise da UERJ?
 
Professor Jarley - Triste, muito triste. Tenho amigas, amigos e conhecidos que lecionam nessa Universidade, alguns foram meus professores, outros fizeram graduação comigo e seguiram a carreira acadêmica, e fico horrorizado com o processo de sucateamento de uma Instituição que sempre ofereceu tanto retorno à Sociedade. E não é só a UERJ: quanto ganha um professor de Ensino Médio da Rede estadual??? Há muito tempo lecionar no Estado deixou de ser minimamente atrativo, e com isso temos multidões de alunos que ficam ser aulas em disciplinas importantes para sua formação, com os resultados esperados de tudo isso: não chegam às universidades públicas; não tem perspectiva de bons empregos, e vão engrossar o mercado de mão de obra barata para a Elite, essa mesma Elite que em sua maioria não está nem aí para nossa profissão nem para a urgente necessidade de melhora na Educação no país, pois seus filhos não são usuários de Redes públicas de Ensino.
 
3)      Após sua formação, sua atuação se concentrou no efetivo exercício do magistério nas salas de aula da Rede Municipal e teve uma experiência em Sala de Leitura. Como a prática lhe auxiliou a repensar os problemas da população carioca?
 
Professor Jarley - A opção por lecionar no Ensino Fundamental foi tomada por mim em uma idade em que já tinha uma vivência intensa das realidades das Classes Populares: desde muito pequeno, não sendo oriundo de uma família burguesa-tradicional, apesar de criado na Zona Sul, conhecia bem os subúrbios, por volta dos 20 anos frequentava a Baixada Fluminense 3 a 4 dias por semana por quatro anos... subindo Comunidade de segunda a sexta, presenciando trocas de tiros entre traficantes e policiais, convivendo com as diferenças econômicas que existem dentro da própria Comunidade, tudo isso formou a visão que hoje tenho da Cida de que NÃO QUERO – a que está aí – mas também me fez refletir sobre as mudanças que quero ver. Quanto ao trabalho com Sala de Leitura, foi uma experiência maravilhosa: conheci os melhores diretores de Escola com os quais trabalhei, reconstruímos a Sala de Leitura , atendia 30 turmas – Educação Infantil e Educação de Jovens e Adultos.
Minha trajetória nessa área começa no entanto em 1994, quando participei por dois anos do Grupo de Contadores de Histórias da UERJ. Até hoje não estou convicto de que ouvir histórias faça de alguém um grande leitor, mas é uma arte maravilhosa, os narradores orais atravessaram a história da Humanidade encantando gerações, eu mesmo tive contato com uma grande contadora – por sinal, analfabeta – em minha infância. E devo a ela, e ao incentivo de meu pai, a paixão pela Narrativa e pelos livros que até hoje me acompanham. Diria mais: que me formaram. 
 
4)      Em ano de eleições, muitos programas citam a importância da Educação Pública para a melhoria de vida. Contudo, os profissionais de educação se sentem sempre colocados num “segundo plano” nas decisões da Gestão de Educação. Como fazer a Educação Pública ser uma verdadeira prioridade?
 
Professor Jarley - Colocando nos cargos de Gestão – a começar pelos que decidem as coisas de fato – professores DE SALA DE AULA. Nós é que vivenciamos diariamente as dificuldades em lecionar no Ensino Público. Claro que o diálogo com as Universidades também é vital, pois ali se pesquisa, se produz conhecimento; remunerar bem os profissionais de Educação, promover formação continuada... novos concursos públicos... e algo que deveria ser primordial em todas as reuniões de pais de qualquer escola pública: explicar como funcionam essas instituições, desde como os profissionais ali ingressam (através de concursos públicos), até quais são as verbas, e de onde vêm, que possibilitam o funcionamento das mesmas. A família tem deveres mas os gestores e professores têm  o dever de informar  que a Escola Pública é um direito de todos e todas, e convocar as famílias a construir o processo educativo conosco é fundamental.

5)      Há Projetos de Lei defendendo que os educadores não desenvolvam temas com uma abordagem crítica. O argumento é de que se trata de uma doutrinação da esquerda estimular uma educação crítica e valorizadora dos Direitos Humanos. Enfim, qual o recado que o Senhor daria para os defensores do “Escola sem Partido”?
 
Professor Jarley - Primeiramente, agradeço todos os dias ao Destino que meu pai não tenha pensado como eles, risos... doutrinação? Ah, tá... bem, para os da minha geração eu perguntaria:  - Ué, se esta existe, como estudei com tantas pessoas que são ultra fãs do modelo capitalista, incluindo alguns de Direita, e eu sou Esquerda?? Eles ficaram imunes à doutrinação dos comunistas e socialistas que nos deram aulas no ensino médio como? E tendo estudado em um colégio bem conhecido e tradicional de Copacabana, onde muitos de nossos professores eram também de esquerda e trabalhavam em outras tantas instituições ainda hoje “de elite”- e que formam alunos que buscarão ocupações que os permitam seguir sendo elite - minha curiosidade sobre como não se “contaminaram” só aumenta KKKKKK... Bem, é direito dos pais querer definir e traçar o destino dos filhos... agora, que sou muito feliz por ter tido pais que naõ influíram  em minhas escolhas ideológicas nem profissionais, disso não tenho dúvida. Para finalizar: nunca conheci um professor que doutrinasse alunos; fico imaginando e não posso evitar o riso ao pensar em como um/uma professor poderia fazer lavagem cerebral COMUNISTA em crianças de 4-10 anos para derrubarem o Sistema Capitalista... agora, doutrinação de Esquerda  não pode, mas a de Direita pode, né??? e ela começa  aonde? Alguns destes pais tão preocupados com a possibilidade de seus filhos virarem adultos progressistas deveriam conhecer mais o processo educacional como um todo, e não verem o professor apenas como um transmissor de conteúdos. Educação é muito mais que isso, mas certamente poucos deles o sabem, pois sua opção profissional não foi lecionar no Ensino Fundamental, e nem cursar Pedagogia nem Licenciaturas, áreas que não atraem as Classes Dominantes. A educação cidadã é necessária a todos e todas, mas se eu defendo um modelo onde vejo conspiração da Esquerda (como se existisse UMA esquerda única, risos) em tudo, onde penso que o Bolsa Família irrisório é um benefício a quem não quer trabalhar, ou que fui bem sucedido por ser mais inteligente, ter Q.I de tanto etc... fica difícil descontruir a desigualdade e sobra um medo, em minha opinião infundado, onde deveria existir o diálogo e o respeito às diferenças ideológicas. Não preciso concordar com alguém, mas como educador devo ouvi-lo e, se necessário, dialogar. Até para entenderem os limites  que um teste de Q.I tem, para o que serve, o que significa “inteligência”...mas será que parte da Elite está interessada em saber disso, ou somente em criar semelhantes em pensamento e atitude? Enfim, a questão é complicadíssima, pois como falei anteriormente, quem vai direcionar a Educação dos filhos, e não poderia ser diferente, claro, pois é um direito delas, são as famílias (viu? Sou socialista mas não defendo que o Estado separe os filhos das famílias para dar-lhes formação maoísta KKK). O problema, a meu ver, é quando não buscam orientações sobre isso, pois em sua maioria, por escolhas profissionais, são leigas no assunto Educação.
 
6)      A escola é um espaço em que se convive com a pluralidade nos mais amplos sentidos. Ainda percebemos alunos que se sentem silenciados por sua opção religiosa. Ou melhor, sentem vergonha de se reconhecer como praticantes do Candomblé ou da Umbanda. Como respeitar e valorizar esse segmento na prática do ensino?
 
Professor Jarley - Para começar, o próprio profissional de Educação deveria ser tolerante para com a diversidade. Se acho que minha religião ou posição política é a única a ser respeitada, a coisa já começa mal; por isso defendo uma escola pública laica, sem imagens nem representações religiosas que possam ser objetivo de controvérsias que ali não cabem. Os praticantes das religiões de matriz afro, entre os quais me incluo – sou ogan (sacerdote que não é “tomado” pelo orixá, não cai nunca em transe) confirmado há 29 anos no Candomblé, na Raiz do Jeje mahin,  – devem amparar-se na Lei que proíbe a discriminação religiosa, e devemos estar unidos e dialogando com toda a Sociedade – por isso defino-me religiosamente também como um universalista, vejo Deus em várias manifestações religiosas e também onde elas não existem.  A Sociedade é formada por praticantes de distintas fés e ateus, agnósticos...para contemplar tanta diversidade, só muito diálogo e respeito para com o/a outro/outra, para com sua Verdade.
 
7)      No último ENEM, o tema de redação foi sobre os Deficientes Auditivos na Educação. Sabemos que o Senhor tem dialogado com especialistas na área sobre isso. Conte-nos mais a respeito.
 
Professor Jarley - Durante um bom tempo fiz cursos em uma instituição de referência que atende a portadores de cegueira e baixa visão, o Instituto Benjamin Constant, sem dúvida uma das referências mundiais nessa área. Isso abriu minha visão ainda mais sobre a necessidade da Inclusão de pessoas com qualquer Necessidade Especial, e essa inclusão não está e nem pode ser restrita somente aos educadores e familiares: tem que ser objeto de reflexão por TODA a Sociedade. Dessa maneira podemos participar da construção de um Mundo para Todos. Provocar a reflexão nos jovens sobre esses temas é fundamental, por isso achei a escolha muito feliz.
 
8)      Qual ferramenta o Senhor definiria como indispensável à Educação?
Professor Jarley - O diálogo. Sempre. Conheci poucos profissionais de Educação que ensinem seus alunos a ouvir, a escutar o outro – e isso é possível. Se não ouço, não mudo meu pensamento, não me questiono...não dialogo. O estudo das diferentes técnicas de Escuta (Ativa, Empática etc.) deveria constar no currículo de todo curso de Pedagogia. E acredite: esse trabalho pode começar ainda na Educação Infantil. Outra coisa: a exemplo do que ocorre na Argentina, temos que ter mediadores de conflito nas escolas. Profissionais de educação, pais, membros da Comunidade escolar...que com  treinamento e formação adequada, e partindo também de seus saberes já constituídos, possam atuar dirimindo conflitos tão comuns nessas instituições. Fica a sugestão para que os diferentes municípios e Estados invistam nisso, mas enquanto não tivermos governos progressistas certamente isso não ocorrerá... em tempos de Sociedade brasileira atingida permanentemente pela violência, a Escola tem que ser um ambiente onde se forme uma cultura de Paz – porque fora dela, o que grassa é a violência, a barbárie.
 

domingo, 25 de março de 2018

ANÁLISE - ELEIÇÕES 2018


Teses sobre o processo eleitoral das eleições de 2018
Vagner Gomes de Souza (Sociólogo e Historiador)

1.      As eleições de 2018 é mais um momento na história “zigue-zague”  democratizadora de nosso país. Uma estrutura de mudanças lentas que coabita com muitas facetas conservadoras agora expõe alguns traços autoritários nas redes sociais. Contudo, não nos esqueçamos da durabilidade de nossa escravidão (388 anos!!!) e suas dramáticas consequências para os afrodescendentes. Não nos esqueçamos da existência de dois momentos de regimes autoritários em nossa República. Enfim, vivemos uma democracia ainda em construção. A pauta democrática, mais uma vez, ganha força para lutar pelas mudanças sociais. Temos a oportunidade de um reencontro da política com os novos sujeitos sociais desde que se saiba operar a política das alianças.

2.      Não está ainda claro o quadro eleitoral em que o debate da tese anterior se manifestará. A crise do sistema partidário brasileiro contaminou até as agremiações da esquerda brasileira ao se deixar pautar pela “pequena política” ao se manifestar no limite do cálculo eleitoral. As mudanças reivindicadas em 2013 relativas a Saúde e Educação Pública estão a procura de um ator político que melhor lhe represente. A gravidade da recessão econômica impediu uma maior conexão com a renovação via sociedade civil.

3.      No calendário eleitoral, estamos em tempos de “janela partidária”. Nesse momento, tudo é feito como se fosse uma “feira de legendas” mais identificadas com o “Centrão” na expectativa de continuidade das forças do atraso e do clientelismo político. Os partidos de viés mais do campo democrático devem admitir uma dificuldade na renovação de seus quadros políticos uma vez que não se permitiu um pluralismo das classes subalternas nos anos do “Presidencialismo de Coalizão” sob o comando do PT. Aliás, não foram “anos petistas” ou “lulista” que vivemos de 2003 até 2016, mas uma ampla coalizão com forças do atraso que emergiram após o Impeachment de 2016.

4.      As forças do atraso chegaram ao Governo em 2016, mas não conseguem se fazer hegemônicas. Esse é o ponto o qual se explica o sentimento de “vazio de Centro Político”. Entretanto, esse é um setor político que será reconstruído pelas forças democráticas com adesão da própria esquerda. Nossos liberais estão reféns do economicismo na política e poucas figuras de natureza pública rompem com o discurso da flexibilização irresponsável.

5.      Estamos em tempos de formulação de um programa que evite colocar a esquerda democrática no “gueto” do sectarismo político. A situação do Rio de Janeiro é um importante “laboratório” para a intervenção da política da frente. Não devemos esquecer que a recomposição de uma “centro-esquerda” no segundo colégio eleitoral do país permitiria melhor possibilidade para a passagem das forças modernizadoras da política. Contudo, a tarefa não é simples diante dos cálculos de grupos da esquerda ressentidos com a ideia da renúncia de alguns projetos imediatistas.

6.      Não há nada consolidado quanto a existência da polarização entre Esquerda e Direita. O primeiro colocado nas pesquisas eleitorais é de uma força política que sempre disputou as eleições presidenciais no Brasil desde 1989. Ora ficando em segundo lugar ou ora ficando em primeiro lugar. O segundo colocado nas pesquisas é um “aggiornamento” no conservadorismo brasileiro que se sentiu abandonado na fragmentação do PSDB e DEM. Nas devidas proporções, trata-se de uma “Terceira Via” à direita com a hipótese de se esvaziar ao longo do processo eleitoral.

7.      A “Fakepolarização” alimenta um debate sobre a necessidade um Centro Político, porém, na verdade, trata-se de segmentos da burguesia brasileira pleiteando a sua pactuação em torno de candidaturas próprias na perspectiva de uma unidade adiante. PSDB, DEM e MDB ensaiam candidaturas próprias em nome do mesmo programa. A dosagem de liberalismo que lhes faz diferir é imperceptível diante dos graves problemas de distribuição de renda que vivenciamos em nosso país.

8.      Temos tempo para se fizer valer um Pacto de Forças Políticas comprometidas com a implementação da Constituição de 1988. Nela está a política moderna do Brasil. A atualização do marco constitucional não implica na sua descaracterização e limitação de suas conquistas sócias. Pelo contrário, há uma constante necessidade de redistribuição social no Brasil tanto na renda quanto no acesso de serviços públicos. O Centro Democrático será reinventado pela inspiração das forças sociais mais a esquerda.

9.      Na disputa eleitoral para a Presidência da República, todas as vertentes políticas aguardam o “Plano B” ao Lula. Contudo, a tarefa democrática desse momento é abrir núcleos de defesa dos valores civilizatórios que estão consagrados na Constituição de 1988. Além disso, formular uma pauta democratizadora que convoque a sociedade para renovar nossos legislativos com candidaturas modernas. Os Núcleos devem ser um Movimento da Sociedade Civil de renovação política programática.

10.  Nada nos permite em ficarmos presos a conjuntura em nomes sem que fiquemos atentos a formulação da política democrática. Ela deve partir de baixo para cima em diálogo com as forças política partidária.

11.  A Democracia Brasileira tem a oportunidade de abrir um novo ciclo político em 2018. Entretanto, as forças políticas democráticas não podem continuar reféns de um cálculo da polarização. Esse é o momento de se autotransformar.

quarta-feira, 21 de março de 2018

MODERNISMO DAS MARGENS - ENTREVISTA COM JESSÉ ANDARILHO


O BLOG VOTO POSITIVO tem um compromisso com a formação de um público leitor que contribua para a formação de uma cultura democrática. A entrevista com Jessé Andarilho é a oportunidade de apresentar ao nosso público um carioca, criado na favela de Antares, que fez da literatura uma possibilidade de redenção. Seus livros Fiel (2014) e Efetivo Variável (2017) apresentam um lado da cidade do Rio de Janeiro pouco reconhecido nos meios de ficção. Fazemos votos de esperança que muitos leitores entrem no efetivo dessa literatura que ousaremos de chamar “Modernismo das Margens”.

Jessé Andarilho - Foto: Custodio Coimbra (O Globo)
 
1)      Em seu primeiro livro, Fiel (2014), você coloca um personagem da periferia que nasceu numa família evangélica.  Fiel, além de outros aspectos, retrata essa transição religiosa da sociedade carioca para o protestantismo. Você considera que o fator religioso inibe a criminalidade?
 
Jessé Andarilho - Conheço vários evangélicos traficantes. A religião sem educação é tipo aquele lance de fé sem ações.
 
2)      O personagem Felipe em Fiel tem uma fixação pelo futebol. Muitos jovens da periferia brasileira tem hoje o sonho de ser um “novo” Neymar não só quanto ao talento, mas também quanto a conta bancária. Esse desejo pela ostentação monetária seria um fator negativo?
 
Jessé Andarilho - Como nós não vemos muitos médicos pretos que vieram das favelas, não vemos muitos professores que vieram da favela, não vemos advogados que vieram das favelas, é mais fácil se apegar na ideia de que vencer na vida é ser pagodeiro ou jogador.
 
 
3)      Qual foi o impacto literário de Fiel na sociedade carioca? Temos a impressão que seus livros são mais lidos pelos paulistas. Seria possível fazer um comentário sobre essa percepção?
 
Jessé Andarilho - Não sei como você chegou a essa conclusão, pois os cariocas adoram meus livros( pelo menos é o dizem na minha frente rsrs)
 
 
4)      Efetivo Variável (2017) seria um livro pacifista? Você é favorável ao fim da obrigatoriedade do alistamento militar?
 
Jessé Andarilho - Efetivo Variável é uma história literária. Consegui colocar algumas críticas sobre o processo sem ser pesado. Pessoas militares gostam tanto do livro quanto pessoas que odeiam o militarismo. Com relação à minha opinião sobre o serviço militar... Acho que não deveria ser obrigatório, nem o alistamento e nem o voto.
 
 
5)      Seu segundo livro, apesar de ser de 2017, pode ser um prenúncio da “militarização” da questão da Segurança no Brasil. O que você acha?
 
Jessé Andarilho - Comecei escrever o Efetivo Variável em 2012. O Exército vive fazendo ações aqui no RJ e não imaginei que fosse rolar essa “ocupação”. Acho desnecessário isso tudo. Essa intervenção tem base numa violência que sempre existiu. Acho que a violência não tá pior do que antes, acho que recebemos mais informações o tempo todo através dos celulares conectados. Isso dá uma sensação de insegurança muito maior do que antes.
 
6)      De 2014 (Fiel) até hoje, qual o balanço que você faz sobre o incentivo à leitura para os jovens moradores da periferia?
 
Jessé Andarilho - Mano. Não sei te responder essa pergunta. 
 
 
 

7)      Qual o balanço que você faz do Centro Revolucionário de Inovação e Arte (C.R.I.A.)?
 
Jessé Andarilho - Não sei como anda o CRIA, Não tenho informações desde 2015 quando criei o marginow e decidi investir todas as minhas energias pra fortalecer a cultura da galera que veio das margens.
 
8)      Quais seriam os outros escritores inovadores para a juventude brasileira nos dias atuais?
 
Jessé Andarilho - Gosto de maior galera. Tanta gente que os nomes não vão caber nessa matéria!

terça-feira, 6 de março de 2018

ELEIÇÕES ITALIANAS - ENTREVISTA - PROFESSOR ALBERTO AGGIO

Professor Alberto Aggio 
 
1. A polarização entre a Centro-Direita e a Centro-Esquerda aparentemente se encerrou com a emergência do Movimento 5 Estrelas na política italiana. Depois da Eleição de 4 de março, seria possível afirmar que a “antipolítica” é a tendência que ganhará hegemonia nos próximos anos?
 
Alberto Aggio  - É verdade que um dos aspectos significativos dessa eleição foi a superação do bipolarismo, o que não quer dizer que não há mais esquerda e direita. Também é verdade que o grande vencedor, o M5S, tem como principal característica uma marca antipolítica muito forte. Contudo, agora, vitorioso, numa situação bem especifica em que não há maioria e não há mecanismos em que o eleitorado defina uma eventual maioria, o jogo será jogado pelas forças em cena. O problema é que aqueles que venceram, M5S e Liga, não obterão facilmente o apoio daquele que perdeu, especificamente o PD de Matteo Renzi, embora esse tenha renunciado um dia depois dos resultados eleitorais serem conhecidos. A situação é de impasse para a formação de um novo governo. A tendência geral da antipolítica existe, é um fenômeno mundial, mas é difícil saber qual será precisamente seu futuro.
 
2. As três maiores forças políticas (Centro-Direita, Movimento 5 Estrelas e Centro-Esquerda) não conseguiram a maioria absoluta nas últimas eleições ao Parlamento Italiano. O Senhor avalia que é possível construir um acordo político entre Centro-Direita e Centro-Esquerda semelhante ao que ocorreu na Alemanha de Angela Merkel?
 
Alberto Aggio - A situação italiana é muito diferente da alemã. Na Itália, há uma clara oposição entre três polos e isso se expressou nas eleições. São três polos que não levam uma política de aproximação, com um centro político fazendo esse papel. Na Alemanha há já uma inclinação à “grande coalizão” porque se chegou ao um impasse histórico entre o partido de Merkel e os socialdemocratas. O risco na Alemanha é o crescimento espantoso dos neonazistas. De certa forma, nessa eleição italiana isso também apareceu, de maneira muito forte. Ou seja, há um clima de extremismo que precisa ser enfrentado. Não sei como as forças políticas italianas irão compor um novo governo. Mas seguramente não há disposição de composição entre direita e esquerda. Com a vitória da Liga, pode-se dizer que não há mais centro-direita na Itália porque Berlusconi foi derrotado. À esquerda, a derrota do PD também tem consequências sérias para qualquer composição. As únicas possibilidades seriam um governo guiado pelo M5S, o que é difícil uma vez que De Maio pensa que o PD é o seu mais forte interlocutor, mas o ataque que o M5S fez ao PD na campanha talvez inviabilize essa alternativa. Para o M5S o PD era o partido que significava o poder que precisava, no seu entendimento, ser derrotado. É difícil agora construir uma coabitação governamental.
 
Silvio Berlusconi e Matteo Renzi: os derrotados
 
3. A coalizão da Centro-Direita teve a Liga como a força política mais votada (em torno de 18%) em relação a Força Itália do Ex-Premiê Sílvio Berlusconi (em torno de 14%). Isso sugere que haverá uma guinada para o extremismo político na Itália? A questão dos imigrantes foi o fator decisivo nas eleições? 
 
Alberto Aggio - Essa é efetivamente a mudança mais expressiva à direita. A derrota de Berlusconi significa o fim de sua carreira política e talvez do próprio partido, a Força Itália. A Liga deixou de ser identificada apenas como Liga Norte, inclusive eliminou a localização geográfica do nome. Contudo, sua votação mais expressiva tenha sido no Norte da Itália, enquanto o M5S venceu ao Sul. Como disse, o extremismo foi muito forte e os ataques à democracia representativa, à política tradicional, enfim, ao poder instituído, mesmo que ele seja democrático e reformista, como tem sido nos últimos anos na Itália. Ele, seguramente, permanecerá se exprimindo. Por isso, as instituições e os atores democráticos devem construir consensos para garantir estabilidade e funcionalidade do sistema. Mesmo os extremistas da Liga e do M5S terão que moderar o seu discurso e se institucionalizar. A questão dos imigrantes foi, certamente, transformada num embate que enfraqueceu o partido do governo, o PD, e fortaleceu o extremismo.
 
4. Há a possibilidade de a Itália encaminhar um processo de saída da União Europeia após as eleições do último domingo?
 
Alberto Aggio - Creio que nem mesmo o eleitorado que deu o seu voto a quem fazia o discurso antieuropeísta não estará disposto a apoiar a saída da Itália da UE. Na campanha eleitoral já estava clara a mudança. Tanto M5S quanto a Liga moderaram seus discursos contra a EU. O comparecimento da população às urnas foi em torno de 73%, num país onde o voto é facultativo, o que mostra que há interesse na participação eleitoral na Itália e que há consensos básicos entre os italianos. Um deles é de ser europeísta. Lembremos que em 2014, nas eleições europeias, o PD teve 40% dos votos; o M5S elegeu eurodeputados e eles estão lá realizando o seu trabalho (claro que estão num grupo fortemente crítico ao governo da UE, mas estão lá).
 
 
5. Como o Senhor explica o declínio eleitoral da coalizão de Centro-Esquerda? A liderança política de Matteo Renzi sai abalada com os resultados eleitorais do PD?
 
 Alberto Aggio - A derrota do PD e de Matteo Renzi é dura e vai gerar mudanças. Inclusive, Renzi já renunciou ao cargo de secretário geral do PD, embora deva ficar até a realização da Assembléia Nacional do partido e das prévias para a definição e um novo secretário. Acho que a liderança de Renzi jogou o PD numa nova fase e redefiniu o PD. Alguns ex-comunistas se afastaram do partido, como era inevitável e formaram um novo partido, “Livres e Iguais”, que também não foi bem nas eleições. Algumas lideranças do antigo PCI, como Massimo d’Alema, que não foi eleito, sofrendo uma derrota vergonhosa, finalizaram sua carreira política nessa eleição. A questão para o PD agora é definir se apoiará um possível governo M5S ou não. Se o fizer, será a escolha de um caminho cujos resultados, para seus apoiadores, não se sabe as consequências. Se não o fizer, estabelecerá que o caminho é a reconstrução a partir da oposição, assumindo um outro papel. Há muita especulação e muita confusão também. Alguns dizem que o M5S é comparável, em termos de base social, o PCI de Enrico Berlinguer, grande líder do comunismo italiano da década de 1970. Há mais do que um exagero nessa avaliação. Mas há também informações que, de fato, mais de 1 milhão de eleitores que eram do PD, votaram no M5S, o que explica muita coisa e merece uma análise mais profunda.
 
Luigi Di Maio: Uma nova "estrela" do Movimento 5 Estrelas?
 
6. Muitos analistas sugerem que o impasse político se prolongará até convocarem novas eleições. O que o Senhor acha desta hipótese?
 
R: É possível e até provável que isso aconteça. O presidente da República, Mattarella, deve chamar os líderes partidários ou suas direções para conversar sobre a formação de um novo governo. Isso deve tomar algumas semanas. Como disse, há um impasse e todos sabem disso. Por outro lado, convocar novas eleições tem um custo político muito grande, para vencedores e para quem foi derrotado. Mas, hoje não se pode saber muito bem o que irá acontecer.
 
Matteo Salvini: O Fantasma do Extremismo de Direita
 
7. A esquerda brasileira a partir dos anos 60 (movimento aprofundado nos anos 80/90) sofreu influências do debate político italiano com a recepção das obras de Gramsci. Como o Senhor avalia o quadro político/intelectual da esquerda brasileira que segue, se ainda assim podemos dizer, essa tradição?
 
Alberto Aggio -  Acho que a esquerda brasileira passa por um processo de esgotamento depois do desastre petista. Na sociedade, a identidade de esquerda é vista hoje com muito desconfiança. O petismo foi muito tóxico. Há que se abrir uma espécie de “canteiro de obras” para repensar o ideário de esquerda num mundo como esse, de transformações imensas, de contradição velhas e novas, de idas e vindas, marchas e contramarchas em termos políticos e culturais. Há muito a se rever e a própria “tradição gramsciana”, como você sugere, deve fazer parte desse debate, desse repensar, revendo-se a si mesma.
 
8. Enfim, quais seriam as possíveis lições das eleições italianas para os brasileiros no ano das eleições gerais de 2018?
 
Alberto Aggio - Brasil e Itália tem muitas diferenças e alguma proximidade. Nós somos presidencialistas e a Itália é parlamentarista. Essa não é uma diferença pequena. A nossa cultura democrática é mais rarefeita e o nosso debate político bastante pobre, em comparação com o italiano. Vemos crescer aqui também um certo extremismo que é preocupante, para dizer o mínimo. A nossa esquerda, como disse, está em frangalhos depois da experiência lulopetista, e volta-se para si mesmo, procurando manter o apoio das corporações que lhes dão sustentação, especialmente as estatais. Uma nova esquerda, moderna e democrática, só teria passagem hoje em aliança com setores de centro, mais moderados e democráticos, e me parece que essa seria, de imediato, uma alternativa de perfil necessário, mas mínima. Em suma, em uma leitura da realidade brasileira, eu diria que o Brasil precisa ser reconstruído depois do desastre petista e seria bobagem uma atitude de “gladiador romano”, ilusória em nossa realidade.






domingo, 4 de março de 2018

CORRIDA AO OSCAR: Três Anúncios para um Crime

 
Três Anúncios para a Democracia
Por Vagner Gomes de Souza

O tema da violência não deve se limitar ao combate ao tráfico de entorpecentes em clima belingerante. A violência é um problema que está no cotidiano do ser humano em atitudes que ilustram o quanto os valores cristãos (“Amai-vos uns aos outros assim como vos amei”). Essa é uma possível reflexão para quem sai do cinema ao assistir Três Anúncios para um Crime que concorre ao Oscar de Melhor Filme entre outras categorias. O filme tem um roteiro que testa o lado vingativo do público. O senso comum pode nos levar a conclusões antecipadas sobre como reagir a um trauma. Contudo, o desenvolvimento nos impõe depois um novo olhar sobre o tema.
A protagonista do filme é Mildred, vivida pela atriz Frances McDormand (indicada para melhor atriz), teve a filha vítima de violência sexual numa pequena cidade do Missouri. Trata-se da típica cidade do Meio Oeste Americano que formou a base eleitoral de Donald Trump. Porém, não espere uma revanche eleitoral entre Democratas e Republicas nesse filme uma vez que todos vivem seu cotidiano com seus dilemas, erros, acertos e limitações. Frances empresta pela sua interpretação um talento que supera até quando venceu o Oscar por Fargo em 1997.
Mildred não é uma “Mãe Coragem” de um Bertold Brecht, mas faz da iniciativa uma forma de fazer o jogo estar ao seu favor. O Xerife reconhece isso numa passagem do filme. O uso da publicidade dos Outdoors em tempos de redes sociais é um desafio aos pós-modernos da comunicação política. O que incomodava os três anúncios vermelhos colocados numa autoestrada sem grande fluxo? Esse mistério é maior que o desfecho do crime.
 
Sam Rockwell  e Frances McDormand em cena
 
Em primeiro lugar, o exercício da liberdade de expressão que faz uma crítica a atuação da chamada “inteligência investigativa” da polícia local. O detetive responsável é racista, homofóbico e, acreditem, anticomunista (atenção ao diálogo sobre o nome do anunciante, Red) . O oficial Jason Dixon (interpretado por Sam Rockwell – Leão de Ouro de ator por Confissões de uma mente perigosa) leva o público ao extremo do sentimento de ódio pelo personagem. As raízes de um fascismo meio enlouquecido por um trauma na perda paterna e tutelado pela mãe. Um bom exemplo para os amantes de a psicanálise fazerem uso de suas leituras. Enfim, a “inteligência” não existe!
 
Em seguida, uma manifestação que poderia alimentar outras fraturas numa comunidade aparentemente sem conflitos. Todos apelam para uma conciliação na retirada dos anúncios. Nesse instante a Ética da Convicção ganha força, mas alimentada pelo ódio que cega as ações dos sujeitos da trama do filme. Por fim, ao se alimentar uma luta contra o extremismo com atitudes extremadas cai num desfecho importantíssimo no aprendizado da política. A aliança pode vir de quem se menos espera.
As cenas finais do filme faz o público jovem, mal acostumado com o filme padrão norteamericano, achar que não acabou. Entretanto, um filme ele se encerra muitas vezes nas diversas interpretações que podemos lhe conferir. Três Anúncios para um Crime é um manifesto político pela liberdade ao demonstrar que não é correto se deixar guiar pelo ódio sectário. A Democracia ela ganha muito com os grandes gestos da renúncia no tempo certo de uma viagem política.
 


domingo, 25 de fevereiro de 2018

CORRIDA AO OSCAR: A Forma da Água

 
O MUNDO LÍQUIDO DE GUILLERMO DEL TORO

Em homenagem ao centenário de Nelson Mandela

Por Pablo Spinelli
Autores emblemáticos das Ciências Sociais, Norbert Elias e Zygmunt Baumann, ganharam apelo popular e uma demanda mais juvenil a partir de inserções de parte de seus trabalhos nas últimas provas do ENEM. Ambos tiveram seus trabalhos reconhecidos na Academia quando já estavam numa idade bem madura. Algo semelhante ocorreu no campo da literatura com o português José Saramago, autor que convocaremos mais abaixo. O polonês Baumann e o alemão Elias trouxeram, cada um de forma específica, uma herança de outro “maldito” na Academia, Georg Simmel, hoje, bem mais popularizado que Sartre ou Durkheim no mundo universitário. Em todos os citados – à exceção de Saramago – há o problema da “questão judaica” como um obstáculo para seus nomes terem figurado em Universidades europeias. O que isso tem com a resenha de um filme? - o ansioso leitor ou a inquieta leitora pode se perguntar. O tema da modernidade que causa distância, o avanço do mundo urbano que cria isolamento, a polidez dos costumes e das pulsões dos indivíduos que em troca, recebem isolamento, o avanço dos direitos com a permanência dos outsiders. Todos esses pontos foram abordados – cada um com sua ênfase -  por Simmel, Elias e Baumann.


Pois bem, esses são os temas da belíssima fábula “A forma da água”. O mundo líquido aparece das mais distintas formas da vida rotineira e sem sentido da personagem vivida por Sally Hawkins. O líquido e o tempo. Tempo para acordar, para cozinhar ovos, para o prazer solitário no banho. Vítima da orfandade, cabe a essa subalterna que não pode falar, ser a guia da cooperação, tema caro a um outro  cientista social, Richard Sennett. Uma muda que fala mais do que todos, pois fala pela emoção e pela razão. A sua política é na defesa da humanização daqueles que são desumanizados nos anos 1960 em plena Guerra Fria – ambiente de The Post – os outsiders dos EUA que nos são tão próximos: uma mulher subalterna muda que é vítima de assédio; uma negra que convive com um machismo da classe subalterna; um idoso homossexual recolhido à nostalgia dos musicais; um espião soviético em território hostil. A unidade desse grupo ganha força e músculos quando decidem olhar o outro e perceber o quão ele pode ser humano se houver aquilo que é caro para outro “querido” do ENEM – o filósofo alemão Jurgen Habermas – a relação dialógica em tempos de intolerância. Esse grupo seria “Os Vingadores” do mundo das coisas reais.
 
A fábula de Guillermo Del Toro tem endereço certo: a intolerância e a violência personificada pelo competente Michael Shannon, cujo personagem militarista que estimula a indústria automobilística dos EUA com um carro azul-petróleo de forma sutil evidencia os patrocinadores do atual mandatário estadunidense. Além da aparecerem o racismo contra os negros e a homofobia.
O fato de o monstro aquático ter sido capturado na Amazônia em uma suposta ação frustrada de uma exploração dos EUA no petróleo da região nos evoca de Monteiro Lobato e a criação da Petrobras ao “bolivarismo”. A personagem feminina principal quer amizade, companhia e amor. Com isso, desbrava obstáculos e se aproveita da invisibilidade que as profissões subalternas têm para fazer a sua política de salvação do Outro- sob os auspícios de Carmem Miranda, uma das várias citações da música latino-americana no filme que lembram o que esse subcontinente contribuiu para a cultura mundial.
O cineasta dá indícios desde o início de como terminará sua fábula. O nome do cinema que cita o mito de Orfeu é claro. Além do mito de Orfeu, Del Toro, como bom representante da América Latina, nos coloca como filme do cinema vazio “A história de Rute”, a mesma que liberta Malon da sua pedreira, segundo a Sagrada Escritura.
 

Destacamos outra questão da película: como se inserir numa sociedade onde a tecnologia pode diminuir com o poder da arte individual e prefere a reprodutibilidade técnica como produto? Essa é a temática do embate entre fotografia e a ilustração. De forma sutil, é o embate do cinema vazio com os serviços de demanda cinematográfica doméstica. O cinema vazio é a demonstração da falta de sociabilidade tal qual o personagem que só consegue viver do passado mítico através da nova tecnologia: a televisão.
A presença feminina é importante. Enquanto em “O Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, uma mulher conduzia a todos à liberdade, em “A Forma da Água” cabe a outra mulher, vítima de uma violência infantil que a deixou muda buscar o diálogo. Ressaltamos o papel do personagem coadjuvante espião comunista. Através dele temos uma noção do horror que foi a Guerra Fria, uma advertência para os saudosistas de “dias de um futuro esquecido”. A URSS da época da Crise dos Mísseis (enquanto The Post desconstruiu a imagem positiva de Kennedy, aqui o mesmo acontece a Kruschev) não era o “Paraíso Perdido”.
Por fim, a tragédia de uma Eurídice dos tempos modernos acaba por dar uma  volta no parafuso das teorias de Baumann. Será a liquidez, o fim dos tempos ou há espaço para a democracia, diálogo, leveza e amor quando houver a imersão da cooperação e da solidariedade em nossas mentes e corações?

domingo, 18 de fevereiro de 2018

CORRIDA AO OSCAR - The Post: a guerra secreta



THE POST: O RESGATE DO SOLDADO SPIELBERG
Em homenagem às três décadas da Constituição brasileira
Por Pablo Spinelli 
Steven Spielberg teve uma trajetória ziguezagueante na sua produção cinematográfica de quatro décadas. Foi rotulado nos anos 1980 como diretor para crianças e adolescentes a partir de filmes dirigidos ou produzidos por ele, tais como E.T., Indiana Jones, De Volta para o Futuro; Os Goonies, dentre outros clássicos da cultura pop daquela época. Esse rótulo acabou por diminuir algumas pérolas do cineasta. Antes de Ghost, um grande sucesso nos anos 1990, Spielberg já havia dirigido uma história de um fantasminha camarada (Além da Eternidade); dirigiu um dos mais belos filmes que associam o tema da escravidão com o protagonismo feminino (A Cor Púrpura) e expôs fantasia e guerra antes do filme italiano “A Vida é Bela” em “Império do Sol”. Nos anos 1990, cansado do rótulo de um desdém da Academia e da crítica ao conteúdo da sua obra apostou na temática judaica na II Guerra, apelo que sensibiliza sempre a Hollywood. Aí temos o clássico “A Lista de Schindler” e seu Oscar como diretor. Poucos anos depois encontra aquele que será seu melhor cúmplice como ator, Tom Hanks, no extraordinário “O Resgate do Soldado Ryan”. Apesar de um sucesso de bilheteria como Jurassic Park, seu público ou envelheceu ou lhe deixou de ser fiel, assim como a crítica já não lhe era mais benfazeja como se viu em filmes como O Terminal, Prenda-me se for capaz ou Guerra dos Mundos.
Após filmes de certa polêmica como Munique e As Aventuras de Tintim, o diretor enveredou para temas duros, sem se preocupar mais com o público e se desloca do centro político para um olhar de esquerda moderada, uma volta às suas origens de simpatizante declarado do Partido Democrata. Com o denso Lincoln (2012) quando sua história é a clareza de um Maquiavel que vê a política sem moral (moral sem a conotação do bem ou do mal, para deixar claro). Eis que o diretor volta à cena e dá um Oscar ao seu ator. Naquele filme Spielberg mostra o outro lado do “fim justificar os meios”. É esse o caminho que ele nos dá em A Ponte dos Espiões – ritmo lento, histórico, com densidade psicológica, silêncios, destaque para atores. Seu caminho do Maquiavel da República democrática culmina no recente The Post.
 
Steven Spielberg - Diretor de Cinema

A crítica brasileira associou o filme com o recente Spotlight. Mas entendemos de forma diversa. O filme é recheado de intertextualidade que exige um espectador ativo, que não tenha um olhar passivo aos detalhes. Spielberg talvez tenha construído sua obra mais exigente para a reflexão e participação d espectador. Há um duplo diálogo no seu filme. Um é obrigatório pelas exigências da História. O editor protagonizado por Tom Hanks é o mesmo que foi retratado no filme clássico e obrigatório “Todos os Homens do Presidente” (1976) e o jornal que denunciou os malfeitos do Presidente Richard Nixon é o mesmo, o The Washington Post. A homenagem ao filme que lhe antecedeu é simpática na passagem quando o futuro delator dos papéis secretos de Washington passa por uma sala cheia de cartazes, dentre eles, o do filme “Buth Cassidy”, co-estrelado por Robert Redford, que também co-estrelou “Todos os Homens”. Mas se por um lado Tom Hanks reforça o apelo democrata à liberdade de expressão num claro movimento de protesto ao discurso midiático contra a mídia de Donald Trump, o diretor e o roteiro desconstroem uma atriz que precisava de uma injeção de renovação que é Meryl Streep. No filme, mesmo sendo editora de um jornal familiar que está abrindo seu capital no mercado de ações – algo que mostra a gênese do comprometimento da mídia atual com seus acionistas mais do que com a verdade dos fatos – ela não é a “Dama de Ferro”, filme que fez interpretando Margareth Tatcher, porém, está mais próxima de outro filme que lhe deu grande projeção nos anos 1980, “A escolha de Sofia”. Ali, a personagem de Streep fica em vários dilemas: proteger amigos? Expor a verdade dos fatos? Preocupação com os acionistas? Ficar ou sair da zona de conforto? Quando faz sua escolha acaba por justificar sua “milésima” indicação ao Oscar. Sem bandeiras clichés do feminismo atual, a descida da personagem na escada é um exemplo do protagonismo da mulher cercada de homens, como se vê na redação de um jornal dos anos 1970, diferente dos telejornais e das rádios atuais.
Mas citávamos a intertextualidade do filme e a exigência que ele provoca quanto à atenção do espectador. Por que Clinton perdeu? Como a esquerda e o centro democrático perderam uma eleição para um Berlusconi americanizado? Para responder a essa pergunta Spielberg dialoga criticamente com outro cineasta ao longo do filme e com seu esquerdismo peculiar. Oliver Stone. Parte das obras de Stone aparece no filme como reforço ou para serem desconstruídas. Começa com Platoon. Avança para Snowden. Caminha para JFK, de onde há a maior autocrítica que um diretor democrata jamais fizera no cinema: Kennedy teve ordem ativa no Vietnã, diferente do que Stone colocou em “JFK”. Passa por um paraplégico ex-combatente em um protesto: Nascido a 4 de Julho. E termina com Nixon. O posicionamento de Spielberg e do roteiro são de deferência a Stone, mas ao mesmo tempo de crítica à crítica pela crítica. O filme ainda brinca mais com a intertextualidade. Homenageia Tom Hanks em dois momentos. O primeiro ao atender um telefone e ouvir que “nós temos um problema”, frase que ele deixou em Apolo 13. O segundo é o final, que faz lembrar o inesquecível Forrest Gump que “denunciara” o Watergate. Além disso, a escolha de elenco não é à toa, nos ensina Spielberg. As produções cinematográficas não são – em sua maioria – apenas para comer pipoca, conversar durante a sessão ou namorar. São para refletir também. Diante de um grande problema, o que fazer? Better call Saul. Para quem viu a série Breaking Bad ficará claro que a solução de um grande problema é resolvida pelo ator Bob Odenkirk. Mas a solução de verdade não está nas delações. Não está nos furos da mídia. Não está no protagonismo do Judiciário. A solução de verdade está na Constituição. Esse é o legado de Steven Spielberg.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Filmes de 1968


A Glória d`O Bebê de Rosemary
Por Pablo Spinelli
O cineasta Roman Polansky talvez seja mais conhecido por conta do processo judicial criado nos EUA ainda nos anos 1970, ou pela tragédia com a sua esposa (a atriz Sharon Tate) que foi vítima da invasão de um bando de fanáticos religiosos liderados por Charles Mason que culminou no seu violento assassinato da atriz Sharon Tate, que estava grávida. Os mais ligados ao cinema talvez lembrem do filme que lhe rendeu o Oscar de Direção, “O Pianista”, carregado de passagens de sua família e de sua própria história no período do gueto de Varsóvia determinado por nazistas, algo a ser revisto em dias das mais diversas segregações, de refugiados à Cidade de Deus, de mexicanos aos opositores na Venezuela. A minha obra favorita desse cineasta que trabalhou os diversos gêneros é o excelente “Chinatown” (1974). Filme que teve menor sucesso em premiações e nas citações dos amantes do cinema porque na mesma época foi lançado “O Poderoso Chefão – parte II”. Contudo,  o nosso foco aqui é o filme que completa meio século do então jovem cineasta, “O Bebê de Rosemary”.
Esse filme revisitou o gênero do terror sem recriar os antigos personagens como vampiros ou lobisomens, que estranhamente voltaram à moda.  Seu personagem maligno é a essência mais pura do Mal. Satanás. O filme seria muito ruim caso fosse dado para um cineasta dos EUA, com raras exceções. Polansky carrega em seus filmes muito do que aprendeu na Academia de Cinema da Polônia socialista, da literatura do centro-europeu e, curiosamente, uma adoração pela literatura brasileira a partir dos livros que via enquanto adolescente de Jorge Amado, como “Capitães da Areia” (de certa forma, um tema que reaparece em outro filme seu, “Oliver Twist”).  O que quero dizer com isso tudo? Não espere ver sangue derramado, gritos histéricos de adolescentes, uma música de estourar os ouvidos nos momentos mais tensos. É um filme que domina você lentamente e sem perceber, sua respiração fica mais ofegante, suas pálpebras abertas e a tensão psicológica criada pelo diretor é criada pelo silêncio e por sugestões.


A história é baseada em um livro de baixo valor literário, de Ira Levin. O Diretor conseguiu perceber nessa trama um paralelo com um dos enredos mais clássicos da Europa: Fausto. A história do homem que vende a sua alma ao Diabo é o argumento do filme. Mas o terror psicológico é que a alma vendida não é a sua. Ele permite que sua mulher, sem saber, gere o filho de Satanás. O mais sombrio é que isso parte de um casal de idosos simpáticos, vizinhos do ator que quer o sucesso e estrelato, vivido pelo grande e esquecido John Cassevetes e pela sua doce mulher frágil e um tanto submissa nos dias de hoje, a polêmica Mia Farrow. Será do seu ventre que nascerá o filho da contenda e da discórdia. Os idosos pertencem a uma seita e convencem o marido que a melhor forma de conseguir sucesso rápido é com o pacto com Asmodeu. Polansky usa um artifício antigo de Alfred Hitchcock. O espectador sabe o que está ocorrendo e sofre por não poder ajudar a jovem mãe, que desconhece toda a trama. Assim, ele nos faz de cúmplices silenciosos e indefesos do que pode acontecer. Mais não falarei por conta das síndromes de “spoilers” que tantos detestam.

 
Sim, e daí? Pergunta o paciente leitor dessas linhas. Por que falar de “O Bebê de Rosemary”? Por que fez 50 anos? Também. Pois manteve uma atualidade dramática que não envelheceu, com o elenco excelente – a vizinha idosa, Ruth Gordon, ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante, feito raro para um filme de terror. Mas a metáfora da venda da alma – anda mais quando não é a nossa, mas a do outro, por fama, sucesso, perenidade é algo que muito nos diz em uma modernidade líquida. Sem evangelismo na nossa proposta, perguntamos: o que e o quanto estamos dispostos a vender aos mais variados demônios do mundo para o sucesso, para a vingança, para a beleza eterna, para vitórias eleitorais que permitam que o poder fique na mesma família por duas, três gerações? Polansky nos convida a refletir sobre o ônus da glória, algo que ele sofreu e sofre – esotéricos vêem no filme uma maldição para a sua vida, esquecendo que ele reconstruiu sua carreira e sua família.  Outro ponto não menos relevante cabe à fortuna de Maquiavel. Ações que os homens não controlam.
O filme faz parte de uma trilogia básica para qualquer cinéfilo no gênero do terror moderno. Além dele há “O Exorcista” e “A Profecia”, os três extraídos de livros. Duas curiosidades. Spielberg teria se inspirado nessa onda de terror moderno, psicológico, para fazer um personagem maligno quase invisível, um tubarão. E o prédio onde foi rodado Bebê de Rosemary foi o mesmo onde John Lennon residia quando foi covarde e estupidamente morto anos depois. Morbidez à parte, o filme vale para o enriquecimento da cultura cinematográfica, para conhecer a obra rica de Polansky, para ver (ou conhecer) o tema do Fausto em tempos modernos. Será que uma família venderia sua alma para fazer parte de programas de televisão? Para o religioso Diretor, seu final nos diz que nos resta é esperar o Livro das Revelações. Antes que ele venha, veja o filme.