segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

ADEUS 2024 E OUTRAS DICAS DE BUKOWSKI


 Miscelânea final

Pablo Spinelli[1]

 

Por ser fim de ano, época que nossos 24 leitores ficam de férias e acabam por esquecer esse valoroso blog, fazemos aqui uma pequena miscelânea de sugestões;

1.    O livro O Jovem Maquiavel, de Newton Bignotto, merece uma leitura não só por parte dos já iniciados em Teoria Política ou História, como também serve como porta de entrada ou de complemento para aquele que começou a conhecer o pai da Ciência Política a partir da leitura de O Príncipe. Bignotto nos oferece um panorama histórico da Florença e dos conceitos que forjaram Maquiavel como homem da ação enquanto diplomata e mais tarde, como escritor de um dos livros mais importantes do Ocidente ou do Norte Global.

2.    A série Round 6 – parte 2 estreou no dia 26. Adepta do sistema de mexer em time que está ganhando, houve poucas inovações no atacado, mas com certa variedade no varejo. Assim como na temporada anterior, há arquétipos contemporâneos como o jovem rapper e o jovem influencer; uma discussão sobre gênero e transfobia e misoginia. A contundente crítica ao mercado, ao tratamento de párias sociais para os sem condições econômicas, a questão do endividamento pessoal, a juventude e a velhice desamparadas estão lá no moinho satânico, usando aqui famosa metáfora criada por Karl Polanyi. Para quem gosta de Filosofia Política e afins, há uma provocação: Hobbes e Locke de um lado, Durkheim e Rousseau, de outro. Individualismo possessivo, competividade, estado da natureza anômico x solidariedade, cooperação, democracia participativa de onde “pequenos sacrifícios para um bem maior” é uma bela discussão. Lembremos que a Coreia do Sul era e é uma das disneylândias do mercado (da educação, do entretenimento). Mais uma vez, a série mostra os efeitos colaterais da política econômica de um país que acabou de sair de uma tentativa de golpe de Estado.

3. Clint Eastwood, com 94 anos, dirigiu o filme “Jurado n. 2”. Mais assustador e espantoso que a política da Warner em lançar o filme do diretor - que atuou ou dirigiu filmes para o estúdio como “Os Imperdoáveis”, “Bird”, “Sobre Meninos e Lobos”, “Menina de Ouro”, “Cartas de Iwo Jima” - direto no streaming (Max), é o vigor do seu trabalho. Uma das marcas de Clint é fazer filmes com protagonistas no seu limite e com dilemas morais.

Ele usa um subgênero tipicamente americano, o filme de tribunal, para um amplo arco que está inserido a convocação para os eleitores votarem num sistema de voto facultativo; a questão do judiciário local (tema caro a um pensador do quilate de A. de Tocqueville) eleito pela cidade e a necessidade do punitivismo para amealhar votos; o misto de “12 homens e uma sentença” e “Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita” no enredo que vai para um caminho ético de pesada reflexão; além de ter um elenco muito afinado e com excelente atuação de Nicholas Hoult, cujo personagem nos remete ao apóstolo Paulo: “Porque não faço o bem que eu quero, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim. Assim, encontro esta lei: quando quero fazer o bem, o mal reside em mim.”

      4. O filme Witched trata de uma questão de origem: o que fez a bruxa má do Oeste ser má? O filme poderia ter menos 30 minutos para dar conta do seu recado. É mais um filme que se diz infantil, mas é para os responsáveis dos infantes. Há questões como o racismo, na metáfora à segregação a uma jovem verde. Mas vai além. O bode velho que nos é apresentado é um professor de história que fala para os mais jovens acerca do perigo de não se estudar História, pois podemos cometer erros que podem ser irrecuperáveis. A perseguição aos animais docentes é sobre o fascismo, assim como os macacos alados são os drones e câmeras de vigilância. O elenco é dedicado, mas o grande destaque é Ariana Grande que, tal qual Lady Gaga, pode ir longe na atuação. 


5. Por fim, o destaque para mais dois livros: A fé e o fuzil (2023), de Bruno Paes Manso. Um livro obrigatório para quem estuda religião, violência e, principalmente, para os cariocas. Salta das páginas a ausência de um pensamento acadêmico unido a uma política pública desde o século passado. A narcomilícia e o Complexo de Israel não surgiram por acaso e nem ontem. O outro livro é Por que a democracia brasileira não morreu?, de Marcus André Melo e Carlos Pereira. Nele, os dois cientistas políticos desfazem mitos sobre uma crise institucional no Brasil nesse século e tem prognósticos poderosos, como a necessidade de um governo de coalizão saber dividir o poder, como na formação de um ministério. Por mais interessante que tenha sido o desenho institucional criado pela Carta de 1988, ele não dá conta da governabilidade. A ética da convicção deve se render à ética da responsabilidade.


Por um ano mais inclusivo, democrático e amoroso para todas e todos. 


[1] Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de Saquarema e do Rio de Janeiro.

sábado, 28 de dezembro de 2024

MEMÓRIAS - KONDER NÃO SE ENTREGOU, NÃO! Número 03


 Konder, ainda está aqui.

Por Vagner Gomes de Souza[1]

 

O professor Leandro Konder se destacou pelo sorriso em suas aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na PUC carioca nos anos 90. Era comum repetir que não tinha qualidades para a análise da política, mas era um brilhante introdutor de pensadores que muitos desconheciam ou liam. Depois da “diáspora do VII Congresso do PCB”[2] esteve filiado ao PT e ao PSOL. Na passagem da primeira década de seu falecimento, essas duas forças políticas estariam a léguas de distância de suas formulações uma vez que era um intelectual que atravessava as fronteiras até ao manter uma amizade com José Guilherme Merquior (outro esquecido pensador brasileiro). A amizade era tamanha que em 2001, com a saúde debilitada, ele vai a homenagem da Academia Brasileira de Letras pela lembrança da primeira década sem Merquior.

Talvez a relembrar Konder seja um incômodo para muitos da “esquerda fake” que hoje nos rodeiam com essas frases prontas de efeito como se fosse parte de uma nova doutrina dogmatizada, porém “surda” a realidade. A falência do ensino superior é tamanha que desconhecemos alguma iniciativa em memória aos dez anos sem aquele que se doutorou com uma tese, que, publicada em livro, ganhou o título A derrota da dialética (1988). A despeito de algumas observações críticas a passagens dessa obra pouco lida nos nossos dias, seria interessante observar uma preocupação em tentar uma explicação sobre a trajetória partidária através da história das ideias.

Ele se definia como um apreciador da história das ideias e tinha uma qualidade de síntese em seus textos que faz a leitura ser fácil e agradável para os leitores de primeira viagem. Nosso temor é que os leitores do século XXI considerem Leandro Konder um autor complexo. Estaríamos num quadro desastroso se chegarmos a essa constatação, mas sigamos na esperança que houve um “esquecimento” não intencional desse autor nascido em Petrópolis. Seu pai era médico e militante comunista, e foi preso assim que deu entrada na Casa de Saúde para acompanhar a esposa em trabalho de parto em janeiro de 1936.

Talvez essa referência inusitada de sua chegada ao mundo explique um humor cético de Leandro Konder ao logo da vida. Em aula Konder dizia que “Foi um derrotado. E que devemos aprender com as derrotas.” Nas suas fichas estavam anotações que encaminhavam suas aulas lotadas de ouvintes para além dos matriculados. Acredito ter testemunhado uma aula com mais de 50 alunos em que os olhos femininos brilhavam e nunca deixávamos de sorrir. O muro de Berlim tinha caído e Konder destacava que teríamos tempos árduos (imagine se estivesse vivo hoje). Era o começo do governo Collor e o seu Plano encantava até um segmento do campo democrático.

Na Revista Presença de número 15, Luiz Werneck Vianna abria com o artigo “O ovo da serpente e o omelete de Indiana Jones”. Atuais algumas passagens desse artigo se, nas devidas proporções, compararmos com a Argentina sob os tempos de Milei. Segundo Vianna,

 

“A demagogia incita a população ao sacrifício, reclama do seu patriotismo e só seu espírito solidário – que a ela não faltam –, manipulando-a instrumentalmente para que lhe conceda as bases de sustentação política e social ao seu projeto doutrinário e acadêmico de recriação da hegemonia burguesa. Como um programa de estabilização monetária, numa hora de hiperinflação, é de todos, seu domínio pelo grande capital visa empenhar a vontade e o interesse de todos à sua vontade e interesse particulares. (...)” (VIANNA, 1990, p. 5)


 


Nesse mesmo artigo, há a lembrança de que o americanismo pela política seria o fascismo, um tema muito caro para nas reflexões de Leandro Konder num importante debate interno na sua primeira agremiação partidária, o PCB. O livro Introdução ao Fascismo está nesse contexto de 1977 quando, num momento inédito, o Comitê Central (C.C.) do partido estava sendo gradualmente “exterminado fisicamente” pelos órgãos da repressão e fez a opção de ir para o exílio. A história do exílio do C.C. do “partidão” ainda aguarda um trabalho historiográfico de fôlego que provavelmente nos explique os descaminhos do PCB após a Anistia. Digamos que o marxismo político[3] de Armênio Guedes[4] tenha que sair um pouco do “limbo” para se fazer nascer a esquerda no Brasil em contraposição as correntes liberais progressistas que assim se autodenominam como tal.

Entretanto, nosso interesse se reporta ao ensaio “Denis Diderot” que se encontra na mesma edição da Revista Presença. Konder tinha uma característica de nos instigar a ler autores à margem da leitura do “senso comum” pela leveza de sua escrita que nos introduzia a cada um. Em tempos em que a URSS se definhava em seus últimos momentos até a fracassada tentativa de golpe de agosto de 1991, esse Diderot era apresentado como um “materialista mecânico” e humorado nos títulos de suas obras. Seria um “Barão de Itararé” entre os filósofos iluministas. Todavia, Diderot acreditava na transformação do mundo pelas ideias e se notabilizou pelo esforço de 25 anos na edição da Enciclopédia.

Segundo Konder,

 

“O materialismo de Diderot causava consternação nos espíritos mais aguerridos religiosos. O filósofo, de certo modo, era herdeiro de uma linha de pensamento que provinha de Epicuro e de Lucrécio, passava tanto pelo francês Malebranche como pelos ingleses Bacon e Hobbes, para se apresentar, com inegável vigor, na teoria do conhecimento de John Locke. Tal como seus contemporâneos Helvetius, d´Holbach e Voltaire, Diderot estava convencido de que os órgãos dos sentidos captam a materialidade do real através de estímulos que vêm de fora e são conduzidos para dentro da consciência; e a atividade da razão ‘natural’ de que os homens dispõem se reduz, no essencial, a selecionar, organizar e interpretar os dados recebidos.” (KONDER, 1990, p. 165)

 

Esse Diderot de Leandro Konder seria um “anti-dogmático” a procura de uma liberdade individual que se observa nas referências a Freud. “Os seres humanos são um tanto imprevisíveis e sempre podem nos surpreender com suas iniciativas.” (KONDER, 1990, p. 169). Um perfil distante do “jacobinismo político” que ainda está impregnado em muitas manifestações nas redes sociais conhecidas como “lacração”. Aprenderiam muitos na leitura de um “último Diderot recupera na crítica aos europeus a sede de universalidade que, no passado, tinha se manifestado em seu compatriota Montaigne (...)” (KONDER, 1990, p. 170).

 

 Referências bibliográficas:

 

KONDER, Leandro – “Denis Diderot” in PRESENÇA: Revista de Política e Cultura N 15 – Abril, 1990.

SANTOS, Raimundo (Org.) – O marxismo político de Armênio Guedes. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2012.

VIANNA, Luiz Werneck – “O ovo da serpente e o omelete de Indiana Jones” in PRESENÇA: Revista de Política e Cultura N 15 – Abril, 1990.



[1] Doutorando em Ciência Política pelo PPGCP-UNIRIO. Leciona nas redes públicas de ensino no município do Rio de Janeiro e na Rede Estadual no bairro de Campo Grande (RJ).

[2] Referência ao VII Congresso, que formulou uma linha política, sob o título "Uma alternativa democrática para a crise brasileira". No encaminhamento deste Congresso, viu-se mais uma vez dividido em lutas internas de graves consequências. Por um lado, o chamado os reformadores havia construído sólidas bases no pensamento partidário. Embora não contassem com grande número de militantes e dirigentes que se assumissem como tal, as formulações centrais deles foram adotadas “mecanicamente” pela máquina partidária enquanto seus formuladores se afastavam do PCB. Por outro lado, o grupo liderado por Luiz Carlos Prestes, divergindo da orientação da maioria do Comitê Central, rompe com o Partido, após inúmeros embates que vinham se acirrando desde o exílio.

[3] Esse conceito de “marxismo político” foi mobilizado por Raimundo Santos no livro que se encontra nas referências bibliográficas.

[4] Jornalista, entrou para a célula comunista da Faculdade de Direito de Salvador em 1935 e, ao longo da vida, ocupou diferentes cargos de direção no PCB. Participou ativamente na organização e direção de revistas e jornais de esquerda: Seiva, Continental, Tribuna Popular, Estudos Sociais e Voz da Unidade. Em 1945, foi secretário particular de Luís Carlos Prestes. Com o golpe de 64, teve seus direitos políticos cassados e acabou se exilando no Chile e na França. De volta ao Brasil, e depois de 43 anos de militância, desligou-se do partido em 1983. Em 2025, fará uma década de sua partida.

 

MEMÓRIAS - KONDER NÃO SE ENTREGOU, NÃO! Número 02


 A vitória da dialética

 

Dedicado à Sophia, Inês, Joana, Olívia, evoé, jovens à vista!

Pablo Spinelli[1]

Pacelli Henrique Silva Lopes[2]

 

É famosa a frase de Guimarães Rosa. Algumas pessoas não morrem, ficam encantadas. Encantados ficaram todos e todas que conheceram o filósofo, advogado, professor, biógrafo, contista, cronista, militante Leandro Konder, que nos deixou há dez anos. Os olhos da cor de anil, a dulcíssima forma de falar se coadunavam com uma mente ativa, uma personalidade da cena política e intelectual carioca desde os idos do CPC da UNE nos anos 1950-1960, um intelectual de profundas convicções e ao mesmo tempo, autocrítica sempre permanente; professor com uma didática cativante; pensador que fazia da facilitação ao entendimento ao leigo seu melhor ofício. Caso Lukács, Benjamin, Habermas, Rimbaud, Kafka, Marx, Gramsci, Fourier fossem inatingíveis em algum olimpo, Konder pegava a chama sagrada e as dividia com os leigos mortais, como atesta sua bibliografia.

O Konder que aqui temos em tela é de um pequeno, mas nada simplório livro. Introdução ao Fascismo foi editado pela primeira vez em 1977, em pleno governo Geisel. Konder havia há poucos anos voltado do exílio da Alemanha, onde ficou amigo do grande intelectual liberal José Guilherme Merquior. E no Brasil havia um debate interno do PCB, partido ao qual militava há tempos acerca da natureza da Ditadura Militar-Civil. Um grupo de intelectuais do PCB defendia uma nova práxis e para isso se valeram do conceito da “democracia como valor universal” em artigo famoso do também amigo Carlos Nelson Coutinho que, com Konder, Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, dentre outros, seriam chamados de “eurocomunistas”.

Voltemos ao livro Introdução ao Fascismo (já reeditado em 2009 e 2019). Konder é taxativo quanto ao ponto fulcral do conceito “fascismo”. Ele é obrigatoriamente chauvinista e, não necessariamente, racista. A forma fascista alemã ficou mais evidenciada pelo racismo, mas o denominador comum fascista é esse: o radicalismo nacionalista de tom agressivo e beligerante. Somente isso torna o livro necessário para os dias atuais tendo em vista os movimentos extremistas na Europa e nos EUA a respeito de refugiados e imigrantes.

Konder (antecipando Hobsbawm) é claro ao pontuar que o Fascismo é filho do século XX. Após a leitura de vários estudos dos mais variados matizes ideológicos sobre o assunto, o autor aponta que a ideologia – liberal ou marxista – tornou nublado o conceito. Tal qual o termo “populista” na contemporaneidade, chamar a outrem de fascista pode servir de epíteto negativo, pejorativo, mas ao se vulgarizar o termo o mesmo perde em conteúdo o seu significado. Se tudo é fascista, nada o é.

Leandro sinaliza com clareza e coragem para a época: nem todo reacionário é fascista. Nem toda repressão é fascista. Dessa forma, o debate interno pecebista deveria ser claro não só quanto à natureza do regime como quanto à política para derrubá-lo. O autor como amante da história não poderia de deixar de provocar ao se remeter a exemplos como Esparta, Nero ou Inquisição Espanhola e indagar: seriam estes exemplos, exemplos fascistas?

O fascismo era do campo da direita, mas não resumia e nem resume esse campo. É uma das suas articulações, mas não a sua síntese. Eis a sutileza do autor como interventor de seu tempo e ainda serve como legado para o nosso. Ao entender que o fascismo é uma manifestação, mas não resume a direita, ele afirma que nessa vertente política existem os que fazem “manobras, concessões, acordos, golpes de audácia, formas de arregimentação das forças disponíveis que transcendem da mera atitude doutrinária” (p. 28), logo, havia (e há) uma parcela do campo conservador que era (e é) fundamental para a organização da Frente Democrática - os mais novos podem se debruçar sobre quem foi Teotônio Vilela, político da terra de Artur Lira e Renan Calheiros.

O fascismo, segundo Konder, castra a política, emascula a teoria, inclusive do próprio conservadorismo. Aqui lembramos que Churchill não foi aliado de Mussolini.


Atualmente, com a proliferação de uma direita vulgar que nada lê, mas vocifera nas redes sociais, “Introdução ao Fascismo” é um antídoto para criar anticorpos para os mais jovens. Konder é honesto ao dizer que por falta de uma teoria – a qual é antípoda - o fascismo instrumentalizou conceitos do seu maior adversário, o socialismo, dentre eles alguns elaborados por Karl Marx, para seu pseudo constructo teórico. O que aqui era revolucionário, ali passou a ser manietado e disciplinado. A luta de classes, pedra angular do marxismo tornou-se a luta entre “nação capitalista” e “nação proletária”; enquanto Marx tinha como definição o fim do Estado, o fascismo vai criar uma “estatolatria”. O que era conflito classista vira defesa dos interesses corporativos. A luta política é sufocada pela luta econômica. E tudo isso girava em torno de um mito, segundo Konder. O mito da pátria.

É risível e trágico que a Itália, forjada a partir de uma colcha de retalhos, tenha tido uma grande parcela da população envolvida na mistificação da pátria unida. Konder faz uma sutil analogia silenciosa entre a formação do Estado e da Nação brasileiros com o processo fascista. Aqui houve o tempo Saquarema, lá a derrota do liberalismo resultou no fascismo.

Povo x Massa. Diferença x Igualdade. Luta de Nações x Luta de Classes. Particularismo x Universalismo. Esses foram os binômios construídos pela “teoria” fascista, cujo primeiro termo de cada par era o defendido pelo regime.

Konder didaticamente mostra ao leitor que o fascismo não instrumentalizou apenas os conceitos da esquerda, como também se apropriou de um pensamento irracionalista e/ou “aristocrático” (Le Bon, Goubineau, Maistre, Nietzche, Sorel) que distanciou a direita das ações pedagógicas das massas por conta da demonização da política que os seus intelectuais começaram a defender. Como diz Konder, “as massas passaram a encontrar crescentes dificuldades para seguir os caminhos das soluções coletivas; suas energias começaram a se dispersar pelos múltiplos caminhos – socialmente ilusórios - das “soluções” individuais (p. 43, grifos do autor).

Em suma, Konder nos ajuda a compreender o fascismo pelas suas mais evidentes características: o antissocialismo, o chauvinismo, o propagandismo para o consumo das massas, a elegia do “moderno” combinado com a restauração perdida. E tudo isso financiado pelo grande capital vindo de empresas como Ilva, Siemens, Krupp, os bancos. A questão é: por que financiavam? Atualizando a “gramática” do nosso autor: eram antiglobalistas que queriam extrair o máximo da força de trabalho. Criam no outro mundo possível pós-Crise de 1929: o fim do laissez-faire sucedido pelo protecionismo.

Konder foi preciso ao definir o surgimento dos fascismos a partir de realidades objetivas e históricas. Por isso é irônico com aqueles que tentaram (e tentam) traçar uma genealogia a partir de Platão (como Karl Popper) ou do pensamento de Maquiavel. Para os dias atuais esse livro abre um importante sendero. O casamento entre política e religião gerou a Action Française, primogênito dos fascistas europeus. Intolerância, fanatismo, satanização do outro foi o resultado dessa infeliz união.

Por fim, Konder conclui de forma pedagógica: “as circunstâncias exigem dos fascistas que eles sejam mais prudentes (...). Pragmaticamente, adaptam-se às exigências dos nossos tempos. Mas continuam a trabalhar, infatigavelmente (...)” (p.178). E seu desfecho é literário, mundo querido de Konder, que lembra a lápide do comandante fascista de “A colônia penal” de Kafka: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos, dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos, ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperais”.

Com brilhantismo analítico, refinada erudição e texto envolvente, Leandro Konder nos alertou sobre o ovo da serpente aqui e ali. Por isso, torna-se necessária a sua leitura e a lembrança de Konder, sempre presente!

 



[1] Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de Saquarema e do Rio de Janeiro.

[2] Gestor da Teia de Saberes.

MEMÓRIAS - KONDER NÃO SE ENTREGOU, NÃO! Número 01

O Azul da Cor do Mar de Leandro Konder

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

John Lennon[2]

 

Tínhamos como conhecida a história de Anne Frank (1929-1945), uma menina que, junto com sua família, vivia escondida dos nazistas no telhado de uma casa em Amsterdã. Uma vez descobertos no esconderijo, foram enviados para vários campos de concentração. O único sobrevivente do extermínio foi o seu pai, que publicou o diário pessoal de Anne, onde ela contou a sua vida na clandestinidade durante a ocupação alemã nos Países Baixos na Segunda Guerra Mundial. Anne Frank tornou-se assim um símbolo poderoso contra o genocídio nazista, e seu diário de vida foi leitura obrigatória na escola por muito tempo e Leandro Konder (1936-2014) o leu e fez dele uma inspiração num livro atualíssimo nesses tristes tempos.

Falamos de Introdução ao Fascismo (1977). Contudo, seus ensinamentos e o de Anne parecem presos no armário da história do Ocidente. Caso contrário, não se explica como, com base na barbárie que se desejou desencadear pelo grupo golpista no fatídico 8 de janeiro de 2023 em Brasília, e não pequena parte dos atores políticos de extrema-direita, permitiu, se não encorajou, o ressurgimento do fascismo e nazismo com especial virulência. Pois o conceito de fascismo não se deixa reduzir por outros. Mas o fascismo se reinventa. O fenômeno denunciado a pouco pela Petição 13.236 Distrito Federal / DF, ao dar início a revelação e ações preventivas para debelar os autores do projeto de pogrom tabajara com o fito de assassinar o Presidente da República, o Vice-Presidente da República e Ministro do Supremo Tribunal Federal, obrigam-nos a dimensionar até que ponto estão em jogo a racionalidade liberal e os valores democráticos ocidentais. Daí sigamos a canção: É preciso dar um jeito meu amigo (Ouça no anexo 1) rememorada nos cinemas no incontornável Ainda Estou Aqui  (Veja no anexo 2) .

Das palavras de Leandro Konder e dos seus olhos azuis da cor do mar, podemos intuir que estamos na presença de reacionários políticos e culturais, uma espécie de nova seita que surgiu e cujos sacerdotes, disfarçado de “liberdade”, “pátria”, “família”, utiliza métodos inquisitoriais para suprimir a democracia e a república. Com dogmas, sectarismo e uma visão maniqueísta, divide o mundo entre esquerda e direita, promovendo políticas polarizadoras de todos os tipos. No fundo, protegido por este tribalismo neofascista e neonazista, a promessa maximalista da “liberdade”, “pátria” e “família” deu origem a um ambiente brutal onde a censura prospera. Estamos na presença de uma ideologia que imagina um universo paralelo, onde nada é real e onde a história é reescrita fraudulentamente dia após dia. Assim, a outrora impensável aliança entre uma extrema-direita radical desejosa de ser hegemônica e os fundamentalismos é hoje uma sedimentação de uma realidade passada que e em intentar tribalismos fascistas e neofascista e nazistas e neonazista.

O reacionarismo colocou a democracia liberal em apuros, buscando evitar a sua responsabilização sem qualquer consequência - o que o Brasil rejeita -, censurando em vez disso os nacionalismos e populismos de direita que o confrontam hoje. A vitória dos Republicanos nos EUA é uma triste constatação disso. Também é verdade noutra área – a defesa do Ocidente – a batalha resiliente de Leandro Konder para acabar com a ameaça existencial do reacionarismo da extrema-direita patrocinado pela ignorância, e daí evitar assim a tentativa de esquecer e apagar Anne Frank (https://www.annefrank.org).


 Anexo 1

Anexo 2


19 de novembro – 25 de dezembro de 2024




[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

[2] Graduando em História.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

BOLETIM BRSÍLIA CONECTION - BBC 069 - O gato de Cheshire e o Que fazer?

Qual é o rumo da educação básica municipal em 2025?

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Pacelli Henrique Silva Lopes[2]

 

Uma das passagens mais famosas das aventuras de Alice no País das Maravilhas é quando ela chega a uma encruzilhada. Nela, surge a dúvida. E aí ela vai perguntar ao Gato de Cheshire: “Qual caminho devo seguir?” Ele responde: “Isso depende muito de onde você quer ir… Se você não sabe para onde quer ir, não importa o caminho que você siga”. Apesar da sua aparente obviedade, o que Lewis Carroll escreve nesse diálogo é brilhante. Acrescentaria que é tão necessário conhecer o destino como o ponto de partida de onde se vai partir: essas coordenadas de partida são cruciais para decidir o percurso a seguir.

Vamos supor que saibamos, na educação, para onde queremos ir: por exemplo, aumentar qualitativamente e substancialmente a aprendizagem. Hoje está estipulado qual o calçado a utilizar para caminhar e o vestuário, para resumir a proposta, qual seja, o do projeto democrático educacional. Já nesta segunda condição, não sabemos qual a proporção do magistério que possui esses sapatos e vestimenta adequada para a viagem que devem fazer.

E, além disso, é muito importante, quando vai começar uma nova administração que é preciso desenhar seu Plano Plurianual (PPA) 2026-2029 tendo em consideração a Emenda Constitucional Nº 132 de 20 de dezembro de 2023, que alterou o Sistema Tributário Nacional, para ter clareza sobre a alocação dos seus recursos, inclusive docente, sem entendermos por isso a compreensão, além do vocabulário oficial, do que e para que significa esses sapatos e trajes, propostos aqui como uma analogia de internalização, aceitação e capacidade de condução desta modalidade de trabalho político pedagógico.

Com isso, é crucial a republicanização e democratização do debate orçamentário, num caminho comum para conseguirmos potencializar a educação no nosso país. Temos uma oportunidade com a Reforma Tributária de corrigir desvios não republicanos na legislação de ICMS-Educação pelos entes federativos.

Tanto o ponto de partida face aos equipamentos intelectuais e materiais para viabilizar o objetivo são variáveis dada a imensidão de pessoas que compõem os profissionais da educação, e a diversidade de contextos, modalidades, níveis, tipos de processos e estabelecimentos de ensino daqueles que estão imersos. Daí a precisão e detalhamento do PPA.

O que é necessário, na nossa argumentação, é gerar um PPA avaliado pari passu e feito com um processo independente daqueles que o promovem (para que a sua visão não seja influenciada pela apreciação natural dos projetos), que nos permita conhecer de forma transparente a compreensão e a capacidade de realização das inovações por parte do corpo docente, as suas opiniões sobre o assunto e o progresso no conhecimento significativo as inovações, tendo dois biênios após o início, para se mostrar os sinais de seu andamento.

E para seguirmos esse caminho, não precisamos começar do zero, podemos utilizar ferramentas que já existem, como o Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEGM) do Tribunal de Contas da União. Ele tem como objetivo reunir informações sobre as gestões municipais, servindo como parâmetros de controle externo. É um meio de aperfeiçoamento das ações governamentais e fornece informações aos cidadãos.

Sua base de dados está integrada no conjunto da legislação republicana que bem cumprida representa um avanço significativo para o país.

Imagino que seja viável, nos primeiros meses dos novos governos, lançar esta proposição com base em amostras bem construídas que esclareçam o momento em que nos encontramos: pode-se dizer sem medo de que não é o inferno sombrio que alguns proclamam, nem tampouco a chegada idílica ao céu (é a isso que se refere a excelência) apresentada por outros.

A própria vida, e certamente a vida social, se bem observada, apresentam sempre diferentes tons de cinza, de preto e/ou de branco. E só conseguiremos compreender esses prismas se claramente soubermos aonde queremos chegar. No contexto da carreira docente, as ferramentas para avaliar e potencializar as competências indispensáveis a ela. Isso ajuda a formar uma política educacional fundamentada na busca de um padrão para toda a nação.

Tudo isso opera com a premissa de que a educação realmente importa, e desta forma é imprescindível unir forças para, com paciência e cuidado, iniciar a construção dessa ponte. A grande inovação necessária é a consulta à comunidade na construção do PPA, dentro das possibilidades constitucionais.

Ou seja, o PPA é a ponte estratégica, sólida e exequível de longo prazo, quadrienal, que todos respeitarão, de forma a modificar, com o tempo necessário, as estruturas, processos e relações que conduzam a uma mudança real no aumento e qualidade da aprendizagem.

Só assim estaremos protegendo o patrimônio histórico e cultural que são as escolas.

Por isso, se não sabemos onde estamos, é impossível decidir o caminho que nos levará onde desejamos ir, mesmo que caminhemos muito rápido.

 

9 de dezembro de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

[2] Gestor da Teia de Saberes.

 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 068 - UM SOPRO DE ESPERANÇA A BEIRA DA COVA


 

Uma loa do Natal

Uma loa do Réveillon

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Embora seu título tenha sido traduzido como Um Conto de Natal e não como uma canção ou vilancico natalino, o livro de Charles Dickens (1812-1870) foi escrito em menos de um mês originalmente para pagar dívidas, mas tornou-se um dos maiores clássicos natalinos e é uma obra curta, uma “nouvelle”, como diriam os franceses, que aborda temas universais em torno de histórias que acontecem no Natal. Publicado em 1843 na Inglaterra vitoriana e no preludio da segunda revolução industrial, tem todas as características dos escritos de Dickens, humanidade, dor, pobreza, injustiça e redenção. Embora possa parecer, não é uma ficção apenas para crianças e/ou adolescentes, mas para o público em geral. Li-o quando menino e causou-me uma grande impressão e tornou-me um leitor de Dickens para sempre. Agora que sou mais velho, não desprezo reler suas obras.

Ebenezer Scrooge, seu protagonista, era um agiota rico, mesquinho, seco e indiferente ao sofrimento alheio. Um herdeiro do Shylock de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare (1564-1616). Para ele, empatia, gentileza e compaixão são coisas absurdas e inúteis. Porém, na noite anterior ao Natal ele é visitado pelo fantasma de um antigo parceiro tão ganancioso quanto ele, que lhe mostra suas correntes de alma dolorosa e lhe mostra os espíritos do Natal passado, presente e futuro que mergulham nosso protagonista em sua nostalgia por juventude. Também lhe mostra o sofrimento daqueles que o rodeiam hoje e a visão sombria e dolorosa de um futuro solitário e amargo.

No dia seguinte, Scrooge muda e se redime, aproxima-se dos que o rodeiam e inicia uma nova vida serena, altruísta e afetuosa. Ensina-nos, consequentemente, que é possível mudar e para melhor, e que não estamos condenados a serem escravos dos nossos demônios.

É verdade que ainda faltam semanas para o Natal e o final deste ano de 2024, tão cheio de tragédias e dores, que na experiência do Grande Número tem sido gravíssima, mas as coisas também não têm sido fáceis para o nosso país e para a nossa região como se viu a pouco com o Acordo de Parceria Mercosul-União Europeia, já para não falar da situação planetária.

Voltamos a mencionar o primeiro Scrooge (Ainda estamos aqui - https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/09/boletim-brasilia-conection-bbc-059.html) e seu autor Charles Dickens porque sua caneta é muito expressiva ao apontar como a vida cotidiana está relacionada com as características gerais da vida em sociedade. É assim que os traços negativos, gananciosos e indiferentes do primeiro Scrooge não são estranhos, estão relacionados em seu espírito com regressões, violência e maus sentimentos nas sociedades. Pelo contrário, o altruísmo sereno do segundo Scrooge tem um ar familiar, assemelhando-se às virtudes da coexistência democrática e pacífica a nível social.

Porque essa questão mobiliza a seguinte indagação: qual é a natureza do governo em curso, nascido da Frente Democrática de 2022 reconhecida no discurso ao Congresso Nacional em primeiro de janeiro de 2023? Está claríssimo que ele busca a normalização nas relações entre democracia política e democratização social no Brasil. De como é que nós derrotamos o regime golpista pela via que todos conhecemos, não revolucionária, democraticamente construída.

É este quadro que nós temos que dominar. Antes mesmo da conquista da democracia política em 2022, o processo da democratização social avançava no País, por força mesmo da luta pela vida na pandemia. O fato é que, quando esses dois processos coincidem, o que temos assistido, tem sido um avanço da democratização social associada às conquistas que se vêm fazendo em termos de democracia política.

Assim, o governo concebeu, à ingleses no Brasil, um tipo de reincorporação dos de baixo, contando, primeiro com o plano de estabilização fiscal e os efeitos derivados, em termos distributivos de renda, provocados por isto. Os indicadores sociais são todos nesta direção. Claro está que essa incorporação passa pela revolução passiva do Grande Número.

Desta forma, nós temos que aprimorar a articulação dessas duas dimensões que recortam a sociedade brasileira de hoje: a da democracia política e a da democratização social. Sem isso, creio que vamos perder a oportunidade da passagem do primeiro Scrooge para o segundo Scrooge, como perdemos todas as oportunidades até aqui.

É isso o que há de esperançoso nesta história que ainda pulsa a despeito dos caminhos e descaminhos do que aí está. Uma loa ao Natal, uma loa ao Réveillon.

8 de dezembro de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

SÉRIE ESTUDOS - O "GAMBITO DO REI" DA DIPLOMACIA BRASILEIRA

 




O que a votação na Assembleia Geral da ONU revela sobre a relação do Brasil com os Estados Unidos e a China?

Por Rodrigo de Sousa Escaño¹

 

Uma grande questão nas Relações Internacionais e Ciência Política é se é possível medir o alinhamento entre países de maneira quantitativa. Uma medida aproximada (proxy) para responder à questão seria calcular a convergência da votação deles na Assembleia Geral das Nações Unidas. 

É fácil pensar em países que seriam interessantes para entender a relação com o Brasil: os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo desde o fim da segunda guerra mundial, e depois do colapso da União Soviética restou como única superpotência mundial. Posição esta que passou a ser questionada recentemente com a ascensão econômica e militar da China.

Como a posição brasileira variou ao longo da Nova República em relação a esses países? A mudança de presidentes ao longo desse período pode ter influenciado algo? 

Para responder a essas perguntas, este artigo irá fazer uma análise exploratória da base de dados mantida por Erik Voeten, professor da Georgetown University, disponível no Harvard Dataverse². O percentual de alinhamento está calculado na própria base. Iremos percorrer desde o governo de José Sarney até o último ano de Jair Bolsonaro, separadamente para cada país de interesse.

 

Estados Unidos

Gráfico 1- Convergência Brasil e Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU


Ao contrário do que o autor esperava, o governo Collor (1990-1992) apresentou declínio no alinhamento com os Estados Unidos em relação ao seu antecessor, José Sarney. Em contraste, os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC) foram marcados por alto alinhamento, caindo nos dois últimos anos do mandato deste.

A convergência diminuiu drasticamente depois de Lula assumir o governo (2003), atingindo o pico negativo de todo período analisado em 2007, porém voltando a subir a partir do ano seguinte. O mundo então passava pela crise econômica de 2008, e talvez a eleição de Barack Obama no mesmo ano tenha influenciado.

O governo Dilma I manteve a tendência de alta no começo, começando com 41% logo em 2011, porém observou uma forte queda a partir de 2013. Isto se deu provavelmente ao escândalo da espionagem, onde se descobriu que a própria presidenta havia sido grampeada pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, mais conhecida pela sigla em inglês, NSA.

O governo Temer assistiu o pico histórico de convergência, 50% em 2016, porém viu um leve declínio nos anos seguintes. A tendência geral do governo Bolsonaro foi de alta, chegando a 48% em 2022.

 

China 

Gráfico 2- Convergência Brasil e China na Assembleia Geral da ONU


A convergência das votações na ONU entre Brasil e China são significativamente maiores do que em relação aos Estados Unidos. Talvez isso se dê à similaridade de interesses em diversas matérias entre países do chamado terceiro mundo ou sul global, em oposição aos países ditos “ricos”. Porém, a ascensão chinesa como potência econômica e militar mundial parece ter um efeito reverso ao estudarmos o alinhamento brasileiro com ela.

A série histórica chinesa começa altíssima, tendo mais de 90% de alinhamento em todos os anos do governo Sarney e Collor. Porém, o Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989 pode ter afetado a relação entre os dois países. Já nos anos finais de Collor se observa um declínio, que piora a partir de Itamar Franco (1992), se mantendo por todo o governo FHC. O menor valor desse período foi 2002, com 81%.

Com os governos Lula I e II os valores voltam a aumentar levemente, ficando acima de 85% durante este período. Esta tendência se manteve com Dilma I, chegando a 93% em 2013.

Após Temer assumir (2016) há uma forte queda no alinhamento, quadro que se manteve no governo Bolsonaro (2018-2022). Este observou o menor valor do período analisado, 71% em 2022.

 

[1] Doutorando em Ciência Política pela UNIRIO, pesquisador do Grupo de Relações Internacionais e Sul Global (GRISUL).

[2] Disponível em: https://dataverse.harvard.edu/dataset.xhtml?persistentId=doi:10.7910/DVN/LEJUQZ