Dedicado à
Sophia, Inês, Joana, Olívia, evoé, jovens à vista!
Pablo Spinelli[1]
Pacelli Henrique
Silva Lopes[2]
É famosa a frase de
Guimarães Rosa. Algumas pessoas não morrem, ficam encantadas. Encantados
ficaram todos e todas que conheceram o filósofo, advogado, professor, biógrafo,
contista, cronista, militante Leandro Konder, que nos deixou há dez anos. Os
olhos da cor de anil, a dulcíssima forma de falar se coadunavam com uma mente
ativa, uma personalidade da cena política e intelectual carioca desde os idos
do CPC da UNE nos anos 1950-1960, um intelectual de profundas convicções e ao
mesmo tempo, autocrítica sempre permanente; professor com uma didática
cativante; pensador que fazia da facilitação ao entendimento ao leigo seu
melhor ofício. Caso Lukács, Benjamin, Habermas, Rimbaud, Kafka, Marx, Gramsci,
Fourier fossem inatingíveis em algum olimpo, Konder pegava a chama sagrada e as
dividia com os leigos mortais, como atesta sua bibliografia.
O Konder que aqui temos
em tela é de um pequeno, mas nada simplório livro. Introdução ao Fascismo foi editado pela primeira vez em 1977, em
pleno governo Geisel. Konder havia há poucos anos voltado do exílio da
Alemanha, onde ficou amigo do grande intelectual liberal José Guilherme
Merquior. E no Brasil havia um debate interno do PCB, partido ao qual militava
há tempos acerca da natureza da Ditadura Militar-Civil. Um grupo de
intelectuais do PCB defendia uma nova práxis e para isso se valeram do conceito
da “democracia como valor universal” em artigo famoso do também amigo Carlos
Nelson Coutinho que, com Konder, Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, dentre
outros, seriam chamados de “eurocomunistas”.
Voltemos ao livro Introdução ao Fascismo (já reeditado em
2009 e 2019). Konder é taxativo quanto ao ponto fulcral do conceito “fascismo”.
Ele é obrigatoriamente chauvinista e, não necessariamente, racista. A forma
fascista alemã ficou mais evidenciada pelo racismo, mas o denominador comum
fascista é esse: o radicalismo nacionalista de tom agressivo e beligerante.
Somente isso torna o livro necessário para os dias atuais tendo em vista os
movimentos extremistas na Europa e nos EUA a respeito de refugiados e
imigrantes.
Konder (antecipando
Hobsbawm) é claro ao pontuar que o Fascismo é filho do século XX. Após a
leitura de vários estudos dos mais variados matizes ideológicos sobre o
assunto, o autor aponta que a ideologia – liberal ou marxista – tornou nublado
o conceito. Tal qual o termo “populista” na contemporaneidade, chamar a outrem
de fascista pode servir de epíteto negativo, pejorativo, mas ao se vulgarizar o
termo o mesmo perde em conteúdo o seu significado. Se tudo é fascista, nada o
é.
Leandro sinaliza com
clareza e coragem para a época: nem todo reacionário é fascista. Nem toda
repressão é fascista. Dessa forma, o debate interno pecebista deveria ser claro
não só quanto à natureza do regime como quanto à política para derrubá-lo. O
autor como amante da história não poderia de deixar de provocar ao se remeter a
exemplos como Esparta, Nero ou Inquisição Espanhola e indagar: seriam estes
exemplos, exemplos fascistas?
O fascismo era do campo
da direita, mas não resumia e nem resume esse campo. É uma das suas
articulações, mas não a sua síntese. Eis a sutileza do autor como interventor
de seu tempo e ainda serve como legado para o nosso. Ao entender que o fascismo
é uma manifestação, mas não resume a direita, ele afirma que nessa vertente
política existem os que fazem “manobras, concessões, acordos, golpes de
audácia, formas de arregimentação das forças disponíveis que transcendem da
mera atitude doutrinária” (p. 28), logo, havia (e há) uma parcela do campo
conservador que era (e é) fundamental para a organização da Frente Democrática
- os mais novos podem se debruçar sobre quem foi Teotônio Vilela, político da
terra de Artur Lira e Renan Calheiros.
O fascismo, segundo
Konder, castra a política, emascula a teoria, inclusive do próprio
conservadorismo. Aqui lembramos que Churchill não foi aliado de Mussolini.
Atualmente, com a
proliferação de uma direita vulgar que nada lê, mas vocifera nas redes sociais,
“Introdução ao Fascismo” é um antídoto para criar anticorpos para os mais jovens.
Konder é honesto ao dizer que por falta de uma teoria – a qual é antípoda - o
fascismo instrumentalizou conceitos do seu maior adversário, o socialismo,
dentre eles alguns elaborados por Karl Marx, para seu pseudo constructo
teórico. O que aqui era revolucionário, ali passou a ser manietado e
disciplinado. A luta de classes, pedra angular do marxismo tornou-se a luta
entre “nação capitalista” e “nação proletária”; enquanto Marx tinha como
definição o fim do Estado, o fascismo vai criar uma “estatolatria”. O que era
conflito classista vira defesa dos interesses corporativos. A luta política é
sufocada pela luta econômica. E tudo isso girava em torno de um mito, segundo
Konder. O mito da pátria.
É risível e trágico que
a Itália, forjada a partir de uma colcha de retalhos, tenha tido uma grande
parcela da população envolvida na mistificação da pátria unida. Konder faz uma sutil
analogia silenciosa entre a formação do Estado e da Nação brasileiros com o
processo fascista. Aqui houve o tempo Saquarema, lá a derrota do liberalismo
resultou no fascismo.
Povo x Massa. Diferença
x Igualdade. Luta de Nações x Luta de Classes. Particularismo x Universalismo.
Esses foram os binômios construídos pela “teoria” fascista, cujo primeiro termo
de cada par era o defendido pelo regime.
Konder didaticamente
mostra ao leitor que o fascismo não instrumentalizou apenas os conceitos da
esquerda, como também se apropriou de um pensamento irracionalista e/ou
“aristocrático” (Le Bon, Goubineau, Maistre, Nietzche, Sorel) que distanciou a
direita das ações pedagógicas das massas por conta da demonização da política
que os seus intelectuais começaram a defender. Como diz Konder, “as massas
passaram a encontrar crescentes dificuldades para seguir os caminhos das
soluções coletivas; suas energias começaram a se dispersar pelos múltiplos
caminhos – socialmente ilusórios - das “soluções” individuais (p. 43, grifos do
autor).
Em suma, Konder nos
ajuda a compreender o fascismo pelas suas mais evidentes características: o
antissocialismo, o chauvinismo, o propagandismo para o consumo das massas, a
elegia do “moderno” combinado com a restauração perdida. E tudo isso financiado
pelo grande capital vindo de empresas como Ilva, Siemens, Krupp, os bancos. A
questão é: por que financiavam? Atualizando a “gramática” do nosso autor: eram
antiglobalistas que queriam extrair o máximo da força de trabalho. Criam no outro
mundo possível pós-Crise de 1929: o fim do laissez-faire sucedido pelo
protecionismo.
Konder foi preciso ao
definir o surgimento dos fascismos a partir de realidades objetivas e
históricas. Por isso é irônico com aqueles que tentaram (e tentam) traçar uma
genealogia a partir de Platão (como Karl Popper) ou do pensamento de Maquiavel.
Para os dias atuais esse livro abre um importante sendero. O casamento entre
política e religião gerou a Action Française, primogênito dos fascistas
europeus. Intolerância, fanatismo, satanização do outro foi o resultado dessa
infeliz união.
Por fim, Konder conclui
de forma pedagógica: “as circunstâncias exigem dos fascistas que eles sejam mais
prudentes (...). Pragmaticamente, adaptam-se às exigências dos nossos tempos.
Mas continuam a trabalhar, infatigavelmente (...)” (p.178). E seu desfecho é literário,
mundo querido de Konder, que lembra a lápide do comandante fascista de “A
colônia penal” de Kafka: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos
nomes por ora devem permanecer secretos, dedicaram-lhe esta pedra tumular.
Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos, ele voltará a
se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperais”.
Com brilhantismo
analítico, refinada erudição e texto envolvente, Leandro Konder nos alertou
sobre o ovo da serpente aqui e ali. Por isso, torna-se necessária a sua leitura
e a lembrança de Konder, sempre presente!
2 comentários:
Konder sempre a nos ajudar.
Texto fundamental para quem está embarcado na tarefa do Ensino de História. Parabéns!
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