sábado, 28 de dezembro de 2024

MEMÓRIAS - KONDER NÃO SE ENTREGOU, NÃO! Número 02


 A vitória da dialética

 

Dedicado à Sophia, Inês, Joana, Olívia, evoé, jovens à vista!

Pablo Spinelli[1]

Pacelli Henrique Silva Lopes[2]

 

É famosa a frase de Guimarães Rosa. Algumas pessoas não morrem, ficam encantadas. Encantados ficaram todos e todas que conheceram o filósofo, advogado, professor, biógrafo, contista, cronista, militante Leandro Konder, que nos deixou há dez anos. Os olhos da cor de anil, a dulcíssima forma de falar se coadunavam com uma mente ativa, uma personalidade da cena política e intelectual carioca desde os idos do CPC da UNE nos anos 1950-1960, um intelectual de profundas convicções e ao mesmo tempo, autocrítica sempre permanente; professor com uma didática cativante; pensador que fazia da facilitação ao entendimento ao leigo seu melhor ofício. Caso Lukács, Benjamin, Habermas, Rimbaud, Kafka, Marx, Gramsci, Fourier fossem inatingíveis em algum olimpo, Konder pegava a chama sagrada e as dividia com os leigos mortais, como atesta sua bibliografia.

O Konder que aqui temos em tela é de um pequeno, mas nada simplório livro. Introdução ao Fascismo foi editado pela primeira vez em 1977, em pleno governo Geisel. Konder havia há poucos anos voltado do exílio da Alemanha, onde ficou amigo do grande intelectual liberal José Guilherme Merquior. E no Brasil havia um debate interno do PCB, partido ao qual militava há tempos acerca da natureza da Ditadura Militar-Civil. Um grupo de intelectuais do PCB defendia uma nova práxis e para isso se valeram do conceito da “democracia como valor universal” em artigo famoso do também amigo Carlos Nelson Coutinho que, com Konder, Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, dentre outros, seriam chamados de “eurocomunistas”.

Voltemos ao livro Introdução ao Fascismo (já reeditado em 2009 e 2019). Konder é taxativo quanto ao ponto fulcral do conceito “fascismo”. Ele é obrigatoriamente chauvinista e, não necessariamente, racista. A forma fascista alemã ficou mais evidenciada pelo racismo, mas o denominador comum fascista é esse: o radicalismo nacionalista de tom agressivo e beligerante. Somente isso torna o livro necessário para os dias atuais tendo em vista os movimentos extremistas na Europa e nos EUA a respeito de refugiados e imigrantes.

Konder (antecipando Hobsbawm) é claro ao pontuar que o Fascismo é filho do século XX. Após a leitura de vários estudos dos mais variados matizes ideológicos sobre o assunto, o autor aponta que a ideologia – liberal ou marxista – tornou nublado o conceito. Tal qual o termo “populista” na contemporaneidade, chamar a outrem de fascista pode servir de epíteto negativo, pejorativo, mas ao se vulgarizar o termo o mesmo perde em conteúdo o seu significado. Se tudo é fascista, nada o é.

Leandro sinaliza com clareza e coragem para a época: nem todo reacionário é fascista. Nem toda repressão é fascista. Dessa forma, o debate interno pecebista deveria ser claro não só quanto à natureza do regime como quanto à política para derrubá-lo. O autor como amante da história não poderia de deixar de provocar ao se remeter a exemplos como Esparta, Nero ou Inquisição Espanhola e indagar: seriam estes exemplos, exemplos fascistas?

O fascismo era do campo da direita, mas não resumia e nem resume esse campo. É uma das suas articulações, mas não a sua síntese. Eis a sutileza do autor como interventor de seu tempo e ainda serve como legado para o nosso. Ao entender que o fascismo é uma manifestação, mas não resume a direita, ele afirma que nessa vertente política existem os que fazem “manobras, concessões, acordos, golpes de audácia, formas de arregimentação das forças disponíveis que transcendem da mera atitude doutrinária” (p. 28), logo, havia (e há) uma parcela do campo conservador que era (e é) fundamental para a organização da Frente Democrática - os mais novos podem se debruçar sobre quem foi Teotônio Vilela, político da terra de Artur Lira e Renan Calheiros.

O fascismo, segundo Konder, castra a política, emascula a teoria, inclusive do próprio conservadorismo. Aqui lembramos que Churchill não foi aliado de Mussolini.


Atualmente, com a proliferação de uma direita vulgar que nada lê, mas vocifera nas redes sociais, “Introdução ao Fascismo” é um antídoto para criar anticorpos para os mais jovens. Konder é honesto ao dizer que por falta de uma teoria – a qual é antípoda - o fascismo instrumentalizou conceitos do seu maior adversário, o socialismo, dentre eles alguns elaborados por Karl Marx, para seu pseudo constructo teórico. O que aqui era revolucionário, ali passou a ser manietado e disciplinado. A luta de classes, pedra angular do marxismo tornou-se a luta entre “nação capitalista” e “nação proletária”; enquanto Marx tinha como definição o fim do Estado, o fascismo vai criar uma “estatolatria”. O que era conflito classista vira defesa dos interesses corporativos. A luta política é sufocada pela luta econômica. E tudo isso girava em torno de um mito, segundo Konder. O mito da pátria.

É risível e trágico que a Itália, forjada a partir de uma colcha de retalhos, tenha tido uma grande parcela da população envolvida na mistificação da pátria unida. Konder faz uma sutil analogia silenciosa entre a formação do Estado e da Nação brasileiros com o processo fascista. Aqui houve o tempo Saquarema, lá a derrota do liberalismo resultou no fascismo.

Povo x Massa. Diferença x Igualdade. Luta de Nações x Luta de Classes. Particularismo x Universalismo. Esses foram os binômios construídos pela “teoria” fascista, cujo primeiro termo de cada par era o defendido pelo regime.

Konder didaticamente mostra ao leitor que o fascismo não instrumentalizou apenas os conceitos da esquerda, como também se apropriou de um pensamento irracionalista e/ou “aristocrático” (Le Bon, Goubineau, Maistre, Nietzche, Sorel) que distanciou a direita das ações pedagógicas das massas por conta da demonização da política que os seus intelectuais começaram a defender. Como diz Konder, “as massas passaram a encontrar crescentes dificuldades para seguir os caminhos das soluções coletivas; suas energias começaram a se dispersar pelos múltiplos caminhos – socialmente ilusórios - das “soluções” individuais (p. 43, grifos do autor).

Em suma, Konder nos ajuda a compreender o fascismo pelas suas mais evidentes características: o antissocialismo, o chauvinismo, o propagandismo para o consumo das massas, a elegia do “moderno” combinado com a restauração perdida. E tudo isso financiado pelo grande capital vindo de empresas como Ilva, Siemens, Krupp, os bancos. A questão é: por que financiavam? Atualizando a “gramática” do nosso autor: eram antiglobalistas que queriam extrair o máximo da força de trabalho. Criam no outro mundo possível pós-Crise de 1929: o fim do laissez-faire sucedido pelo protecionismo.

Konder foi preciso ao definir o surgimento dos fascismos a partir de realidades objetivas e históricas. Por isso é irônico com aqueles que tentaram (e tentam) traçar uma genealogia a partir de Platão (como Karl Popper) ou do pensamento de Maquiavel. Para os dias atuais esse livro abre um importante sendero. O casamento entre política e religião gerou a Action Française, primogênito dos fascistas europeus. Intolerância, fanatismo, satanização do outro foi o resultado dessa infeliz união.

Por fim, Konder conclui de forma pedagógica: “as circunstâncias exigem dos fascistas que eles sejam mais prudentes (...). Pragmaticamente, adaptam-se às exigências dos nossos tempos. Mas continuam a trabalhar, infatigavelmente (...)” (p.178). E seu desfecho é literário, mundo querido de Konder, que lembra a lápide do comandante fascista de “A colônia penal” de Kafka: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos, dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos, ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperais”.

Com brilhantismo analítico, refinada erudição e texto envolvente, Leandro Konder nos alertou sobre o ovo da serpente aqui e ali. Por isso, torna-se necessária a sua leitura e a lembrança de Konder, sempre presente!

 



[1] Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de Saquarema e do Rio de Janeiro.

[2] Gestor da Teia de Saberes.

2 comentários:

Anônimo disse...

Konder sempre a nos ajudar.

Anônimo disse...

Texto fundamental para quem está embarcado na tarefa do Ensino de História. Parabéns!