sexta-feira, 28 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 043 - DESAFIO DE FAZER POLÍTICA NA ECONOMIA

Inflação na Fronteira

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


No Jornal Hoje do último sábado (22/06/2024) recordei a leitura de um conto da escritora argentina Samanta Schweblin. O título apesar de nada convidativo, “Debaixo da terra” é muito bom. O primeiro parágrafo, curto, introduz-nos sutilmente num clima de mistério: um viajante entra num bar de beira de estrada, isolado e solitário, e dirige-se ao barman. A atmosfera, criada nessas poucas linhas, é sugestivo. O viajante pede uma cerveja. Aparece então a primeira linha do diálogo, pela boca do barman: “São cinco pesos”, disse ele.

Cinco pesos? Inevitavelmente, volto a matéria do jornalista Marcos Landim (https://globoplay.globo.com/v/12699720/) e me pergunto: que cerveja pode valer cinco pesos? Em que ano essa história foi escrita? Sua publicação no seu livro Pássaros na boca e Sete casas vazias: Contos reunidos (Fósforo, São Paulo, 2022) se deu em 2009 e podemos pensar nesse ano, e se o valor fosse esse, e em tudo que ocasionou o aumento da cerveja desde então... E volto a ler o conto com aquele pensamento: a magia da ficção, aquele sonho lúcido de que falava o Nobel de Literatura de 1982 e jornalista colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), foi contaminado e deve ser bem compreendido. Surgiu um vírus sutil: o problema da inflação, que perturba tudo e do qual nem as/os literatas/os nem os leitores estão imunes.

Como a literatura conseguirá imaginar o fluxo de argentinos de Puerto Esperanza e Wanda vindo fazer suas compras de uma cesta básica na cidade brasileira de Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná, sem que isso soe como um ruido ao longo do tempo. Imagino-os atualizando os números a cada ida aos mercados argentinos, considerando a ideia desesperadora de dolarizar seus ganhos, enquanto existe a acolhida brasileira com nossa economia equilibrada a 30 anos.

Porque a literatura argentina, tem tido o espectro da inflação entre outros personagens e/ou pano de fundo do universo econômico, como também se viu no filme de Sebastián Borensztein, A Odisseia dos Tontos (2019), que é fruto de um roteiro adaptado do livro do Eduardo Sacheri, La noche de la usina (2016). Nessa obra inclusive tem o cálculo da mala em que o criminoso do sistema bancário transporta o fruto do seu desfalque dos correntistas que depende não só do valor dele, mas também do valor máximo das notas. Não se pode entregar milhões de pesos num envelope, e daí a mala. Dito de outra forma: você não pode subornar na Argentina e ser discreto. Todas essas questões que afetam a verossimilhança da cena literária e cinematográfica complicam a vida da narrativa. Esse tremendo drama do corralito desgraçou a vida dos giles (os honestos) que tentaram salvar a honra dos seus é quase incompreensível para nós hoje.

A inflação, em todo e qualquer hipótese, sendo um problema grave no panorama literário argentino, tem cada vez mais e piores consequências, que para os fronteiriços conosco tem podido receber o nosso abraço e acolhida. Diversamente, os nãos circunvizinhos vivem a pressão decorrente da inflação com uma psique próxima de O Jogador, de Dostoiévski, onde quantias são mencionadas em todas as páginas e seus valores relativos são muito relevantes para a trama. Ali os personagens apostam, ganham e perdem, pedem emprestados... Fala-se constantemente de dinheiro. A literatura argentina se atrevera a fazer algo assim? São temas complexos que tem implicado inúmeros esclarecimentos e entendimentos. Mas novos também surgem graças à inflação: A Uruguaia (Todavia, São Paulo, 2018), de Pedro Mairal, narra uma trama que tem a ver com câmbio, restrições e uma movimentada viagem ao Uruguai para sacar dólares. A questão, nesta estória, aponta para os leitores: quantos serão capazes de compreender plenamente narrativas como essa?

Com essas ideias e os livros argentinos, podemos voltar a reportagem do Marcos Landim e perceber os semblantes das argentinas e seu alívio em poder contar com uma atmosfera calma para as suas necessárias compras, sem a sombra dos 276% de inflação como informou a pouco o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República Argentina (INDEC).

Que nossos vizinhos encontrem o quanto antes a simetria econômica e saiam desse pavoroso mundo de exageros horrendos.

 

28 de junho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 042 - DESAFIO DA LEITURA

Novo tempo, novas dinâmicas

 

Marcio Junior[1]

 

O contexto econômico global enfrenta um momento adverso e de profundas mudanças, aceleradas pela pandemia de COVID-19. Com a desaceleração econômica global consequente da Emergência de Saúde Pública e as tentativas feitas pelas economias globais de caminharem rumo à recuperação, foi iniciada a absorção e formulação de respostas aos fatores recessivos de curto prazo que a pandemia causou.

Estes fatores de curto prazo tiveram consequências diretamente no mundo do trabalho, sobretudo no emprego juvenil, pois mesmo com a detecção de lentas recuperações no mercado de trabalho em alguns setores, estas estão ocorrendo de forma desigual, com baixa presença ou até mesmo ausência dos mais jovens, que são a faixa etária cuja maior dificuldade de regresso é sintomática da ocorrência de mudanças diferentes das causadas pela pandemia, ou seja, estruturais e de longo prazo.

Estas mudanças, apesar de aceleradas pela pandemia, tiveram início anteriormente a ela. Caracterizadas por fatores como o avanço tecnológico e seus consequentes impactos, pelas mudanças climáticas e pela queda de produtividade associadas ao aumento de formas temporárias de contratação e diminuição de horas semanais trabalhadas, demonstram que as dificuldades relativas ao trabalho (principalmente juvenil) são mais profundas e complexas. As alterações nas estruturas do trabalho no mundo e seus efeitos podem estar ainda no seu início; mas já se demonstram caracterizadas, por conta do avanço da tecnologia digital e da conexão permanente que possibilita a troca progressivamente mais veloz de informações, pelo aumento do ritmo de mudanças em comparação ao passado, exigindo de quem exerce diversos tipos de atividades profissionais um aprendizado constante e novas formações ao longo de toda a vida, desaprendendo habilidades que podem ficar defasadas em curto período de tempo e aprendendo novas.

Este quadro exige, decerto, educação que dê as gerações condições de adaptabilidade e aprendizado constante e, frente a ele, existem dificuldades operativas de repassar conhecimentos básicos necessários para os jovens avançarem efetivamente na vida escolar e transicionarem dela para esta nova vida profissional. Segundo os resultados do Progress in International Reading Literacy Study – PIRLS (Estudo Internacional de Progresso em Leitura), realizada em 2021, cerca de 38,4% dos estudantes do 4º ano do Ensino Fundamental não conseguiam localizar, recuperar e reproduzir informações declaradas explicitamente em textos informativos predominantemente fáceis, o que compromete o aprendizado que virá a seguir, inclusive em outras disciplinas. Dos 57 países participantes, o desempenho do Brasil na escala ficou acima somente do Irã, Jordânia, Egito, Marrocos e África do Sul. A habilidade de ler é decisiva, pois a escrita e a consequente capacidade de compreensão são e será uma das principais fontes pelas quais o indivíduo pode fazer uso de sua capacidade cognitiva para adquirir novos conhecimentos ao longo da vida e não só, e sua deficiência significa uma situação de vulnerabilidade frente aos desafios contemporâneos.


As relações entre as gerações, no âmbito familiar, complexificam o quadro e, se avaliadas, demonstram que ajudam a explicar parte das dificuldades educacionais observadas. Isso significa que a educação das gerações anteriores e a participação delas na formação das gerações posteriores tem um peso significativo, demonstrando que as dificuldades educacionais de uma determinada geração não são explicadas somente por ela mesma. Segundo a mesma pesquisa, cerca de 64% dos alunos da mesma série escolar mencionada anteriormente tinham, em casa, menos de 25 livros, menos de 25 livros infantis, nenhum dos pais tinha escolaridade superior ao ensino médio e não possuíam pequena empresa ou trabalhavam em cargo administrativo ou profissional. Nesse sentido, podemos entender que é improvável, nos domicílios deste conjunto de estudantes, que havia o hábito de ler e que ele fez parte da socialização domiciliar. Mesmo assim, está na percepção dos pais o impacto da pandemia sobre o progresso da aprendizagem: 97% dos estudantes ficaram em casa e, desta proporção, a percepção dos pais foi de que 49% dos estudantes foram um pouco afetados adversamente por ter ficado em casa durante a Emergência, enquanto 37% perceberam o estudante muito afetado.

As consequências podem ser inúmeras e imprevisíveis, mas dentre as possibilidades mais prováveis e já visíveis estão o escoamento de grande número de pessoas das novas gerações, mas não só os jovens, para a informalidade e vulnerabilidade social, além da expressiva perda de capital humano. Em 2023 o Brasil contabilizou cerca de 9 milhões e 600 mil jovens de 15 a 29 anos que não estavam ocupados e não frequentam escola, nem cursos pré-vestibular, técnico de nível médio, normal (magistério) ou qualificação profissional. Somente os jovens de 18 a 24 anos concentram 5 milhões e 300 mil pessoas nesta condição, representando mais de 55% dos jovens de 15 a 29 anos. Mesmo assim, trabalhar com esses dados podem apresentar problemas operacionais: enquanto as mudanças na estrutura do sistema produtivo já levam ao escoamento da força de trabalho para a informalidade, esta não é captada, pois é possível atender a diversos parâmetros que, em tese, “formalizam” o trabalhador sem ele estar nesta condição, como, por exemplo, um pedreiro ou camelô que, ao obterem status de Microempreendedor Individual, possuem CNPJ e contribuem com a Previdência Social e, consequentemente, não são contabilizados estatisticamente como informais, o que dificulta em muito a formulação de diagnósticos e políticas.

Frente às questões cotidianas como greves em nada relacionadas com a educação e com balanço negativo em todos os sentidos (principalmente para os jovens), a sua reconstrução no mundo se mostra um desafio complexo e demorado, que demandará esforço e desenvoltura dos intelectuais comprometidos com ela. Ao longo deste necessário tempo para tal feito, eles ainda existirão?

 



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional da Cedae Saúde.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 041 - FRENTE DEMOCRÁTICA SEM REMAKE

Outros olhos (e armadilhas)

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Agora, passados um mês desde a coletiva em Porto Alegre conduzida pela Presidência da República, talvez seja possível referir-se a ela com um olhar mais sereno do que a qualquer reação mais sanguínea que surgem na cena imediata, e que se espalhou por minutos, horas e até dias depois do que se falou e viu.

Há reações que são dadas como certas, são aqueles que, qualquer que seja a manifestação da Presidência, o acharão com uma magnífica oratória, cheia de espírito de Estado, com equilíbrios justos e precisos, que refletem uma ação de governo impecável e um esplendor na bem compreendida alusão cinematográfica do saudoso Ettore Scola (1931-2016). Outros acharão que é o pior que já ouviram desequilibrado, visando agradar aos seus, míope, face real do seu mau governo e reaproxima o país da catástrofe.

São os gladiadores das corridas de bigas da política (de volta as telas em novembro próximo novamente na lente de Ridley Scott) que não gostam de sutilezas e que preparam as disputas eleitorais que se aproximam nesta parte final do segundo ano do quadriênio governamental.

É claro que há pessoas mais ponderadas no mundo político que não entrarão nesse jogo, especialmente aquelas que não estão localizadas na fantasia da polarização e não caminham por este mundo como portadoras de uma verdade objetiva, permitindo assim que a democracia funcione com os seus dois pés, com adversários (e não inimigos) e buscando os consensos possíveis.

Mas em qualquer hipótese não há necessidade de se alarmar, pois o que é grave acontece em países em que aqueles que não concordam podem estar colocando a sua vida em risco, por vezes de modo letal como aconteceu no Japão em 2022 e a pouco (quase) na Eslováquia.

Aproveitando então o fato de vivermos numa sociedade regida por regras democráticas, com poderes de Estado autônomos, com um sistema de justiça com controles que procuram prevenir o abuso e o desamparo do cidadão, é aconselhável considerar as palavras de Porto Alegre com uma perspectiva secular, ou seja, fora de uma doutrina fechada de apoio ou rejeição.

Assim, as Mensagens Presidenciais são muito diferentes de acordo com os seus governos e seus integrantes e idem as circunstâncias históricas que atravessam. Quando se trata do relato do que foi realizado, é quase impossível evitar uma certa autocomplacência, uma ênfase exagerada na fortuna e uma minimização da virtù, chegando mesmo, em algumas ocasiões, a ser esquecida ou mencionada de forma tão indireta que o permite passar nessa fala da forma mais rápida possível, mas tudo isso é humano, demasiado humano.

Páginas e mais páginas serão escritas sobre tudo isso. Mas delas nasceram várias propostas viáveis ​​e necessárias sobre as questões onde há consenso que requerem ação, seja em relação à seguridade dos cidadãos, às soluções de infraestruturas e habitação, à educação e à saúde que devem ser apreciadas porque podem levar a acordos e ao progresso, mesmo que sejam modestos ou apenas dão os primeiros passos.

Mas é bom destacar o que há de realmente significativo na coletiva de Porto Alegre. Na sua forma e substância havia uma notável oportunidade da mudança de tom. Quanto longe estamos do olhar crítico sobre os descaminhos do quadriênio de 2019 a 2022? Quanto longe estamos da Frente Democrática que oportunizou a vitória na eleição de 2022?  Quanto longe estamos da resposta democrática e republicana dada ao 8 de janeiro de 2023 que desejou nos colocar numa confusão institucional?


Não é pouca coisa na história de um país que este seja capaz de olhar para o abismo em sua beira e regressar à razão através de práticas democráticas e republicanas. Claro que com perdas, com estagnações que aos poucos vão sendo recuperadas, embora ainda estejamos longe de regressar ao caminho daquele desenvolvimento socialmente inclusivo para o qual marchamos nos primeiros vinte anos do regresso à democracia.

Não é justo que não valorizemos este avanço, esta possibilidade de mudança de tom, em nome dos erros cometidos no passado recente.

Há mérito em todos os atores que contribuíram na coletiva de Porto Alegre para esta desejada mudança e, claro, também para a mudança de posições dos que dirigem o governo e que avançaram na compreensão do que significa conduzir um Estado democrático e republicano.

É melhor para aqueles que tenham uma vida política mais longeva pela frente e sejam leais ao rumo do progresso democrático e republicano do que a qualquer nostalgia estragada no percurso da história.

Esta visão secular da coletiva de Porto Alegre talvez coincida com aqueles que colocam a coexistência democrática e a justiça social no coração das suas aspirações e contribuam para pensar sobre como reconstruir um ethos político em que a competição não anule o progresso dos acordos para alcançar um país próspero. O Brasil da equidade, do progresso e não de brigas permanentes de extremos da política, seja da direita ou da esquerda, que só tem sido um fator de infortúnio para o Brasil e o mundo.

 

9 de junho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

terça-feira, 4 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 040 - OS SAQUEREMAS NO BRASIL

Paixão pelo Ensino da História: os 80 anos de Ilmar Rohloff de Mattos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os erros conceituais subjacentes à discussão política atual são péssimos conselheiros quando se tenta caminhos de racionalidade democrática e republicana. Muitos equívocos proliferam em todos os grupos, mas a confusão entre o que significa ser “liberal” e/ou “conservador”, na filosofia política e na práxis histórica, tornou-se um obstáculo importante ao necessário entendimento entre as diferentes correntes.

Parte do problema vem do fato de que muitas vezes parecem ser usados ​​como epítetos e não como conceitos. O Nobel de Literatura de 2010 o peruano Mario Vargas Llosa escreveu que o seu primeiro encontro com estas categorias o levou a acreditar que ser “liberal” era ser libertino; e “conservador” deveria ser “cúmplice de toda a exploração e injustiças de que os pobres do mundo são vítimas”.

São desses equívocos que fazem de figuras como Trump, Bukele e/ou Bolsonaro serem definidos como “conservadores”, e quando pensamos que pensadores como Burke, Tocqueville, Oakeshott e Aron e os nossos próprios Saquaremas, rolariam em seus túmulos e rejeitariam vigorosamente qualquer ancestralidade, no que diz respeito não apenas aos feitos promovidos por esses personagens, mas, ainda mais, no que diz respeito às suas práticas que vilipendiam a política. Porque se há algo que caracteriza o conservadorismo é a moderação e a prudência, que são a conclusão lógica das suas crenças mais profundas.

Como disse certa vez Michael Oakeshott (1901-1990), o conservadorismo não é tanto uma doutrina, mas uma atitude. “Ser conservador significa estar inclinado a pensar e a se comportar de determinada maneira; é preferir certos tipos de comportamento e certas condições das circunstâncias humanas a outros; Eles se resumem na propensão a usar e aproveitar o que está disponível em vez de querer ou procurar outra coisa; deleitar-se com o presente e não com o passado ou o futuro; É ter gratidão adequada pelo que está disponível e, consequentemente, reconhecimento da herança do passado; mas não há idolatria pelo que aconteceu ou passou.”

Ser conservador não exclui a mudança, mas refuta “sacrificar as gerações presentes pelo bem final da humanidade futura”. São céticos em relação aos direitos abstratos; acreditam que as instituições são geradas ao longo do tempo, pela história e pela experiência, e não pela perfeição teórica, e procura um equilíbrio entre a liberdade e a coesão social que advém de uma sociedade civil que faz a mediação entre o indivíduo e o Estado.

O pensamento conservador nasceu com um não ao terror causado na Revolução Francesa; pela violência que gerou e pelas mudanças e transformações abruptas que promoveu em todas as expressões dos acontecimentos.

Entre nós o professor (e nosso orientador) Ilmar Rohloff de Mattos, o recém octogenário, mostrou exemplarmente de que entre nós brasileiros o conservadorismo surgiu numa versão peculiar, precisamente porque nunca tenhamos experimentado esse pathos, ainda que aqui, qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la. E é assim que o eixo divisor entre liberais (Luzias) e conservadores (Saquaremas) brasileiros no século XIX refere-se quase sempre ao papel que uma religião poderia desempenhar numa república cada vez mais secularizada.


Nesse sentido, como mostrou no seu magnum opus O Tempo Saquarema: A formação do estado imperial, nunca existiu uma dicotomia clara entre eles nas suas raízes históricas. Assim, por exemplo, em termos econômicos, pensadores e políticos conservadores, como Visconde do Uruguai e Eusébio de Queiroz, foram os grandes defensores da liberdade econômica; foram também os líderes conservadores que defenderam as liberdades individuais e os direitos liberais clássicos, como a liberdade de associação, a liberdade educacional e o direito de reunião; e foram também os promotores da “questão social”.

O Tempo Saquarema, publicado em 1987 e escrito por um professor da educação básica praticamente desconhecido fora dos círculos restritos da velha e da nova intelectualidade, foi instantaneamente reconhecido como um clássico e se tornou o mais influente livro de história do Império. Essa obra combinou paixão e intelecto, os dons do professor e do analista. Nenhuma de suas obras poderia ter sido escrito por outra pessoa.

Hoje a advertência deixada pelo oitentão no final de O Tempo Saquarema é preciso saber recepcionar: passaram-se muitas décadas, muita coisa nova aconteceu, a situação atual é bastante diferente da do século que viu surgir os Saquaremas mas deixar subverter o conservadorismo em reacionarismo implica que nós não joguemos o bebê fora junto com a água do banho. Do contrário poderíamos perguntar se uma conjunção de “neoliberalismo reacionário” funcionaria como uma base sólida para unir certa direita et caterva?

Se a resposta for afirmativa, talvez seja oportuno recordar outra recomendação do conservador irlandês Edmund Burke (1729-1797): “Quando os homens maus se unem, os homens bons devem associar-se; Caso contrário, eles cairão um por um, sendo sacrificados impiedosamente numa luta desprezível.”

 

2 de junho de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

domingo, 2 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 039 - ELEIÇÕES MUNICIPAIS

O Fantasma de Hobbes ronda as eleições municipais

Vagner Gomes de Souza[1]

“(...)Não entendo aqui por COSTUMES a decência da conduta, como, por exemplo, a maneira pela qual um homem deve saudar outro, ou como deve lavar a boca, ou limpa os dentes diante dos outros, e diversos aspectos da pequena moral. Entendo, isto sim, aquelas qualidades dos homens que dizem respeito à vida comum em paz e unidade. Para este fim, devemos considerar que a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito. Pois não existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais. Tampouco há mais vida no homem cujos desejos chegam ao fim do que naquele cujos sentidos e imaginação estão paralisados. A felicidade é uma contínua marcha do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo. A causa disto é que a finalidade do desejo do homem não consiste gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos do seu desejo futuro. Portanto, as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem apenas para conseguir, mas também para garantir uma vida satisfeita, e diferem apenas quanto ao modo como surgem, em parte da diversidade das paixões em pessoas diversas, e em parte das diferenças no conhecimento e opinião que cada um tem das causas que produzem os efeitos desejados.”

HOBBES, T. Leviatã: a matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 85.

Em pouco tempo a dinâmica do Governo Federal se esqueceu das forças democráticas aliadas numa Frente e que o elegeu. Os efeitos do 8/01 deu uma sobrevida a essa linha adotada mais pelas circunstâncias do que pela verdadeira refundação de uma cultura política à esquerda no nosso mosaico de liberalismo. Propomos que estamos num mandato presidencial que enfrenta as contradições da do liberalismo diante das pressões das forças conservadoras e reacionárias que se reagruparam as vésperas das eleições municipais.

O 8/01 apresentou a sociedade brasileira os limites da tolerância e da liberdade de expressão. Havia a oportunidade de que uma Frente Democrática agregada de um conservadorismo fiador dos marcos democráticos pudessem isolar as forças retrógradas que foram a vanguarda da composição do governo anterior. Paulo Guedes tinha liberdade para tocar diante do Congresso Nacional sua pauta liberalizante. Uma liberdade que o atual Ministro da Fazenda se sente coagido a não dialogar, pois, apesar do sucesso a ele atribuído pela aprovação da PEC da Reforma Tributária, os novos sujeitos do corporativismo da sociedade se aliaram aos grupos entranhados na máquina administrativa para o “esvaziar” politicamente.

Se o ex-candidato as eleições presidenciais de 2018 pelo partido majoritário do Governo sofre resistência, como pensariam as lideranças parlamentares dos grupos políticos recém-admitidos a coalização governamental? Para além da nova percepção sobre os impactos políticos das emendas parlamentares impositivas, há ainda espaço para a Grande Política que permita um entendimento entre as forças democráticas liberais e conservadoras. Todavia, a lógica da sobrevivência de personalidades rejeitadas pela soberania do voto tem ficado acima do compromisso democrático através da unidade.

Diante disso, a percepção de uma ameaça no futuro tanto no mundo quanto em nosso país faz com que a sociedade atomizada em busca de alternativas individuais se identifique com alternativas escatológicas religiosas ou até seculares aonde o conservadorismo ganha mais força. Portanto, o medo sobre a possibilidade de um volta ao estado de natureza da humanidade reabilita o pensamento político de Hobbes diante do debate da segurança pública. Os valores universalistas dos Direitos Humanos são muito contestados na sociedade brasileira. A intolerância social com os apenados chegou ao um nível de um grande consenso na aprovação da “Lei das Saidinhas”, porém também percebemos a ideia da penalização de crianças e adolescentes em casos de manifestações de intolerância racial ou religiosa. A composição “Haiti” seria hoje “cancelada” nos dois pólos da nossa imaginária polarização política.


Na verdade, o fantasma de Hobbes encanta os conservadores, porém é um alívio para as forças liberais que comungam de ideias contratualistas que atendam as demandas de uma nova identidade na sociedade. Então, as forças retrógradas se manifestam nas movimentações dessas “placas tectônicas” nas redes sociais gerando erupções vulcânicas de uma opinião pública sem direção da política republicana e democrática. Os ventos do “iliberalismo” atingiram em cheio as movimentações das candidaturas aos legislativos municipais ao se manifestarem sobre um tema muito mais apropriado ao legislativo estadual, ou seja, o tema da segurança pública.

A percepção de uma insegurança é constantemente alimentada pela percepção do desmanche da seguridade social. Um Estado de Bem Estar Social se desmorona aos olhos vistos dos mais idosos que não podem mais garantir com os gastos no núcleo familiar polivalente. O medo sobre esse futuro se alia as ameaças sobre o consumo de drogas que desmancha a tranquilidade das “famílias brasileiras”. Assim, a crítica as forças do poder de “segurança paralela” nas periferias seriam mais bem acolhido no compromisso ao debate sobre as drogas. Entretanto, esse é outro “vespeiro” em que as interpretações do liberalismo pró-liberalização ou descriminalização do uso e porte de drogas não se faz do escopo da Frente Democrática que dialogue com os conservadores.

A presença do chamado “Estado Paralelo” em municípios de médio porte e pequeno porte em variados estados da federação indica que a municipalização do debate da segurança pública será mais forte que a simplificação de uma polarização. Diante disso, o aprendizado do Ministério da Segurança Pública no Governo do MDB sob a gestão de um ex-comunista seria uma sugestão para que tenhamos referências para enfrentar essa tendência eleitoral que poderá definir as eleições municipais. 



[1] Doutorando no PPGCP-UNIRIO.




sábado, 11 de maio de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 038 - POLÍTICAS PÚBLICAS

Tania Rego - Agência Brasil

Democracia brasileira e diversidade identitária

Julio Lopes[1]

O que impediu que Ministérios orientados para questões de identidades coletivas vulneráveis no Brasil, tais quais os de Cidadania, Mulher, Igualdade Racial, Povos Originários e Cultura, zelassem pelo atendimento direto de idosos em serviços digitais públicos e privados, monitorassem pela paridade feminina nos concursos públicos em geral (incluindo os estaduais e mesmo municipais), regulamentassem as comissões de heteroidentificação racial para cotas populacionais já previstas (como as agora tradicionais universitárias federais), articulassem escoamento de produtos indígenas em feiras livres e de livros (especialmente com temáticas da negritude) para bibliotecas sociais já detectadas em favelas brasileiras ou sequer tenham incentivado à população em geral e por rede televisiva nacional, para a participação eleitoral (facultativa) na escolha dos conselhos tutelares municipais da infância e adolescência? Ou mesmo contribuíssem em destacar, favoravelmente, produtos e serviços de autoestima identitária (como salões de beleza especializados em tranças africanas de cabelos, por exemplo) na reforma tributária que, afinal, é o mote político geral do atual governo?

Foi o predomínio de um viés estreito sobre as pautas identitárias, fundamentais para que a brasilidade se assuma em toda sua diversidade nacional, porque ainda não percebeu que a reversão da exclusão social que caracteriza as identidades coletivas negativamente discriminadas no Brasil implica reverter, por sua vez, as relações sociais excludentes nas quais é cotidianamente produzida. Contrariá-las exige políticas públicas e sociais pela sua reintegração positiva às relações sociais renitentemente seletivas da branquitude, masculinidade, meia-idade, heterossexualidade, etc. É o mesmo viés que subestimou quão importante fora o movimento abolicionista, como ampla confluência nacional que não se limitou à negritude - aliando pretos como Luiz Gama a brancos como Rui Barbosa - com o erro político de desprezar o 13 de maio (dia da abolição legal da escravidão negreira pelo Brasil), como meramente devido à Princesa que decretou seu fim, em vez de ressignificar a data como vitória do abolicionismo brasileiro.

À maior magnitude ministerial, já adotada por qualquer governo federal no Brasil, de sua diversidade identitária pela Presidência da República, ainda precisa lhe corresponder um viés amplo e congruente com a amplitude política governamental da conciliação democrática que orienta o atual Executivo. Que conceba políticas públicas integrativas das identidades coletivas vulneráveis, na sociedade brasileira, garantindo lugares de escuta aos seus lugares de fala e sabendo que o reconhecimento de sua dignidade identitária consiste em relações sociais inclusivas nas quais outrem é integrado, mas sem desintegrar identidade alguma. Pois qualquer uma delas é relacional e, portanto, relativa a outra, cabendo às políticas públicas garantir sua diversidade recíproca.

Neste sentido, exceções positivas governamentais para identidades coletivas vulneráveis, nas quais elas não têm sido estreitamente concebidas em políticas públicas, foi o programa “pé-de-meia” para estudantes concluírem o ensino médio em escolas públicas e o recente agenciamento programado de etnoturismo indígena na Amazônia. A primeira sendo uma política social integrativa da adolescência pobre brasileira e a segunda de fomento para atividades econômicas turísticas que integrariam tribos nativas amazônicas a mercados nacional e internacional, concomitantemente ao seu fortalecimento identitário. Ambas são iniciativas exemplares do viés integrativo que políticas sociais identitárias devem assumir e o empreendimento indígena mencionado já devia inspirar até programas similares de assistência tecno-étnica para quilombos, lhes fomentando visitas turísticas no âmbito da auto-organização de suas festividades rituais.

Embora todas as demais identidades coletivas historicamente vulneráveis continuem necessitando de afirmação social, as das pessoas LGBTQIAPN+ ainda permanecem as menos promovidas no Brasil. Ao ponto de sua discriminação negativa ter problematizado até seu recenseamento nacional completo, durante a última coleta de dados pelo IBGE, através de ações judiciais intolerantes visando excluir as identidades transgêneros e as orientações não-heterossexuais de sexualidade pelas entrevistas. Cuja integração nacional exige, imediatamente e juntamente com o Conselho Nacional de Justiça, um maior monitoramento dos cartórios e incrementar a facilitação de alguns atos civis, específicos e fundamentais até para inserção nos mercados, como a formalização de uniões conjugais, pelas identidades brasileiras LGBTQIAPN+.

Por outro lado, apesar de sua vulnerabilidade individual exigir contínuas adaptações de equipamentos públicos e privados, as identidades coletivas do segmento populacional que porta deficiências individuais (físicas e/ou mentais) foram as de maior avanço, legal e institucional, pela profusão de legislações, especialmente locais, de discriminações positivas compensatórias. Dentre as quais podem ser destacados os Centros de Assistência Psicossocial, cujas atividades por pacientes em sofrimento psíquico já foram até objeto durante programa governamental carnavalesco (“Loucos pela diversidade”), então gerido pelo saudoso Sergio Mamberti dentro do MinC.

Enquanto a autonegação nacional da diversidade social brasileira tem suas tradições machistas, racistas, etaristas, heteronormativas e capacitistas desprezam participações femininas, negras, idosas, homossexuais, juvenis, transgêneros ou portadoras de deficiências individuais, as políticas públicas são mais eficientes quando visam reintegrações sociais delas que sejam inclusivas da pluralidade social e não adstritas somente à identidade coletiva, atualmente e negativamente discriminada. Como os desfiles LGBTQIAPN+ e os feitos durante o Carnaval brasileiro interpelam identidades distintas, tais quais as heterossexuais e brancas, até para aprenderem quanto uma convivência integralmente diversa é mesmo benéfica de todes.



[1] Foi consultor do zoneamento econômico-ecológico de Rondônia, é Pesquisador da Casa de Rui Barbosa e autor de “Brasil: a nação carnavalesca”


domingo, 5 de maio de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 037 - MAIS UM AVISO SOBRE A TRAGÉDIA QUE SE APROXIMA...

Preferência pela Esperança


Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


Tal como temíamos, o debate político segue um caminho de confusão onde abundam brigas e intrigas. É difícil para nós o povo que não vivemos no poder, mas no país, compreender como são as coisas e para onde vão. À medida que se aproximam as eleições para as prefeituras e câmaras municipais, tudo indica que o tom vai subir, que haverá menos espaço para discutir com racionalidade a situação do país e tentar encontrar entendimentos e soluções.

Vivemos uma dupla briga, aquela entre as duas forças eleitorais que saíram das eleições 2022, uma da vitoriosa Frente Democrática e outra da coalizão do governo anterior derrotado e agora na oposição, bem como a briga que existe dentro de cada uma dessas coligações eleitorais, porque são constituídas por forças que não são apenas diferentes, o que é completamente aceitável, mas com concepções as vezes conflitantes, caminhos culturais contraditórios, e até mesmo reações políticas e de cordialidades instantâneas e antitéticas aos acontecimentos. São como um contrato de namoro regado as conveniências e quiçá do mau acordo, obrigados a viver juntos pelas necessidades de sobreviver e de alcançar ou manter o poder e seu status, que não consegue esconder os seus problemas, as suas brigas, as suas ausências, para não falar do amor, mas até de um tênue afeto. Então vão eles, acorrentados pela vida, para acertar cada qual com sua comédia de erros, em que se preferiria não estar naquela companhia, sorrindo juntos com um rito de descontentamento oculto diante das câmeras.

Na extremidade de uma das coalizões se fez o envio de suas principais líderes para viajar. Alguns foram para embaixadas da Hungria, esse belo país que hoje, sob o autoritarismo eletivo, constrói muros, se declara iliberal e promove a extrema direita em todo Leste Europeu.

O que isto tem a ver com o futuro de um país como o Brasil, que conseguiu sair de uma ditadura e avançar durante anos num desenvolvimento progressivo e equitativo que infelizmente perdeu o seu impulso propulsor, e a coesão dos cidadãos e a jornada social nos últimos dez anos?

O Brasil exige uma nova organização das forças políticas que contribua para uma melhor governação e a construção de acordos para que a democracia funcione e gere um desenvolvimento econômico que dê sustentabilidade aos avanços sociais que estão a ser alcançados. Que permita recuperar a confiança nas instituições democráticas e que recupere o prestígio da política e dos políticos, elevando a sua qualidade e representatividade.

É necessário um objetivo estratégico que não existe desde as últimas duas décadas apesar de todas as possibilidades que os nossos recursos naturais nos abrem na era digital. A questão é que não estamos fazendo isso e, para piorar, alguns ficaram obscurecidos pela sua imaginação ideológica, outros pela sua rigidez atávica.

O acúmulo do que conquistamos nos anos anteriores nos permite, no entanto, seguirmos caminhando na república e na democracia e até o momento não termos um colapso institucional tal como desejado no 8 de janeiro de 2023, nem nos números de pobreza e desigualdade em que avançamos para reduzi-los e encurtar a disparidades, respectivamente.

É possível continuar assim? Claro que é possível, mesmo com o tempo vamos nos acostumando, vamos achando natural a mediocridade, vamos nos adaptando a piores serviços, para cidades dilapidadas, populações que vivem em condições indignas e um Congresso de má qualidade.

Estamos diante de uma grande encruzilhada que não pode ser resolvida recusando as histórias, mas estabelecendo metas compartilháveis. Já tivemos muitas histórias globais e algumas delas foram rejeitadas pela grande maioria das pessoas e isso não resolveu nada. Contar a nós mesmos as nossas histórias ajudará a conseguirmos nossa coesão e com ela recuperar o impulso propulsivo.

E só seremos solidamente estáveis ​​se recuperarmos a história do impulso propulsor e, para isso, é necessário recuperar as histórias da Frente Democrática, seus passos reformistas dos acordos que perdemos por inúmeros equívocos, inclusive recentes. Mas infelizmente, pelo menos nesta rodada, aqueles que puderam promover a vitoriosa Frente Democrática em 2022, neste novo tabuleiro político marcado por uma competição eleitoral, avessas em tudo a uma visão construtiva e com isso pouco poderão fazer, ainda que tentem mitigar as forças extremas que querem impor a sua própria verdade e a quem os avanços democráticos pouco importam perto das suas utopias e distopias. Enquanto isso não mudar, será impossível sair da estagnação. E será com a Frente Democrática, simbolizada nesse dramático dia em Porto Alegre na coletiva da imprensa, tal como havia acontecido no histórico discurso presidencial na solenidade de sua posse no Congresso Nacional em 1 de janeiro de 2023, que conseguiremos reconstruir o Rio Grande do Sul.

 

5 de maio de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

SÉRIE ESTUDOS - AGUARDANDO O PESSIMISMO DA RAZÃO

O longuíssimo caminho para o bem-estar social

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, do norte-americano James Bradford DeLong. Tradução de Diego Franco Gonçalves; Revisão técnica de Marco Antonio Rocha. São Paulo: Crítica, 2024.

 

É difícil negar que as humanidades progrediram, mas assumir o progresso como fio condutor histórico pode nos levar a superlativos em face aos tempos atuais. O livro O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, de James Bradford DeLong, nos coloca mais perto da utopia do que realmente estamos. A sua tese principal é que os cento e quarenta anos que compõem o período da Segunda Revolução Industrial em 1870 a 2010 formam uma unidade histórica, um “grande século XX”. O que o torna característico é que a sua economia histórica, ilustrará uma derrota em curso, pois essa economia histórica, é o relato do progresso econômico e não histórico que levou as humanidades, pela primeira vez, a poder dar fim à aguda pobreza material que sofre desde muito longe. Para DeLong, foi o surgimento de três instituições as responsáveis ​​por tal feito: a globalização, os laboratórios de pesquisa industrial e as corporações modernas. Esta combinação gerou a maior força criadora de riqueza e possibilita proporcionar a todas as humanidades essa chance de um mínimo de seguridade.

A ideia de que a enorme capacidade econômica instalada de produzir riqueza não está na mesma proporção do bem-estar das humanidades é uma ideia que se impõe à luz da enorme e crescente desigualdade e pobreza no mundo. DeLong conhece bem esta verdade. Citando Keynes, DeLong lembra-nos que, em 1914, às classes média e alta de todo o mundo “ofereciam-se vidas, a baixo custo e sem maiores problemas, facilidades, confortos e serviços que ultrapassavam os disponíveis aos monarcas mais poderosos”. poderosos de todo o mundo”; e que em 2010 nos EUA imaginário uma “família típica já não enfrentava o problema mais urgente de adquirir comida, abrigo e roupa suficientes para o próximo ano ou para a próxima semana”.

Talvez essa família imaginaria típica a que DeLong se refere talvez faça sentido por lá. Mas, se ao menos esta família típica imaginaria fosse globalmente representativa; se fosse verdade que esta família típica imaginária dos nossos dias pudesse orgulhar-se de viver melhor do que os monarcas mais poderosos de qualquer lugar, então ousaríamos dizer que já estaríamos na própria utopia. DeLong baseia o seu otimismo nos números oficiais do Banco Mundial sobre a pobreza extrema: em 2010 sem qualquer sombra pandêmica, menos de 9% da população mundial vivia com menos de 2 dólares por dia. Assim, dois dólares é o critério que DeLong aceita para estabelecer o progresso econômico alcançado. Mas se olharmos para os padrões nacionais e/ou regionais de medição da pobreza, o quadro é geralmente mais sombrio. Mesmo de acordo com medidas internacionais, quando passamos da pobreza extrema (menos de 9% em 2010) para outros tipos de pobreza, descobrimos, por exemplo, que 32% da população mundial é identificada como multidimensionalmente pobre.

Não é nossa intenção, contudo, negar todo o progresso que as humanidades fizeram. Contudo, na capacidade produtiva também deve ser considerado, sobretudo, a intensificação do trabalho e o abuso dos recursos naturais mundiais. Nada é dito sobre essas questões.

DeLong, no seu esforço para destacar os feitos produtivos do seu século XX, também nos oferece uma medida dessa capacidade produtiva para a riqueza. Segundo as suas estimativas, entre 1870 e 1914, as melhorias tecnológicas e produtivas cresceram a uma taxa de 2 por cento ao ano, uma taxa mais de 4 vezes superior à experimentada pelas humanidades durante todo o século anterior. O alcance desta gigantesca capacidade produtiva é que nos oferece a oportunidade de criar o suficiente para se projetar um pouco mais do que um mínimo de seguridade a toda a população mundial, como provado por todas as médias de riqueza e rendimento. Mas essas são apenas médias. Portanto, embora com certas nuances, é possível concordar com a ideia de DeLong de que parte dos problemas das humanidades já foi resolvido: há riqueza material abundante. Mas o verdadeiro progresso não consiste na produtividade e nem na abundância em si, mas na possibilidade real de acessá-la. Como diz DeLong, com razão, a prosperidade material não está distribuída e o que está se encontra de forma desigual por todo o planeta, numa extensão grotesca e até criminosa.

Para DeLong, uma das razões pelas quais a humanidade não alcança a utopia é que esta é quase inteiramente mediada pela economia de mercado. A produtividade e a abundância são o resultado de uma incrível coordenação e cooperação de milhares de milhões de pessoas que participam na produção de riqueza, mediada pela economia de mercado. Mas, embora a produção de riqueza seja cada vez mais social, o mercado não recompensa de acordo com a seguridade para cada pessoa, mas sim de acordo com os títulos de propriedade que possui sobre esse trabalho social. DeLong não o diz, mas na sociedade contemporânea não existe o, “isto é, meu porque eu o fiz”, mas tão só, “isto é, meu porque tenho o título da propriedade”.

Na sua economia histórica, DeLong envolve-nos num diálogo sobre as virtudes e os limites desta economia de mercado. Através da conversa que DeLong estabelece entre os austríacos Friedrich von Hayek e Karl Polanyi, ele procura representar as humanidades em busca da utopia. Assim, DeLong entende o século XX como uma disputa política entre aqueles, por um lado, que aderem ao lema “o mercado dá, e o mercado tira”, e por outro, aqueles que sustentam que “o mercado é feito pelas humanidades; e não as humanidades para o mercado.” Portanto, a história da economia política que DeLong nos oferece do seu século XX é uma economia histórica focada nas mudanças políticas que definiram os padrões de crescimento da própria economia. Em particular, é uma economia histórica nucleada no papel das elites dominantes dos países ricos do hemisfério norte, lideradas pelas elites do seu país.

Quando se ignora os inúmeros lados errados das coisas históricas talvez isso facilite um olhar otimista. Daí ser o mínimo que possamos recordar a DeLong, pois estaríamos na sua economia histórica no melhor de todos os mundos possíveis. Estamos? Tenho a impressão de que a pior resposta chegará a ele em novembro próximo.

 

22 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.