Ricardo José de
Azevedo Marinho[1]
No Jornal Hoje do último sábado (22/06/2024) recordei a leitura
de um conto da escritora argentina Samanta Schweblin. O título apesar de nada
convidativo, “Debaixo da terra” é muito bom. O primeiro parágrafo, curto,
introduz-nos sutilmente num clima de mistério: um viajante entra num bar de
beira de estrada, isolado e solitário, e dirige-se ao barman. A atmosfera,
criada nessas poucas linhas, é sugestivo. O viajante pede uma cerveja. Aparece
então a primeira linha do diálogo, pela boca do barman: “São cinco pesos”, disse
ele.
Cinco pesos? Inevitavelmente, volto a matéria do jornalista
Marcos Landim (https://globoplay.globo.com/v/12699720/) e me pergunto: que
cerveja pode valer cinco pesos? Em que ano essa história foi escrita? Sua
publicação no seu livro Pássaros na boca e Sete casas vazias: Contos
reunidos (Fósforo, São Paulo, 2022) se deu em 2009 e podemos pensar nesse
ano, e se o valor fosse esse, e em tudo que ocasionou o aumento da cerveja
desde então... E volto a ler o conto com aquele pensamento: a magia da ficção,
aquele sonho lúcido de que falava o Nobel de Literatura de 1982 e jornalista
colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), foi contaminado e deve ser bem
compreendido. Surgiu um vírus sutil: o problema da inflação, que perturba tudo
e do qual nem as/os literatas/os nem os leitores estão imunes.
Como a literatura conseguirá imaginar o fluxo de argentinos de Puerto
Esperanza e Wanda vindo fazer suas compras de uma cesta básica na cidade
brasileira de Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná, sem que isso soe como um
ruido ao longo do tempo. Imagino-os atualizando os números a cada ida aos
mercados argentinos, considerando a ideia desesperadora de dolarizar seus
ganhos, enquanto existe a acolhida brasileira com nossa economia equilibrada a
30 anos.
Porque a literatura argentina, tem tido o espectro da inflação
entre outros personagens e/ou pano de fundo do universo econômico, como também
se viu no filme de Sebastián Borensztein, A Odisseia dos Tontos (2019), que
é fruto de um roteiro adaptado do livro do Eduardo Sacheri, La noche de la
usina (2016). Nessa obra inclusive tem o cálculo da mala em que o criminoso
do sistema bancário transporta o fruto do seu desfalque dos correntistas que depende
não só do valor dele, mas também do valor máximo das notas. Não se pode
entregar milhões de pesos num envelope, e daí a mala. Dito de outra forma: você
não pode subornar na Argentina e ser discreto. Todas essas questões que afetam
a verossimilhança da cena literária e cinematográfica complicam a vida da narrativa.
Esse tremendo drama do corralito desgraçou a vida dos giles (os
honestos) que tentaram salvar a honra dos seus é quase incompreensível para nós
hoje.
A inflação, em todo e qualquer hipótese, sendo um problema grave
no panorama literário argentino, tem cada vez mais e piores consequências, que
para os fronteiriços conosco tem podido receber o nosso abraço e acolhida. Diversamente,
os nãos circunvizinhos vivem a pressão decorrente da inflação com uma psique
próxima de O Jogador, de Dostoiévski, onde quantias são mencionadas em todas as
páginas e seus valores relativos são muito relevantes para a trama. Ali os
personagens apostam, ganham e perdem, pedem emprestados... Fala-se
constantemente de dinheiro. A literatura argentina se atrevera a fazer algo
assim? São temas complexos que tem implicado inúmeros esclarecimentos e
entendimentos. Mas novos também surgem graças à inflação: A Uruguaia (Todavia,
São Paulo, 2018), de Pedro Mairal, narra uma trama que tem a ver com câmbio,
restrições e uma movimentada viagem ao Uruguai para sacar dólares. A questão,
nesta estória, aponta para os leitores: quantos serão capazes de compreender
plenamente narrativas como essa?
Com essas ideias e os livros argentinos, podemos voltar a
reportagem do Marcos Landim e perceber os semblantes das argentinas e seu
alívio em poder contar com uma atmosfera calma para as suas necessárias compras,
sem a sombra dos 276% de inflação como informou a pouco o Instituto Nacional de
Estatísticas e Censos da República Argentina (INDEC).
Que nossos vizinhos encontrem o quanto antes a simetria econômica
e saiam desse pavoroso mundo de exageros horrendos.
28
de junho de 2024
[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya,
da UniverCEDAE e do Instituto
Devecchi.