sexta-feira, 1 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O LEGADO DO HOMEM NEANDERTAL

A boca e os genes

 

Marcio Junior[1]

Lavínia Miranda[2]


Para Catarina Milena.


Os nossos habitus, sejam alimentares ou não, possuem história e não é à toa que eles variam no tempo e no espaço, pois os habitus estão atrelados à história de uma configuração societal e sua complexidade. Como eles nem sempre foram como hoje o são, é razoável imaginar que compreender também as formas como comemos no passado ajudam a explicar, inclusive, quais elementos desses habitus afetaram e/ou afetam a nossa saúde e de que forma isso acontece. Pensemos, por exemplo, em patologias que afetam a saúde bucal: como mostrou Norbert Elias em seu O Processo Civilizador (1939), somente no seiscentos o garfo começou a ser utilizado por dada configuração; até então as refeições de todos eram feitas em pratos comuns e se mergulhava, quando havia, o pão e quase sempre os dedos nos humores de todo tipo. É, assim, interessante a hipótese de que a mudança de habitus alterou a maneira pela qual os nossos corpos ficavam expostos a diversas circunstâncias e a consequente importância da boca.

Porém, podemos notar que a boa compreensão de dadas patologias hoje demanda uma volta ainda maior no tempo. Os estudos sobre o sequenciamento genético hominidea de outrora, assim como o desenvolvimento de técnicas para que fosse possível fazê-lo com a menor contaminação possível do nosso material genético contemporâneo, deram ao sueco Svante Pääbo o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2022. Os Neandertais, cujos habitus alimentares eram decerto exigentes para a sua estrutura hoje chamada de orofacial, nos legaram material genético via acasalamento.

Este fenômeno específico de transmissão genética de uma espécie para outra, chamado de introgressão, nos legou vantagens e desvantagens, e dentre elas podemos citar a presença de genes neandertais em alguns homólogos dos chamados Toll Like Receptors (ou TLR), conjuntos de receptores proteicos transmembrânicos do nosso Sistema Imunológico presentes nas nossas células, que se ligam bioquimicamente à estruturas de antígenos, como vírus, bactérias e fungos, identificando-os e enviando sinais para que o corpo fique alerta e quiçá busque mecanismo de lidar com essas presenças. Como existem, entre os TLR, proteínas que ativam e inativam a resposta imunológica, uma desregulação dessa primeira abordagem de delineamento do que o organismo pode fazer pode levar a uma resposta exasperada e, consequentemente, o próprio resultado inflamatório que acontece para contingenciar face ao corpo que lida com a situação incomoda pode levar ao extremo a sua própria destruição, como ocorre com várias doenças periodontais mais recorrentes.

Assim, o estudo destes fenômenos também pela biologia molecular e pelo acolhimento tanto da antropologia histórica quanto da paleogenômica fornecem novos registros para a compreensão de que os habitus estão inscritos no tempo e sua compreensão deve ser transversal. A forma como comemos e cuidamos da boca é, ao mesmo tempo, genética, cultural e não só, e a forma pela qual podemos desenvolver novas terapias, intervenções e políticas públicas para a saúde bucal precisa levar em conta todos esses fatores.



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

[2] - Graduanda em Odontologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LEMBRANÇAS SOBRE A DEMOCRACIA COMO CONQUISTA CONSTANTE


A vida de Alexis de Tocqueville 

Em memória de José Murilo de Carvalho


Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O homem que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, de Olivier Zunz (Rio de Janeiro: Record, 2023).

 

Contratado, junto com Gustave de Beaumont, pelo governo francês para estudar o sistema penitenciário dos Estados Unidos da América, Alexis de Tocqueville, um jovem intelectual e político com raízes aristocratas, que não se aliava nem a monarquistas nem aos radicais, voltou para França em 1832 determinado a promover uma ideia que o movia: “a marcha irresistível da democracia”.

Um "mundo totalmente novo exige uma nova ciência política", declarou. Ele a forneceu em Democracia na América (1835 e 1840).

Em O homem que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, Olivier Zunz, professor emérito de História na Universidade da Virgínia e professor visitante no Collège de France e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, entre outros, editou vários outros livros dedicados a Tocqueville, nos fornece uma biografia muito bem-informada de Tocqueville, cuja compreensão da complexa dialética entre a liberdade e a igualdade permanece imensamente influente para o nosso bicentenário do nascimento do Brasil e alhures.

Zunz explica o que Tocqueville aprendeu — e o que não percebeu — durante sua viagem em 1831 pelos Estados Unidos da América. Na América, observou Tocqueville, a riqueza era distribuída de maneira muito mais igualitária; o respeito pela lei era generalizado. Uma convenção de livre comércio na Filadélfia deu-lhe a ideia de sua teoria das associações voluntárias. Com tantos cidadãos capazes de possuir terras, escreveu Tocqueville, "como alguém pode sequer imaginar uma revolução".

Dito isso, em uma visita a uma cidade fronteiriça habitada por franco-canadenses e indígenas, ele tomou consciência das diferenças étnicas e raciais das sociedades americanas.

Tocqueville não sabia que o Canal de Erie era financiado pelo governo; ele ignorou a industrialização e as fábricas de algodão em Lowell (Massachusetts). Ele parecia bem arredio ao renascimento do protestantismo evangélico (que ele condenou como uma forma anacrônica de fé). Ele teve dificuldade em compreender o significado da formação do sistema bipartidário.

Olivier Zunz. © Dan Addison/Universidade da Virgínia 

A análise de Zunz de Democracia na América ​​busca aproximá-lo da sabedoria do senso comum. As posições de Tocqueville, ele observa, muitas vezes são de difícil compreensão face as inconsistentes próprias ao seu endosso à democracia. Mas, escreve Zunz, que ele passou a apreciar o poder das conclusões de Tocqueville sobre liberdade, igualdade e democracia, "porque ele persiste em fazê-las apesar de suas dúvidas".

Zunz também fornece um relato esplêndido da carreira de Tocqueville como um político na França, durante a qual ele procurou ser ao mesmo tempo um patriota, um colonialista e um democrata, embora essas identidades não fossem coerentes. As datas, locais e pessoas da vida de Tocqueville estão todas lá, desde os pulmões fracos ao amor fervoroso até a persistente capacidade de fazer amigos e mantê-los.

Já se passaram mais de uma década desde a suntuosa biografia de Tocqueville escrita por Hugh Brogan aqui intitulada de Alexis de Tocqueville: O profeta da democracia e também publicada pela Record e, embora Zunz seja um dos principais estudiosos do assunto vivos hoje, A vida de Alexis de Tocqueville conta em grande parte analogamente essa história, como não poderia deixar de fazê-lo, como também o fez as nossas Tocquevilleanas exemplares de Marcelo Jasmin e Luiz Werneck Vianna. E essa história é bem apoiada por ampla documentação, com minúcias do que Tocqueville comeu em Boston até as maiores visões filosóficas de suas impressões sobre política e, como prometido, os perigos e o potencial da democracia, que ele testemunhou em primeira mão nos diferentes laboratórios dos oitocentos.

Crítico ferrenho da monarquia, Tocqueville relutava em apoiar seu fim após a Revolução de 1848. Assim que "passou o choque inicial", porém, ele decidiu participar do "histórico experimento republicano", esperando que isso acabasse por dar a cada indivíduo "a maior parcela possível de liberdade."

Amargamente desapontado quando Luís Napoleão voltou ao poder como deixa explicito no póstumo Lembranças de 1848: As jornadas revolucionárias em Paris, Tocqueville "reconciliou-se com a ideia de que sua verdadeira vocação era a de pensador". Ele viveu o suficiente para escrever O Antigo Regime e a Revolução (1856). Ao avançar nas páginas de A vida de Alexis de Tocqueville deixará leitoras e leitores com uma noção muito melhor do que Tocqueville pensou e simultaneamente de quem ele foi.

Tocqueville morreu em 1859, aos 53 anos, antes de completar o segundo volume, mas, conclui Zunz, depois de ter "direcionou sua ansiedade para uma força criativa e transferiu sua paixão pela liberdade para uma profunda e exigente valorização da democracia" (Zunz, 2023, p. 371).

E o que é isso tudo? De acordo com Zunz, é bastante simples. “A crença mais profunda de Tocqueville era que a democracia constitui uma poderosa, mais exigente, forma política poderosa, mas exigente” (Zunz, 2023, p. 17), escreve ele. “O que torna sua obra ainda relevante é que ele definiu a democracia como um ato de vontade de cada cidadão – um projeto constantemente necessitado de revitalização e da força proporcionada por instituições estáveis.”

“A democracia jamais pode ser algo dado como garantido” (Zunz, 2023, p. 17), conclui Zunz, um sentimento que brota da própria vida de Tocqueville, mas que, no entanto, parece diretamente direcionado ao nosso próprio momento do século XXI, quando tantas vezes parece que as únicas pessoas que não consideram a democracia como certa são as pessoas zelosamente tentando enterrá-la em uma cova sem identificação. Talvez o melhor resultado do livro de Zunz seja exatamente esse: conseguir que mais pessoas leiam Democracia na América como um título que descreve o mundo da democracia como um universo sempre a ser conquistado.

 

20 de agosto de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

JOSÉ MURILO DE CARVALHO - IN MEMORIAN

Lembranças sobre José Murilo

Por Pablo Spinelli

 

É uma ironia da história saber que um cientista social que se debruçou sobre a Revolta da Vacina ter tido a sua vida e longa carreira eclipsada pelo coronavírus. E assim se foi José Murilo de Carvalho, intelectual de fala bem amineirada, com tom conciliatório típico das Gerais.

A obra clássica de José Murilo vem de longe, nos anos 1970 com uma parte de sua defesa de doutorado, A Construção da Ordem - a elite política imperial, publicada em 1980. O seu texto e enfoque acerca do estudo das elites que remontam o esquecido Gaetano Mosca (1858-1941). José Murilo exibiu de forma acurada a formação da elite imperial do país recém-nascido, as clivagens existentes nessa elite, a importância da formação profissional ou acadêmica e até a origem do nascimento dos legisladores mais importantes. A sua obra mostra que nem tudo pode ser resumido em "as elites" ou "classe exploradora do proletariado", chavões que para o autor seriam aberrações.

Interessante notar que somente por "A Construção da Ordem", José Murilo já seria obrigatório. Mas somente em 1988, no ano da Constituição, seria publicada a outra parte de sua tese, O teatro das sombras - a política imperial; onde o campo de análise consiste no cenário político do II Reinado, com o país consolidado na hegemonia tripartite da agroexportação-escravidão-latifúndio. A popularidade do autor se torna manifesta para fora dos muros acadêmicos com o livro Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, publicado em 1987, no momento da Constituinte brasileira. O enfoque do livro mostrou o quanto de involução foi a República brasileira, cuja afirmação desse sistema resultou em exclusão da cidadania e autoritarismo, seja dos militares, seja dos latifundiários. Uma República que não foi República, esse é o tom do livro que evoca muito a concepção de Alexis de Tocqueville acerca dos efeitos da Revolução Francesa em seu país.

Não creio ser um equívoco que havia em José Murilo de Carvalho um traço aristocrático democrata que se assemelhava com a tradição de Joaquim Nabuco. Há ecos em seus livros sobre o que poderia ter sido feito ainda no Império se D. Pedro II fosse menos complacente com os escravocratas ou quiçá em um Terceiro Reinado. Como bom cientista social, Murilo sabia que não podia tratar do "se", mas seria interessante para futuros cientistas sociais compararem sua obra com a de Gilberto Freyre e o que há de nostalgia e reformismo nabuconiano em ambos.

Por fim, o Brasil perdeu um grande cientista social que perfilou com vários outros o quadro de uma intelligentsia carioca alocada no antigo e saudoso IUPERJ em Botafogo. Ali, perto da Casa de Rui Barbosa, José Murilo refletia sobre os efeitos nocivos do positivismo no seio militar e este, na construção da ordem (não) democrática tal como as incompletudes da cidadania nesse país que optou mais pelo viés da construção da ordem pela modernização e abriu mão da construção do progresso pelo moderno. Sou do tempo que era interessante na universidade divergir de José Murilo de Carvalho, chamá-lo de "monarquista" como se fosse um impropério, mas, ao mesmo tempo, deleitar-se com seus livros, aprender mais sobre o Brasil que não foi, o que poderia ter sido e o que ainda pode ser na formação da vida e das almas dos cidadãos desse país.

XXXXX

Para saber mais sobre o autor em nosso momento político sugerimos o livro abaixo.




quinta-feira, 10 de agosto de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 021 - FRENTE DEMOCRÁTICA PARA ALÉM DO MÊS DE AGOSTO

A ousadia da prudência do governo da Frente Democrática

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Daqui a alguns dias a espera terminará e a reforma ministerial terminará e um novo impulso governamental começará. O governo que está à porta traz muitas novidades, representa uma profunda mudança política, promovida por forças políticas construídas em poucos anos.

A nova classe dirigente é filha do processo de modernização reformista que levou à vitoriosa Frente Democrática de 2022, que durante anos foi duramente criticada por posições da esquerda. Com eles se construiu a atual coalizão política, não isenta de atritos internos. Eles estão unidos mais pela necessidade da democracia.

Como bem sabemos, paralelamente a isso ocorreu o suicídio autoassistido de uma direita e extrema-direita com complexo por seu trabalho de destruição, sem vergonha de suas mazelas, sem vergonha dos seus deslizes, em permanente estado de alucinação como se viu em 8/1.

Por sua vez, a direita e a extrema-direita se feriram seriamente ao liderar um governo esquizoide, onde nele se abriu para setores liberais, mas também houve a decantação de uma direita dura com nostalgia autoritária, que acabou por representá-la nas últimas eleições.

Assim, o quadro político que mudara em favor de visões extremas, foi cedendo espaço a moderação do centro e da direita e esquerda democrática que foram paulatinamente sendo reconstituídos.

As últimas eleições legislativas coincidiram com o apogeu dessa polarização e do culto da pureza antipolítica em relação às formações tradicionais.

No segundo turno presidencial, a Frente Democrática, que havia ficado latente e em primeiro lugar no primeiro turno, Lula & Alckmin tiveram o talento e capacidade política para entender que só com sua conformação efetiva venceria se convencesse um setor moderado, não revolucionário e republicano de que, se eleito, iria garantir transformações profundas, graduais e respeitando as regras democráticas. Isso lhe permitiu obter a maioria eleitoral.

Estes sinais permaneceram existindo depois das eleições, e o início do governo da Frente Democrática continuou a mostrar contenção e sentido de Estado alheios a exacerbações identitárias, aproximando mesmo aqueles que se insultavam no passado, moderando a sua visão crítica da transição democrática e demonstrando respeito e talvez até mesmo admiração por seus líderes.

Sem dúvida, a medida mais significativa foi a nomeação de Simone Tebet para o Planejamento e Orçamento. Mas agora trata-se de assumir uma nova disposição governamental e os sinais já não bastam. Chegou a hora de decisões que têm tanto efeitos reais quanto simbólicos. Chegou o momento em que as promessas de governo devem ser confrontadas com uma realidade mutável e muito complexa. Nem tudo o que foi prometido será alcançável, como Goethe apontou nas palavras maliciosas de Mefistófeles a Fausto, “Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde é a árvore dourada da vida”.



O início de inocência será deixado para trás. Como sempre acontece, quem governa de objeto da esperança torna-se objeto da suspeita. Querendo ou não, a Frente Democrática se torna o coração da política, com enormes responsabilidades de liderança, enfrentando dificuldades cotidianas e estratégicas, deve aprender a exercer o poder com ousada prudência e sem perder a alma.

Um elemento decisivo é a convicção democrática do governo, a convicção de que sua legitimidade não advém apenas do ato eleitoral, mas do exercício do poder de acordo com as regras democráticas.

Ter sempre em mente que ao vencer, nem tudo foi ganho e que seus adversários não perderam para sempre. Não fazer isso é estranho à prática democrática. É pensar que alguém possui toda a verdade política. E a verdade absoluta na democracia não existe, é algo típico do autoritarismo e das ditaduras.

Vassili Grossman, o grande escritor soviético de raízes judaicas ucraniana, ensina-nos em Vida e Destino que por vezes a boa vontade, as excelentes intenções e a vontade determinada de fazer o bem podem ter efeitos perversos, porque o mal pode vir de quem quer impor a todos a sua ideia particular de bem.

A democracia é um sistema que coloca barreiras a este perigo através da separação dos poderes do Estado e dos contrapesos do poder, que impedem a sua concentração e asseguram o respeito pelas minorias, permitindo-lhes a possibilidade de se tornarem maioria se os cidadãos assim o decidirem.

Os tempos que virão não serão fáceis para o governo da Frente Democrática. Serão tempos conturbados, os efeitos do passado recente limitarão o nosso funcionamento.

A queda em nosso desenvolvimento econômico e social começa a ser recuperada. Muitas reformas dependerão da saúde de nossa economia e o ambiente geopolítico internacional seguira muito incerto e instável, como mostra hoje a situação no Leste Europeu e alhures. Por isso é boa a reforma ministerial que alarga o debate e se diversificam as vozes, daí a virtude dessa, que se deve ter em conta em vez de ser vilipendiada.

Nenhuma autonomia é absoluta na democracia. O novo elã governamental deverá influenciar as forças que o apoiam no Congresso Nacional, incitando-as a chegar a compromissos e equilíbrios que permitam mudar o tom do atual processo, sem dúvida laborioso, mas muitas vezes surdo e intemperante, e chegar à política que protege a democracia, os direitos sociais do bem-estar, continuidade histórica e que seja aceitável para todos.

Hoje aquela expressão em Ética a Nicómaco que Aristóteles proferiu  “virtus in medium est” (no meio está a virtude) parece fazer muito sentido.

 

9 de agosto de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 6 de agosto de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 020 - OS SEIS MESES + 1 DO GOVERNO LULA/ALCKMIN


Visconde de Albuquerque

DO PASSADO PARA UM BREVE DIAGNÓSTICO DO PRESENTE

Isabella Souza da Silva


"NADA SE ASSEMELHA A UM SAQUAREMA COMO UM LUZIA NO PODER". Essa frase que foi atribuída a proprietário rural Antônio de Paula Holanda (Visconde de Albuquerque), um político de Pernambuco, no segundo reinado do Brasil. A época em que a "casa" estava uma verdadeira bagunça, pois eram tempos de superação das rebeliões regenciais e suas polarizações regionais.

A citação se explica em consequência da emergência dos partidos em destaque no Segundo Reinado (1840-1889) - o Conservador (chamado de Saquarema) e o Liberal (chamado de Luzia). Ambos discordavam sobre a centralização do poder, mas se uniam quando aos fundamentos socioeconômicos, ou seja, o monopólio da terra e do regime escravocrata. Foi Ilmar Rohloff de Mattos que trouxe a luz uma interpretação sobre essa característica do transformismo brasileiro em O Tempo Saquarema.

Voltar para dois séculos atrás é essencial para nos fazer observar as raízes dos problemas e as semelhanças entre o passado e o presente que recai sobre o país nesse momento político. Após as lutas pela independência, tudo começa com o “Golpe da Maioridade” (1840) promovida pelo Partido Liberal para antecipar a gestão do segundo Pedro, mas os “regressistas” se fortaleceram como conservadores.

Isso fez com que D. Pedro I, enquanto "expulso", fizesse o pequeno Pedro subir ao trono com apenas 14 anos, porém, o Império estava sob o predomínio de uma elite agrária distinta da que atualmente se organiza no “Oeste” brasileiro. Entretanto, sob a égide unificadora da “Coroa” girou a moeda desse núcleo dirigente com suas sedimentações da “Guarda Nacional” na configuração do coronelismo em plena República.

Logo mais, tudo poderia mudar com a Revolução de 1930, que tirou os oligarcas do núcleo de decisões e instaurou a “Era Vargas” (1930 – 1945). Assim, as forças inorgânicas na política se viram isoladas ao ponto de, em 1923, o nosso Oliveira Vianna escrever a obra O Idealismo da Constituição que foi uma das grandes obras a criticarem esse tipo de liberalismo e (talvez) o primeiro a trazer a notoriedade que há dois pensamentos no campo político.

Saltemos no tempo, vamos cair no terrível fracasso que foi o governo Collor que pretendeu refundar um Brasil agrário provavelmente, mas em passos acelerados. O Plano Real de Fernando Henrique Cardoso foi outro momento de coabitação entre “Luzias” e “Saquarema”. A interrupção do mandato de Dilma e o esvaziamento do centro político no Governo Michel Temer que aprovou a reforma do "novo" ensino médio como se fosse a forma de reforma a individualização dos sujeitos na sociedade. A barbárie do Bolsonaro se fez nesse “vazio”. Para finalmente a terceira vitória de o Lula abrir a possibilidade de um debate sobre a transição energética sob os olhos nos novos números do Censo Populacional de 2022.

Nesse início de oitavo mês da gestão Lula/Alckmin, ainda se vê novas descobertas de tentativas de ataque a democracia por grupos sectários e a inconformação de seus seguidores do mandatário anterior. Porém a alternativa do Lula de se manter no Centro apesar das ambiguidades quando menciona a Revolução Industrial e fala as nuvens ao comentar sobre o comunismo em seus recentes discursos. Por outro lado, mesmo tempo em que mantém o protagonismo do Vice-Presidente da República diferente do que se fez nos Estados Unidos e se permite aos temas ditos do mercado. Ainda é uma incógnita se o delírio bolsonarista irá se pacificar nas próximas eleições. Contudo, podemos concluir com essa análise do tempo, apesar de substituições de chefes de Estado, todas as vias levam ao mesmo lugar pela moderação.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

A DOCE POLÍTICA DO CINEMA - NÚMERO 19 - ERA UMA VEZ O MACARTHISMO...


“Oppenheimer” e o anticomunismo

             

Por Nilvio Pessanha (1)

Filmes que contam a história da vida ou parte da vida de personagens históricos não possuem uma missão muito simples. Estão sempre tendo de optar em que parte da biografia do vulto histórico pôr o seu foco. A obra se ocupará da vida toda, fazendo alguns recortes? Mas quais recortes fazer? Ou optar-se-á por uma fase específica da biografia do indivíduo? Mas qual seria essa fase? Então, como disse, não é uma missão fácil. Talvez por isso, a maioria das cinebiografias tenha uma narrativa chata, careta. Esse, porém, não é o caso de “Oppenheimer”, novo filme do diretor Cristopher Nolan.

            Em “Oppenheimer”, Nolan acompanha a trajetória de Julius Robert Oppenheimer, o físico que ficou conhecido como o “pai” da bomba atômica. O longa é uma adaptação da biografia homônima escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin e não tem medo de fazer recortes e não focar em momentos e personagens importantes para a vida de Robert Oppenheimer, como sua juventude e seu irmão, respectivamente. Porém o que realmente importa para a trama está lá e muito bem contada, que é o processo de criação da bomba e toda a dualidade de sentimentos enfrentada pelo cientista que, inclusive, é muito bem transposta para a grande tela pela interpretação do excelente ator Cilian Murphy, que o interpreta. As imagens grandiosas que causam todo um impacto visual no público que já conhece outros filmes da filmografia do cineasta estão lá, mas talvez, nesta obra, Nolan trata a imagem de uma forma ainda mais estilizada. A opção por apresentar uma narrativa não linear com três momentos temporais diferentes que se entrelaçam no fim é outro acerto do cineasta que também assina o roteiro.

Algo que também salta aos olhos, ou melhor, aos ouvidos, é o desenho de som do longa e ajuda a criar um tensionamento. A cena do teste da bomba é um exemplo disso. Num primeiro momento a explosão se faz com toda exuberância de imagens que me encantaram e me extasiaram, imagens estas que foram acompanhadas por um quase que total silêncio, por opção estética. O meu encantamento só foi quebrado quando veio o som da explosão acompanhado das imagens do deslocamento de ar oriundo do efeito da bomba. O som me trouxe o terror do poder destrutivo e me fez ver que estava encantado com as imagens de uma explosão de uma arma de destruição em massa. Mas isso se deve ao trabalho de um grande diretor, isso se deve a cinema de qualidade.


      Cristopher Nolan também se mostrou corajoso no tom político que permeia sua obra. “Oppenheimer” mostra claramente a paranoia anticomunista que se apossou dos EUA e de todo o mundo ocidental, não só nos anos de guerra e pós-guerra, mas ainda vigente nos dias atuais. Sem entrar em terreno de spoiler, o terceiro ato do longa se transforma num filme de tribunal, onde Lewis Strauss, personagem de Robert Downey Jr. ganha mais destaque. O foco nesse ato são as duas audiências que ocorrem em tempos distintos. Em uma delas, está sendo decidido se será renovada a credencial de segurança de Oppenheimer. Nesse julgamento vemos o tempo inteiro ser questionado um envolvimento do físico com comunistas. Oppenheimer se mostra durante todo o filme simpático a causas caras aos comunistas como o apoio à luta antifascista na Guerra Civil Espanhola, apoio a causas sindicais, além de ter participado de reuniões com comunistas, mas nunca se filiou ao partido.

            Toda a perseguição a Oppenheimer e a forma como isso foi aceito pela sociedade estadunidense mostra o tamanho da paranoia anticomunista que, claro, foi promovida pelas autoridades ultrarreacionárias da nação símbolo do imperialismo. Oppenheimer se mostra, no filme, um homem que tem preocupações humanistas – apesar de ter criado a arma de destruição mais poderosa do planeta –, se mostra um ferrenho opositor do fascismo, se mostra um cara leal ao seu país; porém nada disso foi suficiente para fazer com que fosse admirado, fosse minimamente respeitado pelas autoridades do seu país.

E nós, brasileiros, sabemos bem onde essa histeria em torno do medo do fantasma do comunismo pode levar. Sabemos quão danosa ela pode ser para a nossa tacanha democracia. Recentemente, em uma entrevista no canal no YouTube da Uol, o presidente do Supremo Tribunal Militar disse, respondendo a uma pergunta sobre o distanciamento dos militares em relação ao presidente Lula, que antigamente ser de esquerda era visto como ser comunista, mas hoje não. Disse também que o Lula nunca foi comunista. Enfim, deixou claro que os militares ainda permanecem com a paranoia anticomunista na cabeça, a ponto de alguns se associarem a fascistas para tramarem golpe de estado. Assim foram as autoridades estadunidenses, retratadas no filme, que muitas vezes mostravam mais preocupação com os comunistas do que com os nazistas.

            Resumindo, o que Cristopher Nolan nos mostra numa obra com imagens grandiloquentes, com uma tensão que se constrói a partir design de som e de uma ótima trilha, é que você pode ser alguém sensível a causas de interesse da classe trabalhadora, você pode ser alguém que se coloca radicalmente contra o fascismo, você pode ser um cientista brilhante e se afirmar o tempo inteiro como fiel ao seu país, no entanto se há algo que te associa à ideologia comunista, será tratado como um pária, como um traidor.

 


[1] Nilvio Pessanha é professor da rede pública e cocriador dos podcasts Cine Trincheiras e Trincheiras da Esbórnia.

domingo, 30 de julho de 2023

SÉRIE ESTUDOS - CAIO PRADO JÚNIOR E SEU PARTIDO (II)

Prefácio para a crítica da História sem Política[1]

Vagner Gomes de Souza

 

Nosso percurso interpretativo sobre os 90 anos do livro Evolução Politica do Brasil nos fez reconhecer um autor/militante dissidente em relação ao mundo político e social ao qual esteve inserido até meados da década dos anos 20 do século passado. Além disso, seria Caio Prado Júnior um “intelectual fora de seu lugar” na circunstância da proletarização do PCB nos anos 30? Talvez esse seja um atalho muito fácil a se trilhar nos debates acadêmicos universitários em busca de um lugar de fala para esse autor que se fez pautar pelo anúncio de uma interpretação materialista de nossa história.

A leitura do prefácio a primeira edição de Evolução Politica do Brasil é um interessante convite ao busca de como melhor se fazer uma interpretação do tempo em um espaço territorial com uma profunda referência a realidade. O método mais que ser materialista, na verdade é a busca de um diálogo com a realidade através da política. Pois a negação da política se fazia pela ideologização de uma “máquina partidária” que se dizia representar a classe trabalhadora.

Diante desse desafio, Caio Prado Júnior anuncia que fez um ensaio histórico ao contrário de uma obra sobre História. Esse cuidado esclarecido no Prefácio se deve a esse compromisso do autor com a necessidade de se ter mais referências documentadas numa obra futura, que alguns atribuem ao clássico Formação do Brasil Contemporâneo (1942) no contexto da grande frente antifascista mundial[2]. Se sua proposta é ensaística, temos a sugestão de que tenhamos um “Marc Bloch dos trópicos” ao se propor ao debate da metodologia da história a partir de uma preocupação com o ensino dessa ciência.


Muitos não se atentaram até hoje quanto a relevância da leitura do prefácio de autoria de Marcel Ollivier que está mencionado no “Prefácio” de Evolução... Todavia, assim aparece a referência:

“(...)Repetindo um conceito do prefaciador da obra de Max Beer - História Geral do Socialismo [no Brasil ganhará uma tradução com o título História do Socialismo e da Luta de Classes] – a respeito da história universal, podemos também afirmar, com relação à nossa, que ‘há muito se faz sentir a necessidade de uma história que não seja a glorificação das classes dirigentes’. E traçar uma tal história é tudo quanto pensei fazer”. [3]

Afinal, Marcel Ollivier faz uma apresentação crítica do livro de Max Beer que poderia nos levar para outras conjecturas, mas para o propósito desse artigo, o seu prefácio faz referência a um Congresso Sindical do Ensino no qual surge o questionamento de como se faz a História. Ou seja, “se a História deve ser ensinada sob o ponto de vista de classe ou sob o ponto de vista da verdade.”

Em seguida, ele acrescenta as seguintes considerações que devem ser a vinculação de Caio Prado Júnior em seu ensaio de síntese da História do Brasil.

“(...)Esta maneira absurda de abordar a questão só podia, evidentemente, dar lugar a respostas absurdas. De fato: uns afirmaram que o ensino da História deve ser feito unicamente sob o ponto de vista de classe, pretextando que só há verdades de classe; outros, pelo contrário, disseram que ensinar a História sob um ponto de vista de classe é adotar um modo de ver unilateral, que falseia a verdade, porque a verdade existe independentemente das classes.

Na nossa opinião, uns e outros estão errados. (...)”

No contexto de “proletarização” do partido ao qual ingressava, sugerimos essa marcante postura “dissidente” numa heterodoxa leitura do que seria o então legado do “materialismo histórico”. Portanto, o prefácio de Evolução Política do Brasil é um interessante exercício de ensino de como se fazer uma política de “luta interna” costurando argumentos para propor que a Independência de 1822 tenha sido uma Revolução que se fez acompanhar da chamada revoluções da Maioridade (1831 – 1840) de natureza mais popular. Provavelmente, tenhamos nesse momento uma influência de Duas táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática para moldar a formulação política pradiana em seu ensaio.

Portanto, a crítica ao tradicionalismo de Rocha Pombo se acompanha ao elogio dos estudos de Joaquim Nabuco sobre a Revolução Praieira, mesmo que num universo biográfico. E, não deixemos de nos atentar para a primeira nota no qual faz referência inclusiva do pensamento social de Oliveira Vianna, ou seja, liberalismo e conservadorismo poderiam se aliar contra as forças tradicionais numa ampla frente de reflexão sobre a formação do Brasil que de agrário se transformava em urbano industrial. Pensar nessa amplitude da política que temos que ter como foco os próximos anos que se avizinha com a possibilidade do capitalismo agrário diante da nova configuração geopolítica brasileira conforme percebemos nos primeiros indícios do Censo 2022.



[1] Esse artigo é continuidade ao artigo “A Estreia de um Dissidente – 90 anos de Evolução Política do Brasil”. Você pode consultar nesse link https://votopositivo-cg.blogspot.com/2023/06/serie-estudos-caio-prado-junior-e-seu.html

[2] Ele esteve na antiga URSS entre maio e junho de 1933 num momento decisivo nos debates internos do partido local naquilo que seriam os expurgos stalinistas. O que demonstra ser o autor um pouco “testemunha da História” como foi Eric Hobsbawm e outros da mesma geração. Sobre essa viagem, Pericás, Luiz Bernardo – Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo, Boitempo, 2016. Pp. 81 – 95.

[3] Prado Júnior,  Caio. Evolução Política do Brasil. Prefácio a Primeira Edição. 1933, p. 2.

domingo, 16 de julho de 2023

SÉRIE ESTUDOS - GILBERTO FREYRE E OS CAMINHOS DA CIVILIZAÇÃO (II)

Nas Primaveras de Casa-Grande & Senzala

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Quando da 5ª edição de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre estava na Assembleia Nacional Constituinte de 1946. A experiência foi intensa e no interregno que vai até 1948 ele comemorara os 15 anos de sua obra em meio a diversos embates e um deles pode lançar luz sobre a pergunta feita pelo Datafolha presencialmente, com 2010 pessoas de 16 anos ou mais em 112 municípios pelo Brasil entre os dias 12 e 14 de junho próximo passado se O Brasil corre o risco de se tornar um país comunista?

A resposta estimulada e única, foi que 33% concordava plenamente com essa hipótese e 19% concordava em parte. A imprensa noticiou que  52% achavam que o Brasil correria o risco de tornar comunista.

Com isso surgiu a narrativa de que muitos brasileiros supunham que o seu governo tinha em sua Presidência comunistas ou que estaria tentando impor o comunismo ao Brasil.

Dias depois no Foro de São Paulo (FSP), organização que reúne partidos políticos e organizações de esquerda, criada em 1990, a partir de um seminário internacional promovido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), do Brasil, aconteceu um discurso do seu Presidente de Honra onde ele disse que gosta de democracia e que não se ofende em ser chamado de comunista, quiçá poderia deixa-lo orgulhoso.

O que se conclui de ambos os disparates é que tanto o risco quanto a incompreensão da alcunha ofensiva, é que nem os 19% nem os 33% de brasileiros nem o Presidente de Honra do PT sabem do que estão falando quando dizem "comunismo". Por isso a memória dos 15 anos de Casa-Grande & Senzala, ilumina também suas 90 Primaveras.

Gilberto Freyre sempre foi rigoroso ao falar sem leviandade do assunto "comunismo", porque se engatinhava nas pesquisas sociais do que efetivamente estava sendo o "socialismo real", além do fato da contribuição deles na derrota aos fascistas e nazistas, ou porque não se conhecia cientificamente aquele contexto, e ainda do que não se sabia.

Desta forma que nos 15 anos de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre se posicionou contrariamente à cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas em 1948, tal como se opôs a execução dos criminosos de guerra.

Se não bastasse tudo isso, nem o Brasil, nem o Presidente de Honra do PT, nem a Iberoamérica, com exceção talvez de Cuba, sabem de primeira mão o que tem sido o "comunismo".

Não há passagem na história Iberoamérica, nem mesmo em suas versões mais atrozes e ditatoriais, com algo semelhante ao praticado pelos líderes stalinistas na sepulta URSS e outros que implantaram algo análogo em seus infelizes países durante o século XX.

Pensemos, para tocar apenas na história de Stálin e no que este semeou na enterrada URSS com suas próprias mãos entre 1924 e 1953.

Naqueles anos, deixando de lado as baixas da guerra mundial, a política da omelete de Stalin produziu com a sua quebradeira de ovos 20 milhões de mortes dos seus concidadãos nas cidades e no campo com a coletivização da agricultura, com as fomes subsequentes e as vítimas do terror de Estado, cuja sinistra encarnação foi o Gulag.

A história desse "comunismo", de Stálin, apenas igualada, talvez superada proporcionalmente, pela de Pol Pot no Kampuchea, era inseparável do Terror.

Os objetivos ideais prometidos pelo comunismo de uma sociedade melhor e sem exploração nunca avançaram e foram comprometidos ao se estacionar e congelar no Terror.

O que tudo isso tem a ver com o Presidente de Honra do PT, o Brasil ou Iberoamérica? Nada. No máximo tenha a ver apenas com Cuba, e com o que tristemente se desenha hoje na Venezuela e na Nicarágua.

Foi por tudo isso que o camarada Gilberto Freyre e o seu Casa-Grande & Senzala tem nos mostrado ao longo de 90 anos e que o ideal da brasilidade é o bem-estar social.

Rio, 16 de julho de 2023.



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

SÉRIE ESTUDOS - RUY GUERRA NO TEATRO COM DOM QUIXOTE DE LUGAR NENHUM

Ruy Guerra fotografado em O Globo

A Utopia de Guerra

Vagner Gomes de Souza

Ruy Guerra poderia ser reconhecido como um exemplo de um intelectual marcadamente formado pelo lusotropicalismo (se Gilberto Freyre me permitisse a ousadia). Nascido em Lourenço Marques – que os “decolonias” localizem a cidade nos dias atuais – em 22 de agosto de 1931 foi estudar cinema em Paris em 1952 e se radicou no Brasil no simbólico ano de 1958 em plena época do ápice do nacional desenvolvimentismo sob a condução da moderação mineira de Juscelino Kubitschek. Em nosso país, estreou no cinema em 1962 com Os Cafajestes – primeiro filme de nu frontal do cinema nacional – e se uniu ao movimento do cinema novo com Os Fuzis (1964). Sua identificação com os temas políticos sociais urbanos se faz presente no filme A Queda (1978) em que o tema da segurança do trabalho numa obra do metrô do Rio de Janeiro é abordado no ano das greves do ABC. Sem falar na sua vida social que mereceria um belíssimo documentário sobre as fases do feminismo brasileiro se assim houvesse uma diretora disposta a estender esse lugar de fala para tal desafio. Lamentavelmente seu xará Rui Castro ainda não lhe dedicou uma merecida biografia.

Todavia, deixamos a presença de Guerra no contexto do Teatro Brasileiro para merecido destaque, pois sua peça “Dom Quixote de Lugar Nenhum” está em cartaz no Teatro Oi Casagrande (Rio de Janeiro)[1] com preços populares. A peça é um musical (lembrai-vos de Chico Buarque e Ruy Guerra em “Calabar” nos idos de 1973 a enfrentar a censura da Ditadura Militar de onde emergiu a belíssima “Tatuagem”) que é um gênero que o fez dirigir a primeira encenação de “Ópera do Malandro”. Estrelada por Lucas Leto (um Quixote nordestino que foi batizado como Queixada) e Claudia Ohana (atuando como uma satânica anti-heroína) – curiosamente sem trabalhar com o diretor desde o marcante ano de 1989. O musical tem as músicas de Zeca Baleiro numa parceria que mereceria um melhor destaque para os críticos musicais – rarefeitos nos dias da Inteligência Artificial cantada numa publicidade. A história do aragonês Cervantes é inserida no contexto do Nordeste brasileiro para lembrar que ainda temos esse peso demográfico em nossa formação cultural.

Lucas Leto faz história ao ser o primeiro Dom Quixote negro
Reprodução/Instagram

Sob cuidadosa Direção de Jorge Fajalla (premiado por "Senhora dos Afogados"), observamos as cores da iluminação em palco que impactam a visualização do espectador como se fossem as cores de um Almodóvar brasileiro ou de uma Frida Kahlo sem dar seus cochilos. A escolha do musical em forma de cordel foi muito acertada diante de uma apresentação do Coral como se fosse uma “geringonça cultural”. Cego seria quem não quer estar a ver que deixar a escolha da narrativa feita por um personagem com baixa acuidade visual para lembrarmos que os desafios que estão por vir são tamanhas aventuras.

 Entretanto, os tempos são distintos daqueles em que emergiu “Calabar”, pois estava a sociedade brasileira embriagada pela “utopia” de derrotar as forças reacionárias até na aproximação amorosa de Barbara e Ana de Amsterdam sem abandonar a universalidade do debate da questão democrática por linhas do relativismo. Há 50 anos o texto que enfrentou os censores nasceu após a tradução de O Homem de La Mancha (musical da Broadway). Ruy Guerra e Chico Buarque deixaram o projeto pois teriam que trazer os elementos culturais luso-brasileiros para o teatro. Então, em tempos de escolas a ensinar a disciplina Moral e Cívica (que não impediu o surgimento do rock nacional nos anos 80), eles decidiram desenvolver uma peça sobre o elogio da traição uma vez que muitos defensores da Frente Democrática eram denunciados como “traidores e vendidos”. Nosso agraciado com o Prêmio Camões qualifica essa peça como sua única obra política. 

O mesmo não poderá afirmar Ruy Guerra, que em sua eterna busca movida pela utopia de dias melhores pode até reconhecer ter chegado a Lugar Nenhum. |Entretanto, está disposto a continuar na trilha das aventuras com as vitórias adiadas e, quiça, sua aposentadoria.  Portanto, Queixada é o nosso Guerra que ao longo de sua vida intelectual foi transitando da “Guerra de Movimento” para a “Guerra de Posição”. Uma peça em dois atos, mesmo que não se anuncie isso em lugar nenhum, podemos assimilar que a personagem Sancho Pança (interpretado por Danilo Moura) ganha outro tom com sua alma atraída pelo Diabo na Terra do Sol. Digamos que é uma forma suave de provocação ao público que se ausenta de continuar acreditando em fazer as aventuras pelo simples individualismo ou pragmatismo. A dialética sem síntese entre Queixada e Sancho é um alerta para que as novas gerações se dirijam ao Teatro para entender que a esperança se faz com ações não somente digitais. Essa é a utopia de Guerra, ou seja, que os mais novos venham a ocupar os assentos das plateias seja no cinema e nos teatros para viver as aventuras das lágrimas e dos risos como ato de resistência.

[1] Até 23/07/2023 Local: Teatro Casa Grande - Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon

Horário: Quinta a Sábado às 20h | Domingo às 18h