A boca e os genes
Marcio Junior[1]
Lavínia Miranda[2]
Para Catarina Milena.
Os nossos habitus,
sejam alimentares ou não, possuem história e não é à toa que eles variam no
tempo e no espaço, pois os habitus estão atrelados à história de uma
configuração societal e sua complexidade. Como eles nem sempre foram como hoje
o são, é razoável imaginar que compreender também as formas como comemos no
passado ajudam a explicar, inclusive, quais elementos desses habitus
afetaram e/ou afetam a nossa saúde e de que forma isso acontece. Pensemos, por
exemplo, em patologias que afetam a saúde bucal: como mostrou Norbert Elias em
seu O Processo Civilizador (1939), somente no seiscentos o garfo começou
a ser utilizado por dada configuração; até então as refeições de todos eram
feitas em pratos comuns e se mergulhava, quando havia, o pão e quase sempre os
dedos nos humores de todo tipo. É, assim, interessante a hipótese de que a
mudança de habitus alterou a maneira pela qual os nossos corpos ficavam
expostos a diversas circunstâncias e a consequente importância da boca.
Porém, podemos notar
que a boa compreensão de dadas patologias hoje demanda uma volta ainda maior no
tempo. Os estudos sobre o sequenciamento genético hominidea de outrora,
assim como o desenvolvimento de técnicas para que fosse possível fazê-lo com a
menor contaminação possível do nosso material genético contemporâneo, deram ao
sueco Svante Pääbo o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2022. Os
Neandertais, cujos habitus alimentares eram decerto exigentes para a sua
estrutura hoje chamada de orofacial, nos legaram material genético via
acasalamento.
Este fenômeno
específico de transmissão genética de uma espécie para outra, chamado de
introgressão, nos legou vantagens e desvantagens, e dentre elas podemos citar a
presença de genes neandertais em alguns homólogos dos chamados Toll Like
Receptors (ou TLR), conjuntos de receptores proteicos transmembrânicos do
nosso Sistema Imunológico presentes nas nossas células, que se ligam bioquimicamente
à estruturas de antígenos, como vírus, bactérias e fungos, identificando-os e
enviando sinais para que o corpo fique alerta e quiçá busque mecanismo de lidar
com essas presenças. Como existem, entre os TLR, proteínas que ativam e
inativam a resposta imunológica, uma desregulação dessa primeira abordagem de
delineamento do que o organismo pode fazer pode levar a uma resposta exasperada
e, consequentemente, o próprio resultado inflamatório que acontece para contingenciar
face ao corpo que lida com a situação incomoda pode levar ao extremo a sua
própria destruição, como ocorre com várias doenças periodontais mais
recorrentes.
Assim, o estudo destes
fenômenos também pela biologia molecular e pelo acolhimento tanto da
antropologia histórica quanto da paleogenômica fornecem novos registros para a
compreensão de que os habitus estão inscritos no tempo e sua compreensão
deve ser transversal. A forma como comemos e cuidamos da boca é, ao mesmo
tempo, genética, cultural e não só, e a forma pela qual podemos desenvolver
novas terapias, intervenções e políticas públicas para a saúde bucal precisa
levar em conta todos esses fatores.