sexta-feira, 1 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O LEGADO DO HOMEM NEANDERTAL

A boca e os genes

 

Marcio Junior[1]

Lavínia Miranda[2]


Para Catarina Milena.


Os nossos habitus, sejam alimentares ou não, possuem história e não é à toa que eles variam no tempo e no espaço, pois os habitus estão atrelados à história de uma configuração societal e sua complexidade. Como eles nem sempre foram como hoje o são, é razoável imaginar que compreender também as formas como comemos no passado ajudam a explicar, inclusive, quais elementos desses habitus afetaram e/ou afetam a nossa saúde e de que forma isso acontece. Pensemos, por exemplo, em patologias que afetam a saúde bucal: como mostrou Norbert Elias em seu O Processo Civilizador (1939), somente no seiscentos o garfo começou a ser utilizado por dada configuração; até então as refeições de todos eram feitas em pratos comuns e se mergulhava, quando havia, o pão e quase sempre os dedos nos humores de todo tipo. É, assim, interessante a hipótese de que a mudança de habitus alterou a maneira pela qual os nossos corpos ficavam expostos a diversas circunstâncias e a consequente importância da boca.

Porém, podemos notar que a boa compreensão de dadas patologias hoje demanda uma volta ainda maior no tempo. Os estudos sobre o sequenciamento genético hominidea de outrora, assim como o desenvolvimento de técnicas para que fosse possível fazê-lo com a menor contaminação possível do nosso material genético contemporâneo, deram ao sueco Svante Pääbo o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2022. Os Neandertais, cujos habitus alimentares eram decerto exigentes para a sua estrutura hoje chamada de orofacial, nos legaram material genético via acasalamento.

Este fenômeno específico de transmissão genética de uma espécie para outra, chamado de introgressão, nos legou vantagens e desvantagens, e dentre elas podemos citar a presença de genes neandertais em alguns homólogos dos chamados Toll Like Receptors (ou TLR), conjuntos de receptores proteicos transmembrânicos do nosso Sistema Imunológico presentes nas nossas células, que se ligam bioquimicamente à estruturas de antígenos, como vírus, bactérias e fungos, identificando-os e enviando sinais para que o corpo fique alerta e quiçá busque mecanismo de lidar com essas presenças. Como existem, entre os TLR, proteínas que ativam e inativam a resposta imunológica, uma desregulação dessa primeira abordagem de delineamento do que o organismo pode fazer pode levar a uma resposta exasperada e, consequentemente, o próprio resultado inflamatório que acontece para contingenciar face ao corpo que lida com a situação incomoda pode levar ao extremo a sua própria destruição, como ocorre com várias doenças periodontais mais recorrentes.

Assim, o estudo destes fenômenos também pela biologia molecular e pelo acolhimento tanto da antropologia histórica quanto da paleogenômica fornecem novos registros para a compreensão de que os habitus estão inscritos no tempo e sua compreensão deve ser transversal. A forma como comemos e cuidamos da boca é, ao mesmo tempo, genética, cultural e não só, e a forma pela qual podemos desenvolver novas terapias, intervenções e políticas públicas para a saúde bucal precisa levar em conta todos esses fatores.



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

[2] - Graduanda em Odontologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia.

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