quinta-feira, 21 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O DESAFIO DE COMPREENDER OS OUTROS

Compreender outros

Para Benjamin

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Compreender outros: povos, animais, passados, de Dominick LaCapra (Belo Horizonte: Autêntica, 2023 – Coleção História e Historiografia).

 

Neste livro desafiadoramente político - e a epígrafe com Gramsci só confirma -, Dominick LaCapra mobiliza Freud - como muito antes havia feito o Amauta José Carlos Mariátegui, Bakhtin e Derrida para expor os complexos processos mentais na história que acabaram por sustentar a perseguição das hominídeas e das demais formas de vida. O emparelhamento é frutífero, conferindo consistência metodológica a um volume que, como revela LaCapra, não tem um desenvolvimento tão facilmente conexo entre os capítulos.

Para LaCapra, a tarefa principal do livro é “promover o desenvolvimento e a efetividade de um quadro de referência “pós-humanista” (ou diverso do estritamente humano) que situe e limite o humano em um contexto ecológico e existencial mais amplo” (LaCapra, 2023, p. 35). Significa a reconceitualização da individuação, rompendo a tendência de projetar o incognoscível num outro interior em um outro externo (classificado de acordo com sexo, raça, espécie, ou qualquer outra modalidade) que é assim passível de demonização e usado como bode expiatório.

Os vocabulários e metodologias de Freud, Bakhtin e Derrida que se cruzam são mais do que adequados para o propósito político do livro. Minando a fantasia fundadora de uma visão teleologicamente ideológica de um sujeito soberano, sua análise forja um pensamento de futuro que permite a resistência de um antropoceno planetário.

Seguindo Derrida, LaCapra afirma que tal futuro o pensamento é circunscrito por uma consciência inabalável de sua própria provisoriedade. 'Trabalhando permanentemente isso permite em não implicar na conquista de um fechamento e de uma suposta plena identidade e/ou autonomia.

A sua descrição dos espectros – agora definhando e quase em desuso – é fundamentada em um desdobramento cuidadoso de sua historicidade e em uma refutação paciente dos frequentes acusação de relativismo cultural, e daí visando evitar as ressurgências do passado recente como Trump que quase sempre costumam assombrar os vivos, trazendo de volta tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem das sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz, como na tragédia clássica de Hamlet, na bela leitura de Derrida. Espectros que nos rondam, quando os vivos não enterram bem seus mortos, e se investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que são pantomimas do que eles viveram, nas poderosas imagens de Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Contra o pano de fundo desta deflação geológica e meticulosa do indivíduo, soberanias e das espécies, LaCapra, indignado, se posiciona contra a política de Donald Trump. Um exemplo expoente do pensamento que resiste à crítica e à autocrítica, Trump e os seus congêneres como Javier Milei na Argentina e outros são propagadores de uma política de soberania pomposa e narcisista que ignora tanto às lições da história bem como os desafios ambientais e planetários prementes que enfrentamos atualmente.

Impulsionado pela urgência de mobilizar uma resistência eficaz, LaCapra deixa de lado as sutilezas da academia e disciplinares, e move-se rapidamente entre argumentos divergentes para acelerar a transformação das humanidades num antropoceno planetário interdisciplinar. Ocasionalmente, esta abordagem é insuficiente: um envolvimento mais próximo com os estudos biológicos existentes teria enriquecido os relatos de LaCapra sobre a animalidade (que Norbert Elias tão bem evocou) e a lógica dos messianismos que nos rondam.

No entanto, a força do livro não reside na atenção ao intelectual as minúcias, mas em seu enquadramento incisivo de questões prementes e prescientes: como explicar a persistência tão forte em nossa cultura da difamação de outros seres? Como podemos usar insights de Freud, Bakhtin e Derrida sobre a individualidade para construir identidades que não estão enraizadas na violência? Tais questões exigem a colaboração planetária. A grande habilidade de LaCapra está em reviver os métodos de Freud, Bakhtin e Derrida, não como ferramentas para o divã ou para a academia, mas, ao permitir uma relação dialógica ao passado, como ferramentas para se construir um futuro.

Poucas leitoras e leitores discordarão de LaCapra que o cuidado, o rigor e a autocrítica são virtudes importantes em uma cultura como a nossa. Mas a questão é: como pode tal virtudes serem nutridas se a política e a mídia cultivarem hábitos que lhes são prejudiciais? Uma coisa é dizer que as hominídeas podem estimular o pensamento crítico, mas outra bem diferente é promover condições sob as quais as humanidades possam cumprir esta tarefa.

Talvez a resposta esteja nos tetos e na ação nos contextos – textos e contextos difíceis que exigem a plena compreensão das suas leitoras e leitores – pode nutrir hábitos interpretativos autocríticos. Se sim, a boa notícia é que as leitoras e leitores encontraram nesse último volume de LaCapra uma sugestão estimulante de como interagir cuidadosamente com os textos e contextos que questionam alguns dos modos dominantes de individualidade em nosso tempo.

 

20 de setembro de 2023

 



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

Um comentário:

Lucas Azedias disse...

Excelente oportunidade de compreender as ideias de um novo autor! Apesar de não conhecê-lo, estou curioso para saber a forma como dialogou com 3 autores citados!