Para Benjamin
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Compreender
outros: povos, animais, passados, de Dominick LaCapra (Belo Horizonte:
Autêntica, 2023 – Coleção História e Historiografia).
Neste livro desafiadoramente político -
e a epígrafe com Gramsci só confirma -, Dominick LaCapra mobiliza Freud - como muito antes havia feito o Amauta José Carlos
Mariátegui, Bakhtin e Derrida para expor os complexos processos mentais na
história que acabaram por sustentar a perseguição das hominídeas
e das demais formas de vida. O emparelhamento é frutífero, conferindo
consistência metodológica a um volume que, como revela LaCapra, não tem um desenvolvimento
tão facilmente conexo entre os capítulos.
Para LaCapra, a tarefa principal do
livro é “promover o desenvolvimento e a efetividade de um quadro de
referência “pós-humanista” (ou diverso do estritamente humano) que situe e
limite o humano em um contexto ecológico e existencial mais amplo”
(LaCapra, 2023, p. 35). Significa a reconceitualização da individuação,
rompendo a tendência de projetar o incognoscível num outro interior em um outro
externo (classificado de acordo com sexo, raça, espécie, ou qualquer outra
modalidade) que é assim passível de demonização e usado como bode expiatório.
Os vocabulários e metodologias de Freud,
Bakhtin e Derrida que se cruzam são mais do que adequados para o propósito político
do livro. Minando a fantasia fundadora de uma visão teleologicamente ideológica
de um sujeito soberano, sua análise forja um pensamento de futuro que permite a
resistência de um antropoceno planetário.
Seguindo Derrida, LaCapra afirma que tal
futuro o pensamento é circunscrito por uma consciência inabalável de sua
própria provisoriedade. 'Trabalhando permanentemente isso permite em não
implicar na conquista de um fechamento e de uma suposta plena identidade e/ou autonomia.
A sua descrição dos espectros – agora
definhando e quase em desuso – é fundamentada em um desdobramento cuidadoso de
sua historicidade e em uma refutação paciente dos frequentes acusação de
relativismo cultural, e daí visando evitar as ressurgências do passado recente
como Trump que quase sempre costumam assombrar os vivos, trazendo de volta
tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem das
sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz,
como na tragédia clássica de Hamlet, na bela leitura de Derrida.
Espectros que nos rondam, quando os vivos não enterram bem seus mortos, e se
investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que são
pantomimas do que eles viveram, nas poderosas imagens de Marx em O 18
de Brumário de Luís Bonaparte.
Contra o pano de fundo desta deflação geológica
e meticulosa do indivíduo, soberanias e das espécies, LaCapra, indignado, se posiciona
contra a política de Donald Trump. Um exemplo expoente do pensamento que
resiste à crítica e à autocrítica, Trump e os seus congêneres como Javier Milei
na Argentina e outros são propagadores de uma política de soberania pomposa e
narcisista que ignora tanto às lições da história bem como os desafios
ambientais e planetários prementes que enfrentamos atualmente.
Impulsionado pela urgência de mobilizar
uma resistência eficaz, LaCapra deixa de lado as sutilezas da academia e disciplinares,
e move-se rapidamente entre argumentos divergentes para acelerar a
transformação das humanidades num antropoceno planetário interdisciplinar. Ocasionalmente,
esta abordagem é insuficiente: um envolvimento mais próximo com os estudos biológicos
existentes teria enriquecido os relatos de LaCapra sobre a animalidade (que
Norbert Elias tão bem evocou) e a lógica dos messianismos que nos rondam.
No entanto, a força do livro não reside
na atenção ao intelectual as minúcias, mas em seu enquadramento incisivo de
questões prementes e prescientes: como explicar a persistência tão forte em
nossa cultura da difamação de outros seres? Como podemos usar insights de
Freud, Bakhtin e Derrida sobre a individualidade para construir identidades que
não estão enraizadas na violência? Tais questões exigem a colaboração planetária.
A grande habilidade de LaCapra está em reviver os métodos de Freud, Bakhtin e
Derrida, não como ferramentas para o divã ou para a academia, mas, ao permitir
uma relação dialógica ao passado, como ferramentas para se construir um futuro.
Poucas leitoras e leitores discordarão
de LaCapra que o cuidado, o rigor e a autocrítica são virtudes importantes em
uma cultura como a nossa. Mas a questão é: como pode tal virtudes serem nutridas
se a política e a mídia cultivarem hábitos que lhes são prejudiciais? Uma coisa
é dizer que as hominídeas podem estimular o pensamento crítico, mas
outra bem diferente é promover condições sob as quais as humanidades possam
cumprir esta tarefa.
Talvez a resposta esteja nos tetos e na
ação nos contextos – textos e contextos difíceis que exigem a plena compreensão
das suas leitoras e leitores – pode nutrir hábitos interpretativos
autocríticos. Se sim, a boa notícia é que as leitoras e leitores encontraram nesse
último volume de LaCapra uma sugestão estimulante de como interagir
cuidadosamente com os textos e contextos que questionam alguns dos modos
dominantes de individualidade em nosso tempo.
20 de setembro de
2023
[1] Presidente da
CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.
Um comentário:
Excelente oportunidade de compreender as ideias de um novo autor! Apesar de não conhecê-lo, estou curioso para saber a forma como dialogou com 3 autores citados!
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