Lembranças sobre José Murilo
Por Pablo Spinelli
É uma ironia da história saber que um cientista social que se debruçou
sobre a Revolta da Vacina ter tido a sua vida e longa carreira eclipsada pelo
coronavírus. E assim se foi José Murilo de Carvalho, intelectual de fala bem
amineirada, com tom conciliatório típico das Gerais.
A obra clássica de José Murilo vem de longe, nos anos 1970 com uma parte
de sua defesa de doutorado, A Construção da Ordem - a elite política
imperial, publicada em 1980. O seu texto e enfoque acerca do estudo das
elites que remontam o esquecido Gaetano Mosca (1858-1941). José Murilo exibiu
de forma acurada a formação da elite imperial do país recém-nascido, as
clivagens existentes nessa elite, a importância da formação profissional ou
acadêmica e até a origem do nascimento dos legisladores mais importantes. A sua
obra mostra que nem tudo pode ser resumido em "as elites" ou
"classe exploradora do proletariado", chavões que para o autor seriam
aberrações.
Interessante notar que somente por "A Construção da Ordem",
José Murilo já seria obrigatório. Mas somente em 1988, no ano da Constituição,
seria publicada a outra parte de sua tese, O teatro das sombras - a política
imperial; onde o campo de análise consiste no cenário político do II
Reinado, com o país consolidado na hegemonia tripartite da
agroexportação-escravidão-latifúndio. A popularidade do autor se torna
manifesta para fora dos muros acadêmicos com o livro Os bestializados: O Rio
de Janeiro e a República que não foi, publicado em 1987, no momento da
Constituinte brasileira. O enfoque do livro mostrou o quanto de involução foi a
República brasileira, cuja afirmação desse sistema resultou em exclusão da
cidadania e autoritarismo, seja dos militares, seja dos latifundiários. Uma
República que não foi República, esse é o tom do livro que evoca muito a
concepção de Alexis de Tocqueville acerca dos efeitos da Revolução Francesa em
seu país.
Não creio ser um equívoco que havia em José Murilo de Carvalho um traço
aristocrático democrata que se assemelhava com a tradição de Joaquim Nabuco. Há
ecos em seus livros sobre o que poderia ter sido feito ainda no Império se D. Pedro
II fosse menos complacente com os escravocratas ou quiçá em um Terceiro
Reinado. Como bom cientista social, Murilo sabia que não podia tratar do
"se", mas seria interessante para futuros cientistas sociais
compararem sua obra com a de Gilberto Freyre e o que há de nostalgia e
reformismo nabuconiano em ambos.
Por fim, o Brasil perdeu um grande cientista social que perfilou com
vários outros o quadro de uma intelligentsia carioca alocada no antigo e
saudoso IUPERJ em Botafogo. Ali, perto da Casa de Rui Barbosa, José Murilo
refletia sobre os efeitos nocivos do positivismo no seio militar e este, na
construção da ordem (não) democrática tal como as incompletudes da cidadania
nesse país que optou mais pelo viés da construção da ordem pela modernização e
abriu mão da construção do progresso pelo moderno. Sou do tempo que era
interessante na universidade divergir de José Murilo de Carvalho, chamá-lo de
"monarquista" como se fosse um impropério, mas, ao mesmo tempo,
deleitar-se com seus livros, aprender mais sobre o Brasil que não foi, o que
poderia ter sido e o que ainda pode ser na formação da vida e das almas dos
cidadãos desse país.
XXXXX
Para saber mais sobre o autor em nosso momento político sugerimos o livro abaixo.