A ousadia da prudência do governo da Frente Democrática
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Daqui a alguns dias a espera terminará
e a reforma ministerial terminará e um novo impulso governamental começará. O
governo que está à porta traz muitas novidades, representa uma profunda mudança
política, promovida por forças políticas construídas em poucos anos.
A nova classe dirigente é filha do
processo de modernização reformista que levou à vitoriosa Frente Democrática de
2022, que durante anos foi duramente criticada por posições da esquerda. Com
eles se construiu a atual coalizão política, não isenta de atritos internos. Eles
estão unidos mais pela necessidade da democracia.
Como bem sabemos, paralelamente a isso
ocorreu o suicídio autoassistido de uma direita e extrema-direita com complexo
por seu trabalho de destruição, sem vergonha de suas mazelas, sem vergonha dos seus
deslizes, em permanente estado de alucinação como se viu em 8/1.
Por sua vez, a direita e a
extrema-direita se feriram seriamente ao liderar um governo esquizoide, onde
nele se abriu para setores liberais, mas também houve a decantação de uma
direita dura com nostalgia autoritária, que acabou por representá-la nas
últimas eleições.
Assim, o quadro político que mudara em
favor de visões extremas, foi cedendo espaço a moderação do centro e da direita
e esquerda democrática que foram paulatinamente sendo reconstituídos.
As últimas eleições legislativas coincidiram
com o apogeu dessa polarização e do culto da pureza antipolítica em relação às
formações tradicionais.
No segundo turno presidencial, a Frente
Democrática, que havia ficado latente e em primeiro lugar no primeiro turno, Lula
& Alckmin tiveram o talento e capacidade política para entender que só com
sua conformação efetiva venceria se convencesse um setor moderado, não
revolucionário e republicano de que, se eleito, iria garantir transformações
profundas, graduais e respeitando as regras democráticas. Isso lhe permitiu
obter a maioria eleitoral.
Estes sinais permaneceram existindo
depois das eleições, e o início do governo da Frente Democrática continuou a
mostrar contenção e sentido de Estado alheios a exacerbações identitárias,
aproximando mesmo aqueles que se insultavam no passado, moderando a sua visão
crítica da transição democrática e demonstrando respeito e talvez até mesmo
admiração por seus líderes.
Sem dúvida, a medida mais significativa
foi a nomeação de Simone Tebet para o Planejamento e Orçamento. Mas agora
trata-se de assumir uma nova disposição governamental e os sinais já não
bastam. Chegou a hora de decisões que têm tanto efeitos reais quanto
simbólicos. Chegou o momento em que as promessas de governo devem ser confrontadas
com uma realidade mutável e muito complexa. Nem tudo o que foi prometido será
alcançável, como Goethe apontou nas palavras maliciosas de Mefistófeles a Fausto,
“Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde é a árvore dourada da vida”.
O início de inocência será deixado para
trás. Como sempre acontece, quem governa de objeto da esperança torna-se objeto
da suspeita. Querendo ou não, a Frente Democrática se torna o coração da política,
com enormes responsabilidades de liderança, enfrentando dificuldades cotidianas
e estratégicas, deve aprender a exercer o poder com ousada prudência e sem
perder a alma.
Um elemento decisivo é a convicção
democrática do governo, a convicção de que sua legitimidade não advém apenas do
ato eleitoral, mas do exercício do poder de acordo com as regras democráticas.
Ter sempre em mente que ao vencer, nem
tudo foi ganho e que seus adversários não perderam para sempre. Não fazer isso
é estranho à prática democrática. É pensar que alguém possui toda a verdade
política. E a verdade absoluta na democracia não existe, é algo típico do
autoritarismo e das ditaduras.
Vassili Grossman, o grande escritor soviético
de raízes judaicas ucraniana, ensina-nos em Vida e Destino que por vezes
a boa vontade, as excelentes intenções e a vontade determinada de fazer o bem
podem ter efeitos perversos, porque o mal pode vir de quem quer impor a todos a
sua ideia particular de bem.
A democracia é um sistema que coloca
barreiras a este perigo através da separação dos poderes do Estado e dos
contrapesos do poder, que impedem a sua concentração e asseguram o respeito
pelas minorias, permitindo-lhes a possibilidade de se tornarem maioria se os
cidadãos assim o decidirem.
Os tempos que virão não serão fáceis
para o governo da Frente Democrática. Serão tempos conturbados, os efeitos do
passado recente limitarão o nosso funcionamento.
A queda em nosso desenvolvimento econômico e social começa a ser recuperada. Muitas reformas dependerão da saúde de nossa economia e o ambiente geopolítico internacional seguira muito incerto e instável, como mostra hoje a situação no Leste Europeu e alhures. Por isso é boa a reforma ministerial que alarga o debate e se diversificam as vozes, daí a virtude dessa, que se deve ter em conta em vez de ser vilipendiada.
Nenhuma autonomia é absoluta na
democracia. O novo elã governamental deverá influenciar as forças que o apoiam
no Congresso Nacional, incitando-as a chegar a compromissos e equilíbrios que
permitam mudar o tom do atual processo, sem dúvida laborioso, mas muitas vezes
surdo e intemperante, e chegar à política que protege a democracia, os direitos
sociais do bem-estar, continuidade histórica e que seja aceitável para todos.
Hoje aquela expressão em Ética a
Nicómaco que Aristóteles proferiu “virtus
in medium est” (no meio está a virtude) parece fazer muito sentido.
9 de agosto de 2023
[1] Presidente da CEDAE
Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.