Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
No Museu Victor Meirelles, em
Florianópolis existe uma de suas pinturas muito impressionante que leva o nome A
jangada
da Medusa. É sem dúvida um estudo da obra-prima inspirada em um naufrágio que
comoveu a França no início da Restauração Francesa, que Pierre Rosanvallon apresentou
em O momento Guizot.
Foi pintada por Victor
Meirelles entre 1857 e 1858 e deriva da tela de 1818 e 1819 de Théodore
Géricault, pintor fundamental do romantismo francês.
Em 2 de julho de 1816, a fragata
francesa Medusa encalhou e como o número de botes salva-vidas era bem
menor que a tripulação (como se daria anos depois com o Titanic), os que
não conseguiram ocupar os botes construíram uma grande jangada para se salvar.
Após 13 dias de medo e miséria, dos 147 que ocupavam a jangada, apenas 13
sobreviveram, a grande maioria pereceu por descaso e irresponsabilidade.
A aprovação do Projeto de Lei de Conversão
Nº 12 na passagem do dia 31 de maio para o 1º de junho, onde foi estabelecida a
organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios,
não tem, evidentemente, o drama e a irreversibilidade desse trágico naufrágio.
Muitos democratas não gostaram do
resultado porque o considerou distante de certo equilíbrio de forças que teria
facilitado o diálogo e o debate visando fortalecer e conformar os princípios
pactuados como espinha dorsal da nova administração, de modo a obter uma lei
capaz de ser ao mesmo tempo democrática, social, moderna e protetora dos
direitos e deveres da república.
Seria um erro, porém, pensar que o
resultado daquela aprovação, realizada de forma legítima, coloca o Brasil no
quadro de Victor Meirelles, em situação de extremo perigo para a convivência
democrática.
Felizmente, o tom tanto do governo da
Frente Democrática quanto dos chefes dos partidos do Centrão responsáveis por
essa aprovação em suas intervenções após o resultado não teve um caráter
apocalíptico e disruptivo quando se referiam ao futuro.
O esforço para continuarmos no esforço
para chegar a um acordo razoável sobre a questão governamental e não deve parar
por aí e ao projetarmos o que aconteceu devemos vê-lo como uma oportunidade da
formulação abrasileirada da "geringonça" que concedeu a Chico Buarque
o Prêmio Camões.
Isso requer uma disposição positiva e muito
determinada tanto dos envolvidos diretamente que tiveram forte apoio quanto dos
que tiveram uma participação indireta, que deve ser expressa na vontade de
produzir acordos.
Isso implica a necessidade de os partidos
governantes modificarem realisticamente suas aspirações prioritárias na atual
correlação de forças. Para isso, o governo deve abandonar sua ambivalência e ambiguidades
e jogar a cartada social-democrata e gradual com coragem e, sobretudo com
convicção, mesmo quando isso significar fortes tensões com os setores mais
obtusos de seus partidários.
A direita tradicional, cujo eleitorado marcou
sua posição após a derrota da sua vertigem da tentação radical, embora soe contraintuitivo,
deve confirmar uma identidade moderada e não apostar na radicalização,
praticando assim uma racionalidade que tira lições do que aconteceram noutras
partes do mundo. É claro que o ambiente político negativo que o país viveu
acelerou todos os processos em curso.
O desânimo e desconfiança com a
política se refletiu como, também, felizmente, afastou os organizadores da antipolítica.
É bem verdade também não ter havido tempo para quem, de posições reformistas
progressistas, levantasse a necessidade de reformular naquele espaço uma forte
vontade de existir em dialogo, sem o qual não tem como dar bons frutos.
Esta última permite uma dupla
interpretação, a de quem pensa que é um novo início da centro-esquerda e outra,
ainda mais importante, que faz parte do corajoso início de um longo caminho
junto com as novas expressões políticas do Centrão para construir esse espaço
de reforma que o Brasil tanto precisa.
Naturalmente, em certa esquerda,
florescerá o eterno pensamento de que quanto pior as coisas, mais próximo
chegará o momento mágico da revolução, o fogo purificador que nos levará a nos
submetermos aos seus sonhos, que até hoje, historicamente, sempre terminaram em
insuportáveis pesadelos.
Parece que aqueles de nós que passamos
anos dizendo, contra todas as probabilidades, que o prudente avanço com o qual
construímos a democracia depois da ditadura, com todos os seus limites, não só
era a trajetória acertada e é o melhor caminho a seguir. Os rumos em busca ao desejo
da perfeição democrática, embora nunca perfeita, dá-se por passos mais sólidos
que longos.
Como esse caminho foi perdido 4 anos
atrás, há poucas notícias boas e muitas notícias ruins. No final, depois de
empurrar tanto o país para a direita, acabou por aparecer uma extrema direita obscura
de semblante internacional. Entretanto, isso criou um descontentamento
generalizado com os rumos do país, com uma sinalização Duas-Caras, onde ao lado
dos que supostamente constroem operam os que destroem que abarrotam o seu
próprio governo de reivindicações insatisfatórias e caminhos de desenvolvimento
marcados por uma confusa doutrina de quem abunda em emoções e slogans e falta
de pensamento.
A mudança de rumo de 2023 não significa abrir mão do horizonte de uma sociedade mais justa, significa fazê-lo com base em amplos acordos. Mas acima de tudo, tendo como prioridade as necessidades da geringonça abrasileirada advinda da Frente Democrática.
Em primeiro lugar, recuperar o que perdemos a segurança dos cidadãos, a paz social, uma convivência ordeira, diga-se de passagem, democrática e baseada em direitos e deveres. Todo o esforço deve ser dedicado a isso, não pode haver Democracia se não houver Estado, se não houver regras e se não for aplicada a força quando for necessário para fazê-las cumprir, no norte, centro e sul do país.
Educação e saúde de qualidade e provisão, trabalho e pensões dignas. A democracia para viver e se desenvolver exige convicção em seus princípios, mas também resultados concretos e estes precisam estar funcionando. Não há outra maneira de reconstruir a confiança. Chega de dar espaços prioritários a besteiras que só respondem a devaneios tribais. Ou nossa democracia é capaz de ser justa e eficiente ou corre o risco de se desgastar, esvaziar-se e definhar.
4 de junho de 2023
[1] Presidente da CEDAE
Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.