domingo, 11 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

 

Uma década de saudade de Eric Hobsbawm

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Eric Hobsbawm (1917-2012) morreu em 1º de outubro aos 95 anos, foi o mais proeminente historiador do século XX e um defensor da justiça social por toda a vida. Já o conhecia de leitura de longa data, mas pessoalmente só por ocasião de seu tour de lançamento no Brasil de Era dos Extremos em 1995.

Nascido em Alexandria, Egito, filho de pai britânico e mãe austríaca, foi educado em Viena e Berlim. Seus responsáveis o levaram para Londres em 1933 quando Hitler chegou ao poder e ele viveu o resto de sua vida na Inglaterra, onde lecionou por muitos anos no Birkbeck College de Londres.

Quando adolescente, Hobsbawm não apenas testemunhou a ascensão do nazismo, mas esteve presente em 1936 na massiva manifestação popular em Paris que celebrou a vitória eleitoral da Frente Popular. Os acontecimentos daquele período turbulento o levaram a se filiar ao movimento e partido comunista e permaneceu filiado até seu desaparecimento na década de 1990, principalmente, escreveu ele, por respeito à memória de companheiros que sofreram perseguição ou morte por suas crenças políticas.

Os escritos históricos de Hobsbawm trouxeram uma análise sofisticada que via o conflito de classes como uma força motriz da mudança histórica, mas rejeitava as estruturas teleológicas. Como o próprio Marx, Hobsbawm via o capitalismo como um sistema social global, que precisava ser analisado em seu conjunto, e rejeitava noções de inevitabilidade histórica. Ele insistia que as pessoas deveriam se esforçar para vislumbrar uma ordem social mais humana, mas que a história não tinha uma trajetória predeterminada. Seus escritos sobre a história do trabalho britânico ajudaram a lançar a “nova história social” que dominou os estudos históricos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, ele sempre pontuou que os estudos sobre a ação de pessoas comuns, tão importantes para expandir o elenco de personagens históricos, devem ser colocados no contexto mais amplo de como as relações sociais e o poder político é exercido.

Os livros de Hobsbawm cobrem uma incrível variedade de assuntos. Ele ganhou destaque na década de 1950 com sua contribuição para o que era então um debate animado sobre a “crise geral” da Inglaterra do século XVII. Juntamente com E. P. Thompson (1924-1993), os escritos de Hobsbawm ajudaram a inspirar a expansão da história do trabalho, dos estudos dos sindicatos ao exame da vida dos trabalhadores, e desencadearam um interesse em banditismo, anarquismo rural e outras formas do que ele chamou de protesto “pré-político”.



Hobsbawm ficou mais conhecido por sua magistral série das Eras, que juntas contam a história mundial desde o início das Revoluções do século XVIII até o fim do século XX. Muito antes da atual moda de “internacionalizar” o estudo da história, Hobsbawm insistia que o capitalismo é um sistema global, que deve ser estudado em um contexto global. Os livros se basearam em eventos em todas as regiões do mundo e em fontes e estudos em vários idiomas. Hobsbawm sentia-se à vontade para discutir assuntos tão distantes da Grã-Bretanha quanto os eventos que deram fim a colonização na Ibero-América, a Restauração Meiji no Japão e a ascensão ao poder global dos Estados Unidos da América, mas foi capaz de mesclar detalhes locais em um relato coerente da política global, mudanças econômicas e sociais. Os relatos também abordam arte, cultura, ciência, tecnologia e outras questões da criatividade e experiência planetária. Esses livros seguem sendo o ponto de partida para quem busca uma história abrangente do mundo moderno.

Um polímata, Hobsbawm também foi um notável crítico de jazz, por muitos anos escrevendo críticas musicais sob o nome de Francis Newton. Ele era um ensaísta talentoso sobre assuntos atuais, cujos escritos tinham um amplo público entre os interessados em política. Em qualquer gênero, suas obras eram lúcidas e poderosas, e sempre carregavam uma inflexão ética.

Pessoalmente, o conheci e troquei breves palavras naquela noite de 16 de agosto de 1995 na palestra que fez no auditório de O Globo, no Rio de Janeiro. Hobsbawm era uma pessoa gregária, de mente aberta e generosa, cujo grande círculo de amigos abrangia todo o espectro político e social. Sua vida e seus escritos servirão por muito tempo de inspiração para aqueles que acreditam que o conhecimento da história é essencial para entender o mundo atual e para a luta por criar um mundo melhor.

 

19 de agosto de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.






sábado, 10 de setembro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 31 - BALANÇO DA CAMPANHA ELEITORAL 2022


Ciro Nogueira orienta Jair em evento do Palácio do Planalto
 Foto: Paulo Ladeira (13/12/2021)

Estratégias da Direita Racional

Vagner Gomes de Souza

O cenário de uma desgastante disputa eleitoral no segundo turno está se avizinhando sob a ameaça de derrotas eleitorais em estados da federação “chaves” para o campo democrático. A Direita Racional, muito bem capitaneada pelas forças políticas do mais articulado bloco político chamado de “Centrão”, desenvolve uma campanha para além das táticas eleitorais. Eles estão deixaram de ocupar nenhum bairro como se fossem até aliados do lulismo. Todas as desvantagens políticas acabam por ser imobilizadas por essa configuração diante da falta de condição das forças democráticas em pautar o debate eleitoral até o presente momento. Oportunidades perdidas como no recente falecimento da Rainha da Inglaterra que lutou na Segunda Guerra contra o Nazifascismo.

Não é novidade nosso alerta de que não se poderia entrar numa campanha eleitoral sem um debate programático que apresentasse mais um Brasil no futuro que um “Book Digital” de boas realizações do passado. O eleitor jovem não viveu ou não tem memória política para se mobilizar com os temas do passado ainda mais diante do “negacionismo” de algumas vertentes esquerdizantes sobre nossa formação histórica quanto ao sucesso de nossa trajetória política nacional no cenário mundial.

Diante disso, onde está a juventude espontaneamente nas ruas a fazer uma campanha eleitoral em favor de um Brasil republicano e democrático? Esse segmento se autoisolou nas redes sociais, pois PROUNI, PRONATEC, ENEM e outras siglas ainda não atingem a sensibilidade do momento: a morte de emprego diante dos avanços tecnológicos. A precarização do trabalho que mais atinge aos jovens mais pobres o faz se distanciar de uma mobilização eleitoral acadêmica com essas leituras em derivas sobre o eu. Assim, o “Centrão” ganhou fôlego nas camadas médias e superiores da pirâmide social com polêmicas e anima o debate referente aos temas de costumes, ou seja, superestruturais.


Diante de quase 700 mil ausências causadas pela COVID, em que momento as mães, viúvas, noivas, namoradas, filhas, avós vão ter um lugar de fala sobre esse drama social na campanha eleitoral das forças democráticas? Ainda não se falou sobre as consequências econômicas duradouras dessa Pandemia. Portanto, há o genocídio na comunicação de uma campanha ao dialogar com as camadas populares de forma muito rebuscada nas palavras. De mobilizações de ruas carnavalescas, um segmento político do campo democrático assumiu um perfil mais e mais sectário ao não saber mobilizar o leitor mais popular que pode estar a votar no primeiro turno na coligação Brasil da Esperança, mas nas legislativas vota em candidaturas alinhadas a coligação Pelo Bem do Brasil.

A ausência das falas programáticas faz essa campanha ficar a depender de carisma ou avaliar que dancinhas num aplicativo digital vai sensibilizar um eleitor. Porém, no momento que chegar ao supermercado, o mesmo eleitor percebe menos contratação de empregados mais associados a carestia dos preços dos alimentos. A fome estrutural enraizadas nos empregos informalizados. No país que teve Josué de Castro, um profundo silêncio programático sobre o ensinamento de José no Velho Testamento sobre a reserva de alimentos nos tempos das vacas gordas. Assim, que o tema da religiosidade poderia ser abordado ao contrário de ficar numa defensiva. Esse é o momento de separar o “joio do trigo” diante das armadilhas identitárias mobilizadas pelo bolsonarismo ao dialogar com um fundamentalismo religioso que só existe nas mentes dos coordenadores de campanha táticas de campanha americanizadas. Ainda somos o país da religiosidade do sincretismo que é também econômico e social.

Contudo, abre-se um Mar Vermelho para os votos aos “Vermelhos Americanizados” (nossa referência ao perfil do eleitor que defende pautas semelhantes ao Partido Republicano dos EUA cuja cor é vermelha). As ruas estão vazias de militância das candidaturas do Brasil Esperança ao legislativo a falar do preço do leite. Talvez seja por ser uma bebida de cor branca. Além de falar da carne mais barata. Apresentemos soluções mais sustentáveis para não termos uma carne bovina mais cara do planeta. Os problemas energéticos na Europa por causa da Guerra da Ucrânia expõem os erros do discurso “anti-imperialista” retirado dos museus de uma jovem militância que não está fazendo o eleitor da coligação fazer campanha republicana e democrática.

Presidente Lula na sanção da Lei do Dia Nacional da Marcha de Jesus em 03 de setembro de 2009 (fonte Agência Brasil)

Esse é o momento de não se envolver numa “Guerra Digital” em busca de narrativas. Vivemos o momento de fazer o que sempre foi mais marcante aos militantes do campo democrático. Estar debatendo o futuro com o eleitor nas ruas. Diferente de 2018, a Direita Racional está nas ruas com recursos de um possível secreto orçamento. Cada candidatura proporcional das forças do “Centrão” está mobilizando a campanha da reeleição do Presidente. Não se iludam com as danças das baianas nas redes sociais, pois em carnaval até flamenguistas dançam com vascaínos. Deixamos a política ser essa carnavalização sem ideias. Devemos corrigir os rumos com mais contato com os eleitores nas ruas priorizando também as candidaturas proporcionais em bairros populares. Por exemplo, o que estão a fazer no maior bairro do Brasil para reverter os resultados de 2018 (Campo Grande – Rio de Janeiro)? Não se pode estar a ficar com “boca-de-siri”, pois há sinergia política das eleições proporcionais para a majoritária.

Então, Ciro é o grande vitorioso até o presente momento nesse cenário eleitoral aqui desenhado. Soube mobilizar a superestrutura para evitar os temas econômicos inconvenientes. De forma racional, Ciro sabe que não se pode debater a economia do país. Mais temas de Igrejas e menos temas do Supermercado. Deixe o mercado das narrativas fraturar ainda mais o campo democrático. Essa é a estratégia racional da Direita articulada por Ciro Nogueira. Reconhecer esse ponto é o começo para que haja uma nova postura nos próximos 21 dias. Ainda há possibilidades se começar a mobilizar o eleitor através das campanhas ao legislativo. Nada de cada território o meu voto. Agora é, Brasil Esperança é meu território.


domingo, 28 de agosto de 2022

SÉRIE ESTUDOS - A TROPA e a Democracia no divã

A Tropa e o Complexo de Édipo mal resolvido

Por Vagner Gomes de Souza

 

A Tropa é uma oportunidade para uma diversidade de brasileiros façam um balanço sobre o papel da democracia em nossa História. Ameaçada muito mais pelo desafio de superar uma crise econômica pouco debatida ainda nessa campanha eleitoral. Apesar dessa nossa percepção brechtiana, texto de Gustavo Pinheiro demonstra uma inspiração shakespeariana ao colocar um pai hospitalizado diante de seus filhos que lidam com o passado e enfrentam dilemas em relação ao futuro. William Shakespeare foi o dramaturgo da transição do feudalismo para o capitalismo e a peça se insere num momento de descoberta de novos textos que contribuam para uma percepção positiva da nossa “revolução passiva”

O conteúdo dramático dessa peça não impede que o público tenha muitos momentos de risos, pois está diante de seus olhos também as linhas tortuosas de nosso país. Faz-se no riso a nossa resistência como ensinou o saudoso Paulo Gustavo que criou a “Senhora dos Absurdos”. Afinal, fica evidente que esse pai centralizador, preconceituoso e autoritário faz parte de segmento da sociedade que ganhou força no cenário eleitoral brasileiro. Ele é a versão masculina da personagem do ator citado.

O pai, numa interpretação magnífica de Otávio Augusto (fazendo justiça aos 60 anos de carreira), é um coronel reformado que atuou na Ditadura Militar. Os detalhes sobre suas responsabilidades nesse momento histórico do país não são de todo revelados. Cada um na plateia faça seu juízo. Fica um espectro a rondar de forma cinzenta que serve de convite para mais saber sobre esse período que foi de 1964 até 1985.

Afinal, o drama maior está na família e ganha força no decorrer dos diálogos da peça à medida que os quatro filhos aparecem para visitar esse moribundo. A entrada de cada um seria uma bela metáfora sobre os governos militares. Não há a necessidade de conhecer certos detalhes como os descritos nos livros de Elio Gaspari[1]. Bastaria conhecer o básico das habilidades referentes aos estudos desse período para se conferir as características dos mandatários da Presidência da República nos perfis dos filhos: contemporização com o conservadorismo, “grande capital” enriquecido pelo Estado, a distensão nos relacionamentos e a dependência de uma busca de afeto.

Foto: Tariq Bastos de Souza

Além disso, os atores que interpretam os filhos inseriram determinados tiques nervosos na sua atuação ao palco que poderiam mobilizar a leitura da psicanálise freudiana diante da morte de um dos irmãos num acidente que é um tabu.  Abre-se um debate sobre a sua responsabilidade. Revelam-se atributos do conservadorismo que muito se evidenciam no complexo de Édipo mal resolvido. Uma instigante sugestão que a crítica teatral brasileira poderia apresentar ao debate desse texto para se rever nosso papel no mundo democrático em sua universalidade. Além disso, a doença do pai atinge sua mente e não se sabe o tamanho dessa gravidade e suas motivações.

Isso nos permite as percepções sobre novas posturas autoritárias de grupos sociais fraturados na sociedade brasileira como se o Rei Sol estivesse presente em cada um. A soberania de só querer falar, mas sem saber ouvir. Entretanto, ainda não nos desfizemos da memória positiva de um “pai dos pobres” que deixou um legado forte de sentimento nacional e ainda mobiliza o carisma em política.

Todavia, o narcisismo social colocou segmentos sociais numa “camisa de força” por busca frenética pela soberania dos lugares de falas enquanto o país tem o neto de Roberto Campos (citado da peça) como Presidente do Banco Central na mesma faixa etária do primeiro filho. Neto de um Ministro do Planejamento do primeiro governo após o Golpe de 1964.

Consequentemente, A Tropa muito bem nos instiga a pensar sobre se nossa democracia imperfeita teria condições de evitar os fantasmas golpistas. A Peça é uma grande terapia em grupo que poderia partir da questão: “Quais seriam os melhores críticos a pensamento econômico da Ditadura Militar nos dias atuais?” Ela é uma ficção que faz um convite para que o público saia da camisa de força ideológica no seu cotidiano e na formulação dos debates programáticos uma vez que teremos eleições gerais em que há o importante desafio da  democratização do perfil dos novos representantes do Congresso Nacional.

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FICHA TÉCNICA – A TROPA:

Texto: Gustavo Pinheiro
Direção: Cesar Augusto

Assistente de Direção: Gabriel Albuquerque

Elenco: Otavio Augusto (Pai), Alexandre Galindo (Artur),Alexandre Menezes (Humberto), André Rosa (Ernesto) e Daniel Marano (João Baptista)
Assistente de interpretação: Mar Martins
Iluminação: Adriana Ortiz
Figurinos:Ticiana Passos
Fotos e Vídeos:Elisa Mendes e Fernandovisky
Assessoria de Comunicação: Alessandra Costa
Produção Executiva: Luciana Zule
Direção de Produção: André Roman
Coordenação Geral de Projeto: Alexandre Galindo
Realização: GêneseProduções e AR Produções

SERVIÇO:

Teatro PetraGold (Rua Conde de Bernadote, 26 - Leblon) - Rio de Janeiro


[1] O jornalista Elio Gaspari escreveu uma série de quatro volumes sobre a História da ditadura militar brasileira aonde só os títulos contribuem para pensar nos filhos do Coronel. A ditadura envergonhada ; A ditadura escancarada; A ditadura derrotada, A ditadura encurralada servem como sugestão de leitura para as curiosidades despertadas após assistirem a peça.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

SÉRIE ESTUDOS - UM LIVRO PARA O AGOSTO LILÁS


 

O verão invencível invernal

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Garza, Cristina Rivera. El invencible verano de Liliana. Ciudad de México: Penguin Random House, 2021. 304 págs.

 

Vídeo sobre os 10 anos da Lei Maria da Penha 

Talvez o nosso público nunca venha a ler esse livro admirável por sua profissão, por sua verdade, por sua palpitação explosiva no seio de nossa barbárie cotidiana de feminicídios.

É o livro da mexicana Cristina Rivera Garza sobre o feminicídio de sua irmã Liliana, em 16 de julho 1990, na Cidade do México, durante o governo de Carlos Salinas de Gortari (PRI).

O livro começa em 2016, com a busca análoga do argentino Eduardo Sacheri em O Segredo dos Seus Olhos (São Paulo: Suma de Letras, 2011) nos arquivos dos feminicídios calados e apagados. É uma lição de artesanato narrativo e criação de atmosfera.

Resultado: não há arquivo, não está disponível nem digitalizado ou qualquer outro formato. Precisamos seguir procurando. Portanto, devemos reconstruir o que aconteceu, devemos escrever um romance histórico.

Liliana, como a brasileira filha de migrantes Araceli Cabrera Sánchez Crespo (1964-1973) que José Louzeiro (1932-2017) primeiro registrou em Aracelli, Meu Amor  (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) e depois a Lei N° 9.970, de 17 de maio de 2000 (instituiu o dia de seu nascimento em 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), Ângela Diniz (1944-1976) e todas as recordações póstumas a ela e de tantas outras, não sabia como ou por que ia morrer, embora soubesse de uma forma sombria, por causa da natureza violenta, repetida, ciumenta, invisível aos outros, de seu feminicída.

Liliana é apresentada como uma menina muito inteligente, cheia de perguntas e alegrias. Ela estava deixando sua marca clara na percepção dos outros e em textos admiravelmente organizados com sua caligrafia retilínea, de uma arquiteta em ascensão.

Cristina Rivera Garza encontra nas cartas da irmã imagens de seu desejo de viajar e ser recebida, de suas relações com amigos, primos, com a própria mãe e com quem mais tarde seria seu assassino. Boa parte do arquivo de Liliana é composto por cartas para seus amigos. Eles não são apenas os mais numerosos, mas também os mais cuidadosamente escritos. Uma carta de um amigo não era apenas um pedaço de papel cravejado de letras: o meio era tão importante quanto a mensagem. De alguma forma, esses escritos nos lembram Emily Dickinson (1830-1886), pois os seus textos reúnem sua imagem em uma narrativa sensível.

Entretanto, as emoções de Liliana e seus vários ritos de passagem da infância à adolescência, ao sexo, ao aborto não são retilíneos.

São as navegações de uma mulher real, atravessada por encantos, dúvidas, cicatrizes prematuras e suas liberdades exercidas a flor da pele.

Essa jovem, nadadora, esbelta, cada vez mais livre e aparentemente no controle de si mesma, é retratada nas memórias de seus amigos, e na hermenêutica de seus cadernos, trabalhados pela Cristina Rivera Garza.

Segue-se o grande momento do romance histórico, o movimento de como Liliana se afasta, passo a passo, da ideia doentia e ficcional de posse - um retrato que recorda Karl Polanyi (1886-1964) - de seu primeiro namorado, do seu sentimento de amor recorrente, do seu gélido carrasco, até que, finalmente, em seus textos, ela se constrói livre de seu opressor e suposto proprietário.

É então que o opressor sabe que a perdeu, ele entra em sua casa uma noite e a afoga.


Vamos colocar aqui o nome do feminicída porque ele é foragido e deve ser levado à justiça: Ángel González Ramos.

El invencible verano de Liliana tem uma epígrafe advinda de uma passagem de Albert Camus (1913-1960) em Retorno a Tipasa (1952), que também se fez epígrafe para Isabel Allende no seu Muito além do inverno (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017): "No meio do inverno aprendi, finalmente, que havia em mim um verão invencível." A história de Liliana preenche a epígrafe.

 

22 de agosto de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sábado, 6 de agosto de 2022

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE O LIVRO "MISSÃO ECONOMIA"


Missão Civilizatória

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Mazzucato, Mariana. Missão economia: um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfolio Penguin, 2022. 240 págs.

Estamos diante de uma nova tradução de um livro de Mariana Mazzucato, que destaca a popularidade com que esta autora está alcançando nos meios acadêmicos e políticos. Missão economia: um guia inovador para mudar o capitalismo é um salto qualitativo na carreira da autora: apresenta uma extensão maior, tem grande profundidade na análise e ambiciona desenhar uma proposta alternativa de política econômica. Essa característica o diferencia dos dois livros que foram publicados no Brasil anteriormente: O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (Portfolio Penguin, 2014) e O valor de tudo: produção e apropriação na economia global (Portfolio Penguin, 2020).

O livro defende a ideia de que, para superar a crise atual, que começou com algumas distorções anteriores a crise sanitária e que se aprofundaram nela, é preciso ativar o papel do Estado na economia. Essa ideia não é levantada de forma geral, mas está comprometida com o desenvolvimento do Estado com uma política ativa e direta na economia. No entanto, sua proposta é significativamente diferente, daquelas que se basearam em intervenções políticas setoriais seletivas, além de utilizar frequentemente as empresas públicas como referência essencial. Mazzucato articula políticas seletivas articuladas por meio de missões. Estes podem estar associados a enfrentar diversos desafios sociais, como, por exemplo, alcançar a seguridade sanitária, problema que surgiu como resultado da crise do Covid-19 e das crises ambientais, áreas cada vez mais urgentes e que necessitam de políticas eficazes. Uma característica essencial dessas missões é que, ao concebê-las, requer uma perspectiva de longo prazo. Esta circunstância coloca e manifesta o papel dinâmico do Estado, mobilizando-se para esses objetivos, o que apresentam um segundo plano de problemas, e que podem não ser percebidos como importantes no momento, mas que se tornarão muito mais sérios no futuro.

Em suma, as ideias apontadas no livro supõem uma crítica da teoria e da política econômica dominante nos últimos 30-40 anos. Além disso, segundo ela, como destacou Keynes (1883-1946) em sua época, é preciso considerar que o desenvolvimento e implementação de sua proposta enfrentam a inércia intelectual herdada. Também destaca uma ideia falaciosa, muito difundida, herdada da escola econômica clássica e repetida pelas visões (neo)liberais, a saber, que o setor público não gera valor, sendo o criador de riqueza por excelência o setor privado. Nesse aspecto dedica especial atenção a criticar a abordagem de falhas de mercado, que se espalharam muito fortemente a partir dos anos 1970 do século passado. Neste âmbito, a autora aponta que essa interpretação da ação estatal tem a vantagem de ser muito clara didaticamente, mas, por outro lado, é incompleta e sofre de um viés ideológico muito forte. Em particular, pressupõe que o Estado intervém quando o mercado não pode agir. Essa perspectiva começa da hipótese de que os mercados existem e que, além disso, é criado espontaneamente, o que é, no mínimo, bastante discutível.

No livro, há também uma crítica ao fascínio da camisa de força ideológica, como diz André Lara Resende, de que o setor privado funciona, por definição, melhor do que o público. Esse fascínio resultou, por um lado, de terceirizar atividades públicas ou privatizar propriedades, pois o Estado não cria valor e funciona mal. Por outro lado, isso também decorre do pressuposto de que o Estado deve funcionar (copiar ou imitar), o setor privado.

Além do interesse acadêmico desse livro, há sua aspiração de influenciar a política econômica real. As crises de 2008 e da Covid-19 deveriam ter encerrado o período em que se via equivocamente necessário um modelo de crescimento baseado na financeirização. A aposta de Mazzucato está orientada para a constituição de novas políticas económicas estruturas que contribuem ativamente para mudar o modelo de produção. Deste ponto de vista, a linha de trabalho de Mazzucato merece ser lida e pensada, pois abre uma discussão em campo paralelo a outras que já haviam começado como aquelas voltadas para novas formas de gestão dos ciclos econômicos (e o uso de políticas monetárias não convencionais) e/ou aquelas relacionadas com uma redefinição das relações do Estado com o bem-estar (discussões sobre desigualdade).

 

30 & 31 de julho de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 30 - TÓPICOS SOBRE A REPRESENTATIVIDADE FEMININA


O Bicentenário da Representatividade Feminina no Brasil e algumas reflexões contemporâneas

Em memória de Zuleika Alambert em seu centenário

Mila Pimentel de Souza Aranda André

 

De longa data as mulheres já estariam presentes no processo de formação da nacionalidade brasileira. A historiografia nas últimas décadas tem resgatado a lembrança de que no dia 2 de setembro de 1822 a Presidente Interina do Conselho de Ministros, a Princesa Regente Maria Leopoldina, assinou um Decreto em que o Brasil estaria separado definitivamente de Portugal. Faltaria a sanção do Príncipe Regente Pedro. Portanto a Princesa enviou uma carta anterior ao esposo manifestando seu desejo pela emancipação. Foi esse um dos fatores decisivos para que o “Grito do Ipiranga” fosse o “lugar de fala” de uma mulher. Os laços da emancipação feminina estão entrelaçados ao Brasil desde seus primeiros passos e não poderíamos deixar de mencionar a curiosa coincidência de estar à futura Imperatriz grávida de uma menina.


Joana Angélica

Na luta pela garantia da emancipação através da expulsão das tropas portuguesas da Bahia que veio a ocorrer em 2 de julho de 1823 se destacaram três mulheres. Houve um estopim de revolta popular contra o General Madeira de Melo já em fevereiro do ano anterior, pois a abadessa Joana Angélica foi morta na entrada do Convento da Lapa ao tentar impedir uma invasão daquele recinto por tropas portuguesas em busca de possíveis armamentos de insurgentes. Diante desse exemplo de indignação popular, assim como outros, se percebe uma Independência que teve muito a participação das camadas populares. Afinal, a história da negra Maria Felipa se tornou conhecida graças ao historiador Ubaldo Osório, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro, e perceberemos como a sedução feminina foi uma “arma” na luta contra os portugueses. A negra da Ilha de Itaparica liderava um grupo de aproximadamente 200 pessoas cujo grande feito foi ter queimado 40 embarcações portuguesas próximas à ilha.

Maria Felipa

Por fim, a luta de Maria Quitéria vestida como um soldado é um capítulo que mereceria um filme. Ela foi o Soldado Medeiros e se destacou pela bravura e coragem nos combates da Ilha da Maré e na Barra do Paraguaçu além de ações em Salvador. Recebeu as honras de Primero Cadete do General Labatut e recebeu a condecoração da Imperial Ordem do Cruzeiro por parte de D. Pedro I. Ela foi o símbolo do Movimento Feminino ela Anistia, criado em 1975, e atualmente como Patronesse do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro sua imagem deve estar presente em todos os quartéis.

Maria Quitéria

Essas lembranças contribuem para as reflexões contemporâneas do movimento de mulheres na busca de uma melhor representatividade política dentro dos marcos republicano e democrático. A segregação invertida do gênero masculino nunca foi característica desse movimento como nos demonstrou a luta pelo divórcio. Lembremos que a divorcista Anita Carrijo defendia conquistar pela opinião os políticos e homens públicos, pois “é preciso dar o seu apoio ao movimento divorcista publicamente, sem receio de ofenderem seus princípios religiosos, já que os mesmos não nos dão, em caso de infelicidade no matrimônio, nenhuma solução moral compatível com a realidade da vida”. Como bons ouvintes, muitos homens assumiram a pauta das mulheres como ocorreu na apresentação do primeiro projeto de Lei de Divórcio feita pelo então Deputado Nelson Carneiro em 1951 que também apresentou um projeto que igualava a mulher casada ao marido num casamento.

Anita Carrijo

Nesse sentido, a representatividade política feminina se faz pela conquista na política das reinvindicações das mulheres em amplos cenários da sociedade. Um movimento que ganha mais força na universalização de seus segmentos e de seus aliados. O artificialismo jurídico não contribui para que haja a sedimentação da opinião favorável de temas afeitos a mulher vide as recentes omissões do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Portanto, um movimento ganha espaço e hegemonia com uma melhor formação e esclarecimento para a sociedade de suas propostas de mudanças.


 

sábado, 23 de julho de 2022

SÉRIE ESTUDOS - RESENHA DO LIVRO "O EU SOBERANO"


 Estátua de Lênin é derrubada em Jarkov (Ucrânia) - 2014

O Narciso da Providência

 

Marcio Junior[1]

O termo soberania, na nossa língua, tem certa amplitude e é preciso maior apuração para entender com mais exatidão do que se trata. Dizer que algo é soberano, sem contextualização, explica pouco. Como adjetivo, precisa se referir a alguém ou a algo, e sem a “substância”, está fadado a se perder como uma palavra vazia, dando margem a todo tipo de equívocos. Mas não só: trata-se de um conceito que, como todos, têm história e seu significado depende do tempo e do espaço.

Nesse sentido, a tradução brasileira de O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (2022), da francesa Elisabeth Roudinesco, nos impõe essa tarefa logo no seu título. Vamos ao título original (sem a necessidade do subtítulo): Soi-même comme un roi. Em tradução literal: Eu mesmo como um rei. Agora com maior nitidez sobre o seu emprego, o conceito de soberania está relacionado à ilustração da autora, referida à soberania sobre tudo e toda exercida pelo monarca, cujo posto foi ocupado por figuras importantes ao longo da história da França, marcada pela experiência monárquica.

Este exercício de tradução, apesar de útil, exige um esforço modesto frente ao que a historiadora da psicanálise faz nas páginas do ensaio. Afinal, trata-se de tentar explicar como os movimentos sociais e não só foram contaminados pelo que chama de hipertrofia do eu: a mudança de rota em direção ao detrimento do que é universal em prol do particular e intrínseco ao indivíduo. A busca pela mitigação de desigualdades, por exemplo, não se trataria mais de uma luta que também é global, mas sim de indignação pessoal onde não há espaço para o diferente. As sociedades, então, seriam convertidas em identidades hierarquizadas, encerrando a noção do sujeito que pertence a determinada comunidade e assimila, inclusive em si, o outro.

         Na análise, essa perspectiva, seja em relação às mulheres e homens, aos homossexuais e heterossexuais, aos negros e brancos ou à teses sobre emancipação do colonialismo, resulta no surgimento e fortalecimento de um pensamento obscuro e reacionário, muitas vezes delirante e cheio de conspirações, repleto de neologismos e leituras erráticas de intelectuais, principalmente do mundo francófono, que nada tiveram a ver com isso, como Michel Foucault, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir. Nesse caos também de negligências conceituais, onde se esvazia propositalmente a história dos conceitos para que eles encaixem a outras situações, tudo é permitido para atender determinadas sanhas. Se a obra de determinado autor não atende aos interesses, não seja por isso: os conceitos são distorcidos e esvaziados do contexto em que foram usados para que atendam.

                       Cena do filme O Nome da Rosa (1986)

Não se trata de algo novo na história do pensamento; em O Nome da Rosa, Umberto Eco ilustra o esforço de intelectuais do medievo para preservar obras de autores da antiguidade, enquanto outros buscavam destruí-las. Porém, o que de fato importa é que, no presente, o fenômeno que é, ao mesmo tempo, causa e consequência desses equívocos é outro e não é novo: o eu se nutre e cresce frente ao nós; buscando se afirmar mesmo que atropele todo o resto: enquanto portador de pele negra, por exemplo, o indivíduo estaria condicionado à sua característica biológica e, por conta dela, seria ele o afirmador da reparação, movida pela indignação, de uma ideia abstrata de passado escravista, onde quer que ela seja encontrada. Caso não haja, em outrem, esta característica biológica, este representa o ideal daquilo que se quer combater, afinal é a biologia pura que define a identidade e, portanto, a hierarquia que dispõe as forças na arena da luta social. As classes, portanto, estariam ultrapassadas enquanto, inclusive, categorias analíticas.

Como é possível imaginar, não é uma lógica que opera dentro da Democracia e da República; muitas vezes são alvos. Podemos imaginar como que sociedades divididas pela lógica reacionária das identidades hierarquizadas possuam dificuldades em operar democraticamente, como o caso libanês que, além de ter sido citado pela autora, é muitíssimo bem ilustrado no filme Incêncios, de Denis Villeneuve; do ponto de vista da República, basta lembrar as estátuas, monumentos que fazem parte da coisa pública e podem ser utilizadas para boa e crítica reflexão históricas, que foram queimadas como portadoras de um ideal de passado colonial.

         Porém, é necessário refletir que o fenômeno pode vir a ser sintoma de algo mais profundo e mais complexo. A derruição progressiva do tecido social, das relações entre as pessoas, está à vista de todos e a afirmação excessiva de si mesmo contribui para minar os laços de solidariedade. Essa anomia é complexa e deriva de um novo mundo em que estamos marcados por mudanças profundas e dolorosas. O adoecimento da sociedade segue seu curso, obrigando os indivíduos a confrontarem a si próprios ao modo de um Narciso. A incapacidade social de dar respostas concretas aos seus problemas gera, inclusive, sofrimento psíquico: não é possível uma sociedade minimamente onde todos são reis e estão acima dos outros, em eterno conflito.

         Na festa de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, a voz da atriz Regina Casé ecoou, em português, pelo Maracanã e por todos que assistiam no planeta: “Chega de briga. Estamos aqui hoje para buscar as nossas semelhanças e, principalmente, celebrar as nossas diferenças”. Seremos nós, os brasileiros, sociedade altamente miscigenada, como nas concepções de um Gilberto Freyre e de um Mário de Andrade, que iremos abrir mão do que melhor produzimos em termos de pensamento e celebrar nosso bicentenário dando ao mundo a piora da doença e não o remédio para superarmos esses tempos de anormalidade? 



[1]Doutorando em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ e professor do Instituto Devecchi.


BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 29 - SOBRE A INTERRUPÇÃO DO DEBATE PROGRAMÁTICO: O CASO DOS EUA


 

Mudança jurisprudencial na interrupção da gravidez nos EUA 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


A decisão Dobbs v. Jackson Women's Health Organization da Suprema Corte dos Estados Unidos da América que muda a jurisprudência sobre a interrupção da gravidez num grande número de estados constitui de fato uma das mais complexas decisões em termos das liberdades nos últimos anos naquele país. Embora existam várias maneiras pelas quais os defensores do direito das mulheres de decidir livremente sobre seu estado físico no sentido de poderem limitar e/ou neutralizar os efeitos dessa decisão, o impacto é inegável. Há muitos ângulos a partir dos quais o complexo resultado de meio século de luta dos norte-americanos contrários à interrupção da gravidez pode ser analisado como tem mostrado o procurador e professor Cassio Casagrande em sua coluna O mundo fora dos autos do JOTA; vamos ver duas, uma relacionada à estratégia que os ativistas favoráveis à liberdade de escolha seguiram há cinquenta anos e aquela que eles podem intentar agora.

Vamos primeiro entender a lógica do movimento a favor à liberdade de escolha das mulheres e seus aliados políticos. A partir da decisão da Suprema Corte dos EUA de 1973 que permitia a interrupção da gravidez no território norte-americano, todos se consideravam mais ou menos bem atendidos. O movimento descansou nos louros e não houve insistência em buscar um corolário legislativo para Roe v. Wade. Pelas mesmas razões que muitos ativistas negros e latinos nas décadas de 1970 e 1980 preferiam travar suas batalhas por direitos no tribunal em vez de diante das câmeras, os defensores do direito à liberdade de escolha ficaram satisfeitos com sua vitória no tribunal.

Entre 1973 e o 24 de junho de 2022, houve três momentos em que havia uma possibilidade - de formar alguma certeza - de que ambas as casas do Congresso dos EUA pudessem ter aprovado o equivalente à Lei Simone Veil (1927-2017) que legalizou o assunto na França em 1975. Entre 1977 e 1980, durante a presidência de Jimmy Carter, os democratas tiveram uma maioria confortável na Câmara dos Deputados e 61 votos no Senado. Como se sabe, devido à chamada regra de obstrução, são necessários 60 votos para aprovar uma lei controversa no Senado. Os democratas os tinham. Claro, nem todos os senadores eram favoráveis à liberdade de escolha, mas havia alguns republicanos que se juntariam a eles.

A mesma coisa aconteceu com Bill Clinton em 1993-1995, com apenas 57 senadores, mas com o apoio de senadores republicanos que provavelmente teriam falado a favor. E com Obama, durante os dois primeiros anos de seu mandato, até a morte de Edward Kennedy (1932-2009), ocorreu a mesma configuração. Nenhum dos três presidentes, nem mesmo as esposas do segundo (Hillary Clinton) e do terceiro (Michelle Obama), insistiram em lutar para aprovar uma lei que legalizasse a interrupção da gravidez. Teria sido exaustivo, teria polarizado a sociedade e impedido o progresso em outras frentes (Obamacare em 2009), sem dúvida. E nada garantiu - nem garante hoje - que uma lei dessa natureza não pudesse um dia ser revertida por uma maioria republicana, embora o partido de direita não atinja a cifra de 60 senadores há muitas décadas.

Ministro da Suprema Corte Clarence Thomas

Uma segunda reflexão refere-se à estratégia que agora se segue. Por várias razões, há uma grande tentação de abraçar a tese da interseccionalidade e equiparar a luta das mulheres à liberdade de escolha com a dos homossexuais e lésbicas pelo casamento, o direito à adoção e a dos transgêneros, contra um conjunto de práticas discriminatórias. Entre outras razões, destaca-se, evidentemente, a opinião do Ministro Clarence Thomas (o segundo negro a integrar a Suprema Corte), que afirmou que o mesmo raciocínio jurídico sobre a liberdade de escolha, a saber, que a Constituição não prevê o direito à liberdade de escolha para a interrupção da gravidez, nem à contracepção, nem aos casamentos de do mesmo sexo, nem relações homossexuais consensuais, devem se aplicar a esses outros pleitos.

Mas os ativistas favoráveis proponentes de Roe v. Wade e o direito à liberdade de escolha para a interrupção da gravidez nos EUA podem estar errados se eles amalgamassem todas essas lutas. Há uma importante maioria da sociedade norte-americana a favor do direito de interromper a gravidez. Este está começando a ser, ao que parece no que tange aos casamentos gays (embora não inteiramente), mas certamente não com questões de transgêneros. Nem falemos da teoria crítica da raça e/ou da explicação da história dos EUA através do racismo sistêmico com a qual o Ministro Clarence Thomas também não deve concordar. Mas reunir tudo isso em uma grande luta de minorias oprimidas contra o heteropatriarcado, neoliberais e racistas nos EUA é um risco sem chance de mitigação. E eles podem estar prestes a fazê-lo e poderão angariar outros dessabores.

 

17-18 de julho de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.