sábado, 23 de julho de 2022

SÉRIE ESTUDOS - RESENHA DO LIVRO "O EU SOBERANO"


 Estátua de Lênin é derrubada em Jarkov (Ucrânia) - 2014

O Narciso da Providência

 

Marcio Junior[1]

O termo soberania, na nossa língua, tem certa amplitude e é preciso maior apuração para entender com mais exatidão do que se trata. Dizer que algo é soberano, sem contextualização, explica pouco. Como adjetivo, precisa se referir a alguém ou a algo, e sem a “substância”, está fadado a se perder como uma palavra vazia, dando margem a todo tipo de equívocos. Mas não só: trata-se de um conceito que, como todos, têm história e seu significado depende do tempo e do espaço.

Nesse sentido, a tradução brasileira de O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (2022), da francesa Elisabeth Roudinesco, nos impõe essa tarefa logo no seu título. Vamos ao título original (sem a necessidade do subtítulo): Soi-même comme un roi. Em tradução literal: Eu mesmo como um rei. Agora com maior nitidez sobre o seu emprego, o conceito de soberania está relacionado à ilustração da autora, referida à soberania sobre tudo e toda exercida pelo monarca, cujo posto foi ocupado por figuras importantes ao longo da história da França, marcada pela experiência monárquica.

Este exercício de tradução, apesar de útil, exige um esforço modesto frente ao que a historiadora da psicanálise faz nas páginas do ensaio. Afinal, trata-se de tentar explicar como os movimentos sociais e não só foram contaminados pelo que chama de hipertrofia do eu: a mudança de rota em direção ao detrimento do que é universal em prol do particular e intrínseco ao indivíduo. A busca pela mitigação de desigualdades, por exemplo, não se trataria mais de uma luta que também é global, mas sim de indignação pessoal onde não há espaço para o diferente. As sociedades, então, seriam convertidas em identidades hierarquizadas, encerrando a noção do sujeito que pertence a determinada comunidade e assimila, inclusive em si, o outro.

         Na análise, essa perspectiva, seja em relação às mulheres e homens, aos homossexuais e heterossexuais, aos negros e brancos ou à teses sobre emancipação do colonialismo, resulta no surgimento e fortalecimento de um pensamento obscuro e reacionário, muitas vezes delirante e cheio de conspirações, repleto de neologismos e leituras erráticas de intelectuais, principalmente do mundo francófono, que nada tiveram a ver com isso, como Michel Foucault, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir. Nesse caos também de negligências conceituais, onde se esvazia propositalmente a história dos conceitos para que eles encaixem a outras situações, tudo é permitido para atender determinadas sanhas. Se a obra de determinado autor não atende aos interesses, não seja por isso: os conceitos são distorcidos e esvaziados do contexto em que foram usados para que atendam.

                       Cena do filme O Nome da Rosa (1986)

Não se trata de algo novo na história do pensamento; em O Nome da Rosa, Umberto Eco ilustra o esforço de intelectuais do medievo para preservar obras de autores da antiguidade, enquanto outros buscavam destruí-las. Porém, o que de fato importa é que, no presente, o fenômeno que é, ao mesmo tempo, causa e consequência desses equívocos é outro e não é novo: o eu se nutre e cresce frente ao nós; buscando se afirmar mesmo que atropele todo o resto: enquanto portador de pele negra, por exemplo, o indivíduo estaria condicionado à sua característica biológica e, por conta dela, seria ele o afirmador da reparação, movida pela indignação, de uma ideia abstrata de passado escravista, onde quer que ela seja encontrada. Caso não haja, em outrem, esta característica biológica, este representa o ideal daquilo que se quer combater, afinal é a biologia pura que define a identidade e, portanto, a hierarquia que dispõe as forças na arena da luta social. As classes, portanto, estariam ultrapassadas enquanto, inclusive, categorias analíticas.

Como é possível imaginar, não é uma lógica que opera dentro da Democracia e da República; muitas vezes são alvos. Podemos imaginar como que sociedades divididas pela lógica reacionária das identidades hierarquizadas possuam dificuldades em operar democraticamente, como o caso libanês que, além de ter sido citado pela autora, é muitíssimo bem ilustrado no filme Incêncios, de Denis Villeneuve; do ponto de vista da República, basta lembrar as estátuas, monumentos que fazem parte da coisa pública e podem ser utilizadas para boa e crítica reflexão históricas, que foram queimadas como portadoras de um ideal de passado colonial.

         Porém, é necessário refletir que o fenômeno pode vir a ser sintoma de algo mais profundo e mais complexo. A derruição progressiva do tecido social, das relações entre as pessoas, está à vista de todos e a afirmação excessiva de si mesmo contribui para minar os laços de solidariedade. Essa anomia é complexa e deriva de um novo mundo em que estamos marcados por mudanças profundas e dolorosas. O adoecimento da sociedade segue seu curso, obrigando os indivíduos a confrontarem a si próprios ao modo de um Narciso. A incapacidade social de dar respostas concretas aos seus problemas gera, inclusive, sofrimento psíquico: não é possível uma sociedade minimamente onde todos são reis e estão acima dos outros, em eterno conflito.

         Na festa de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, a voz da atriz Regina Casé ecoou, em português, pelo Maracanã e por todos que assistiam no planeta: “Chega de briga. Estamos aqui hoje para buscar as nossas semelhanças e, principalmente, celebrar as nossas diferenças”. Seremos nós, os brasileiros, sociedade altamente miscigenada, como nas concepções de um Gilberto Freyre e de um Mário de Andrade, que iremos abrir mão do que melhor produzimos em termos de pensamento e celebrar nosso bicentenário dando ao mundo a piora da doença e não o remédio para superarmos esses tempos de anormalidade? 



[1]Doutorando em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ e professor do Instituto Devecchi.


Um comentário:

Pablo De Las Torres disse...

Narcisismo identitário: doença infantil do mercado. Excelente texto!