Mudança jurisprudencial na interrupção da gravidez nos EUA
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
A decisão Dobbs
v. Jackson Women's Health Organization da Suprema Corte dos Estados Unidos da América que muda a
jurisprudência sobre a interrupção da gravidez num grande número de estados
constitui de fato uma das mais complexas decisões em termos das liberdades nos
últimos anos naquele país. Embora existam várias maneiras pelas quais os
defensores do direito das mulheres de decidir livremente sobre seu estado físico
no sentido de poderem limitar e/ou neutralizar os efeitos dessa decisão, o
impacto é inegável. Há muitos ângulos a partir dos quais o complexo resultado
de meio século de luta dos norte-americanos contrários à interrupção da
gravidez pode ser analisado como tem mostrado o procurador e professor Cassio
Casagrande em sua coluna O mundo fora dos autos do JOTA; vamos ver duas, uma relacionada
à estratégia que os ativistas favoráveis à liberdade de escolha seguiram há cinquenta
anos e aquela que eles podem intentar agora.
Vamos primeiro entender a lógica do movimento a favor
à liberdade de escolha das mulheres e seus aliados políticos. A partir da decisão
da Suprema Corte dos EUA de 1973 que permitia a interrupção da gravidez no
território norte-americano, todos se consideravam mais ou menos bem atendidos.
O movimento descansou nos louros e não houve insistência em buscar um corolário
legislativo para Roe v. Wade. Pelas
mesmas razões que muitos ativistas negros e latinos nas décadas de 1970 e 1980
preferiam travar suas batalhas por direitos no tribunal em vez de diante das
câmeras, os defensores do direito à liberdade de escolha ficaram satisfeitos
com sua vitória no tribunal.
Entre 1973 e o 24 de junho de 2022, houve três
momentos em que havia uma possibilidade - de formar alguma certeza - de que
ambas as casas do Congresso dos EUA pudessem ter aprovado o equivalente à Lei Simone
Veil (1927-2017) que legalizou o assunto na França em 1975. Entre 1977 e 1980, durante
a presidência de Jimmy Carter, os democratas tiveram uma maioria confortável na
Câmara dos Deputados e 61 votos no Senado. Como se sabe, devido à chamada regra
de obstrução, são necessários 60 votos para aprovar uma lei controversa no
Senado. Os democratas os tinham. Claro, nem todos os senadores eram favoráveis
à liberdade de escolha, mas havia alguns republicanos que se juntariam a eles.
A mesma coisa aconteceu com Bill Clinton em
1993-1995, com apenas 57 senadores, mas com o apoio de senadores republicanos
que provavelmente teriam falado a favor. E com Obama, durante os dois primeiros
anos de seu mandato, até a morte de Edward Kennedy (1932-2009), ocorreu a mesma
configuração. Nenhum dos três presidentes, nem mesmo as esposas do segundo (Hillary
Clinton) e do terceiro (Michelle Obama), insistiram em lutar para aprovar uma
lei que legalizasse a interrupção da gravidez. Teria sido exaustivo, teria
polarizado a sociedade e impedido o progresso em outras frentes (Obamacare em 2009), sem dúvida. E nada
garantiu - nem garante hoje - que uma lei dessa natureza não pudesse um dia ser
revertida por uma maioria republicana, embora o partido de direita não atinja a
cifra de 60 senadores há muitas décadas.
Uma segunda reflexão refere-se à estratégia que
agora se segue. Por várias razões, há uma grande tentação de abraçar a tese da interseccionalidade
e equiparar a luta das mulheres à liberdade de escolha com a dos homossexuais e
lésbicas pelo casamento, o direito à adoção e a dos transgêneros, contra um
conjunto de práticas discriminatórias. Entre outras razões, destaca-se,
evidentemente, a opinião do Ministro Clarence Thomas (o segundo negro a
integrar a Suprema Corte), que afirmou que o mesmo raciocínio jurídico sobre a
liberdade de escolha, a saber, que a Constituição não prevê o direito à
liberdade de escolha para a interrupção da gravidez, nem à contracepção, nem
aos casamentos de do mesmo sexo, nem relações homossexuais consensuais, devem
se aplicar a esses outros pleitos.
Mas os ativistas favoráveis proponentes de Roe v. Wade e o direito à liberdade de escolha
para a interrupção da gravidez nos EUA podem estar errados se eles amalgamassem
todas essas lutas. Há uma importante maioria da sociedade norte-americana a
favor do direito de interromper a gravidez. Este está começando a ser, ao que parece
no que tange aos casamentos gays (embora não inteiramente), mas certamente não
com questões de transgêneros. Nem falemos da teoria crítica da raça e/ou da
explicação da história dos EUA através do racismo sistêmico com a qual o Ministro Clarence Thomas também
não deve concordar. Mas reunir tudo isso em uma grande luta de minorias
oprimidas contra o heteropatriarcado, neoliberais e racistas nos EUA é um risco
sem chance de mitigação. E eles podem estar prestes a fazê-lo e poderão
angariar outros dessabores.
17-18 de julho de 2022
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