O verão invencível invernal
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Garza, Cristina Rivera. El invencible
verano de Liliana. Ciudad de
México: Penguin Random House, 2021. 304
págs.
Talvez o nosso público nunca venha a ler esse livro
admirável por sua profissão, por sua verdade, por sua palpitação explosiva no
seio de nossa barbárie cotidiana de feminicídios.
É o livro da mexicana Cristina Rivera Garza sobre o feminicídio de sua irmã Liliana,
em 16 de julho 1990, na Cidade do México, durante o governo de Carlos Salinas de Gortari
(PRI).
O livro começa em 2016, com a busca análoga do
argentino Eduardo Sacheri em O Segredo
dos Seus Olhos (São Paulo: Suma de Letras, 2011) nos arquivos dos feminicídios
calados e apagados. É uma lição de artesanato narrativo e criação de atmosfera.
Resultado: não há arquivo, não está disponível nem digitalizado
ou qualquer outro formato. Precisamos seguir procurando. Portanto, devemos
reconstruir o que aconteceu, devemos escrever um romance histórico.
Liliana, como a brasileira filha de migrantes Araceli
Cabrera Sánchez Crespo (1964-1973) que José Louzeiro (1932-2017) primeiro registrou em Aracelli, Meu Amor (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976) e depois a Lei N° 9.970, de 17 de maio de 2000 (instituiu o
dia de seu nascimento em 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), Ângela
Diniz (1944-1976) e todas as recordações póstumas a ela e de tantas outras,
não sabia como ou por que ia morrer, embora soubesse de uma forma sombria, por
causa da natureza violenta, repetida, ciumenta, invisível aos outros, de seu feminicída.
Liliana é apresentada como uma menina muito
inteligente, cheia de perguntas e alegrias. Ela estava deixando sua marca clara
na percepção dos outros e em textos admiravelmente organizados com sua
caligrafia retilínea, de uma arquiteta em ascensão.
Cristina Rivera Garza encontra nas cartas da irmã
imagens de seu desejo de viajar e ser recebida, de suas relações com amigos,
primos, com a própria mãe e com quem mais tarde seria seu assassino. Boa parte
do arquivo de Liliana é composto por cartas para seus amigos. Eles não são
apenas os mais numerosos, mas também os mais cuidadosamente escritos. Uma carta
de um amigo não era apenas um pedaço de papel cravejado de letras: o meio era
tão importante quanto a mensagem. De alguma forma, esses escritos nos lembram Emily
Dickinson (1830-1886), pois os seus textos reúnem sua imagem em uma narrativa
sensível.
Entretanto, as emoções de Liliana e seus vários ritos
de passagem da infância à adolescência, ao sexo, ao aborto não são retilíneos.
São as navegações de uma mulher real, atravessada
por encantos, dúvidas, cicatrizes prematuras e suas liberdades exercidas a flor
da pele.
Essa jovem, nadadora, esbelta, cada vez mais livre
e aparentemente no controle de si mesma, é retratada nas memórias de seus
amigos, e na hermenêutica de seus cadernos, trabalhados pela Cristina Rivera Garza.
Segue-se o grande momento do romance histórico, o
movimento de como Liliana se afasta, passo a passo, da ideia doentia e
ficcional de posse - um retrato que recorda Karl Polanyi (1886-1964) - de seu
primeiro namorado, do seu sentimento de amor recorrente, do seu gélido
carrasco, até que, finalmente, em seus textos, ela se constrói livre de seu
opressor e suposto proprietário.
É então que o opressor sabe que a perdeu, ele entra
em sua casa uma noite e a afoga.
Vamos colocar aqui o nome do feminicída porque ele
é foragido e deve ser levado à justiça: Ángel González Ramos.
El invencible verano de Liliana tem uma epígrafe advinda de uma
passagem de Albert Camus (1913-1960) em Retorno a Tipasa (1952), que
também se fez epígrafe para Isabel Allende no seu Muito além do inverno
(Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017): "No meio do inverno aprendi,
finalmente, que havia em mim um verão invencível." A história de Liliana
preenche a epígrafe.
22 de agosto de 2022