terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 6


Dez anos de Django Livre e a Escravidão

Alessandra Loyola[1]

 

No ano da reeleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, o cinema recebia outro brilhante longa de Tarantino e que também seria o primeiro de sua carreira encenado em um cenário que foi fundamental em sua cultura cinéfila: o Western. O filme era  Django Livre, título retirado da enorme simpatia do cineastas à recriação do Velho Oeste pelo olhar de diretores italianos como Sergio Leone e Sergio Corbucci.

O filme se passa no sul dos EUA dois anos antes da Guerra de Secessão - um cenário interessante para a história do filme, pois as tensões do pré-guerra e suas funestas consequências são anunciadas ali - e inicialmente é apresentado o alemão Dr. Schultz (Chistopher Waltz, de Spectre) que apesar de ser dentista leva a vida como um caçador de recompensas que para seu próximo ganho necessita da ajuda de um escravo que conhece o alvo próximo alvo do alemão. Aí entra em cena Django (Jammie Foxx, de Ray). Shulz propõe então que se o mesmo o ajudar após o trabalho concluído lhe concederá sua alforria e alguns dólares; estando de acordo com a oferta ambos vão e realizam o serviço. Uma vez concluída sua tarefa, Django, agora um homem livre, declara que seu próximo passo é resgatar sua esposa, Broomhilda (Kerry Washington (da série Scandal) tal fato chama a atenção do Dr. Schultz, que faz uma analogia entre a história do liberto e o folclore alemão com a lenda da Saga dos Volsungos, uma guerreira que foi colocada em um castelo cercado por um dragão, o que prontamente faz o alemão a ajudá-lo e juntos partem em direção à próxima jornada.

Nessa perspectiva, a pergunta a ser feita enquanto se assiste o longa metragem de 2 horas e 45 minutos é: passados dez anos, o que essa narrativa tem a nos dizer?

Primeiramente, é importante compreender que o filme se passa no contexto escravocrata do sul e oeste estadunidenses dois anos antes da escravidão ser abolida, apresentando de forma clara a tortura e o terror que foi a escravidão para o negro. Ademais, uma questão importante é que o foco da história está na  busca de um negro liberto por sua esposa , essa a qual está em Candyland (uma piada por não ser uma terra de candura ou doce), a quarta maior plantação de algodão do estado do Mississipi, demonstrando, portanto que não será fácil seu resgate, uma vez que a mão de obra escrava era a base do latifúndio da época. É a simbologia do dragão.

Assim que Django começa sua "nova vida" ao lado do Dr. ele sai por ai montado em um cavalo, o que acaba por gerar espanto a todos que os vêem, sejam negros ou brancos. Em outros momentos no filme a incredulidade de um negro estar fazendo determinada ação é demonstrada, como quando Django é apresentado como o valete de Schultz, ou quando o próprio escravo da Casa Grande, Stepen, inicialmente se recusa a arrumar um quarto para o negro, dizendo até que se o patrão permitisse isso seria necessário queimar os lençóis e a cama.

O ideal é que os espantos como os citados se findassem junto a abolição da escravidão, no entanto até hoje a população preta tem de lidar com os mesmos olhares de espanto quando assumem altos cargos, ganham prêmios renomados ou fazem qualquer coisa que tenha o respeito ou admiração da supremacia branca ou até mesmo de negros que acabam por demonstrar  um racismo em diálogo com a classe social.

Outra crítica presente no filme é a da normalidade que circunda escravidão, apresentada de forma brutal quando o dono de escravos Calvin Candie manda que matem um escravo fugido, D’Artagnan, sendo comido por cachorros e apenas o Dr. fica aparentemente incomodado com a cena, Candie, não satisfeito, questiona Django sobre o porquê do espanto de Schultz, e ele responde que o parceiro não está tão familiarizado com os americanos como ele. Nesse ponto, o diretor nos remete a um Alexis de Tocqueville, um clássico das Ciências Sociais que fez sua obra-prima a partir de um estudo comparativo entre a Europa e os EUA. “Estar acostumado com os americanos’’ era estar acostumado a brutalidade que envolvia a escravidão e é estar acostumado com a violência e a negligência das autoridades para com a minoria negra social atual.


É interessante também a percepção de que durante sua trajetória Django tem que ouvir atrocidades e lidar até mesmo com hierarquias estabelecidas pelos os próprios escravos - algo que, de forma análoga, lembra o que por vezes próprio movimento negro atual faz – tornando notório que, às vezes, tomado pela dor, o oprimido pensa apenas em como é possível causar a mesma sensação ao outro. O grande nó oferecido pelo diretor é quando percebemos que o grande vilão do filme é Samuel L. Jackson (Os oito odiados) que magnificamente interpreta Stepen, o cérebro da fazenda de Leonardo DiCaprio (O regresso).

 Além disso, no filme há referências satíricas como o simulacro da formação da Ku Klux Klan e o dilema quanto ao buraco da máscara na região dos olhos que “da próxima vez será melhor”.  Outra questão são os detalhes irônicos presentes na obra, como a ignorância de Candie que apesar de gostar da cultura francesa e de preferir ser chamado de Monsieur Candie não sabe uma palavra em francês e em contraste tem uma escrava que fala fluentemente o alemão. Nesse ponto, Tarantino inverte Hery James, cujos personagens americanos são corrompidos pelos europeus, aqui, Shulz, um antepassado do “caçador de judeus” vivido pelo mesmo ator em Bastardos Inglórios do mesmo diretor, se indigna com a devassidão moral da escravidão que se reflete em todos os estratos sociais, do senhor ao escravo.

Django Livre  é um bom filme, coloca de maneira inteligente  a crítica ao sistema escravocrata e permite uma aplicação e nosso cotidiano enquanto houver preconceito racial. Mescla ação, humor, violência, sátira naquela que é a maior homenagem de Tarantino à obra de sua referência maior (cada vez mais influente no amadurecimento do diretor americano), o clássico Três Homens em Conflito (1966). O filme era um alerta para a sociedade americana. Não bastava ter um negro na presidência por conta da “representatividade”, mas mudar uma estrutura econômica de uma sociedade escravocrata marcada pela violência e exclusão para homens e mulheres, pois se o “lugar de fala” fosse determinante não se explicaria a quantidade maciça de Stepens terem votado na eleição presidencial seguinte no herdeiro de Candyland.


[1] Graduanda em Letras - UERJ

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 15 - DEBATENDO AS PRIVATIZAÇÕES


As coisas que perdemos no fogo da Nossa parte de noite

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A realidade pode conter o macabro e o perturbador e As coisas que perdemos no fogo (2016 lá e 2017 aqui pela Intrínseca), a coletânea de contos da escritora argentina Mariana Enríquez, faz isso com maestria mobilizando o medo e o terror cotidiano que vem das profundezas históricas de seu país (e não só) e deságua no cenário do governo de Mauricio Macri (2015-2019). Em um olhar de relance, as doze narrativas da escritora argentina poderiam parecer surreais para os leitores brasileiros. Entretanto, elas se mostram com uma familiaridade estonteante e o cotidiano se transforma em pesadelo.

Personagens e lugares comuns não ocultam um universo insólito e comum de argentinos e brasileiros e tal como ocorreu com o apagão de 2001 lá e cá e que fez desnudar a luz do dia que a crise energética que vivenciamos era o resultado de opções históricas equivocadas de nossas ditaduras, que não planejaram a expansão e a diversificação do sistema elétrico.

São esses os elementos junto com os da pandemia e não arroubos revogatórios que devem nos informar na leitura atenta do Decreto argentino nº 389, de 16 de junho de 2021 que dá nova redação ao artigo 4 e os apenas derrogados artigos 6, 8, 9, 10 e 11 do Decreto nº 882, de 31 de outubro de 2017, reposicionando a política anterior pró-mercado dos ativos energéticos agora considerados estratégicos.

O novo decreto retoma a regulamentação e a política iniciada em 2005 com Néstor Kirchner (1950-2010) com o Fundo de Investimento no Mercado Atacadista de Energia Elétrica (FONINVEMEM), que busca uma articulação de ações com o setor privado. O FONINVEMEM estabeleceu que as dívidas que o Estado tinha com os entes privados seriam saldados mediante a cobrança futura dos valores obtidos com a geração de energia elétrica mais suja carbonácea das usinas termoelétricas Manuel Belgrano e José de San Martín e que seriam construídas com o remanejamento do orçamento das dívidas e novos aportes do Estado. Ao reposicionar as dívidas, essas usinas seriam transferidas para o patrimônio do Estado. Havia uma projeção de que a demanda por energia estaria em ascensão ao considerar a economia em constante crescimento, diferente do que acabou por gerar a crise de governo.

O Decreto 389/2021 de igual forma recupera a área exploratória no oceano atlântico sul argentino (óleo e gás, energia mais suja, pois carbonácea) localizada na bacia das Malvinas onde, através da Integración Energética Argentina S.A. (IEASA), onde o Estado durante os anos 2014 e 2015 fez investimentos em estudos técnicos de 50 milhões de dólares. Apesar de contar com um programa de perfuração exploratório, em 2017 a área ficou a cargo do Estado junto com todos os estudos sísmicos, técnicos, econômicos e financeiros que a IEASA tinha desenvolvido com enorme esforço próprio.



O novo decreto revaloriza esse projeto para que, além de retomar e dar sequência ao FONINVEMEM se redefine por força da pandemia a presença do Estado argentino com a IEASA na bacia das Malvinas a poucos quilômetros das ilhas da discórdia.

Sob vários aspectos, a Argentina está redirecionando os destinos da IEASA segundo as diretrizes e promessas propostas no ano de sua criação, em 2004. Uma empresa energética estratégica. Vetor de desenvolvimento energético com inclusão social. O estado atual do setor onde se busca resolver a equação energética e se define o desenvolvimento planetário e produtivo da República Argentina, sempre em colaboração com os demais atores para que a equação inclua a todos.

Contando com a lucidez a IEASA e o Estado sabe que não farão essa mudança de rumos sozinhos, pois é necessário contar com o acompanhamento inabalável da república e da democracia que reconhecem na IEASA o valor do esforço, dedicação e perseverança exigidos pelas suas equipes para cumprir os objetivos traçados. A partir da pandemia, o Estado argentino mais uma vez se reposiciona como ator dentro do setor de energia.

Mas onde está a beleza literária nisso tudo? É que Nossa parte de noite (dezembro de 2019 lá e 2021 aqui pela Intrínseca) romance da Mariana Enríquez mostra que as crises também existem para fazer com que aqueles que souberem decifrar seus sinais como o pai Gaspar (não seria ele um Gasparzinho?) possam crescer e aprender com os erros, e até mesmo tornar visível a escuridão para que o seu filho Juan não seja tragado por ela. E esse episódio literário energético nos ajuda a entender o que está acontecendo conosco e nos conecta com certas partes que queríamos cobrir, mas que a bandeira vermelha tarifária nos patamares 1 e 2 não nos deixam calar.

 

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 5

Não olhe para trás

Por Pablo Spinelli

 

O filme O ataque dos cães, disponível na Netflix, cujo título em português é muito ruim diante da tradução mais correta e pertinente, O poder do cão, tem um roteiro muito simples. Uma dupla de irmãos saiu da costa leste para criarem gado em uma fazenda em Montana. Um dos irmãos acaba por se casar com a dona de um pequeno restaurante local, viúva, que tem um filho que destoa do ambiente rústico pela sua sensibilidade e introspecção. O irmão mais jovem decide por infernizar a vida da cunhada e de seu filho em uma tensa construção de tortura psicológica.

Nesses termos, nada faz parecer que essa história seja um faroeste ambientando na década de 1920 pela falta de pistoleiros, saloon, duelos e outros clichês do gênero. O filme, dirigido por Jane Campion, a segunda mulher na história do Oscar a ser indicada a categoria de direção por O Piano, é um complexo drama psicológico onde os personagens apresentam várias camadas e o duelo de pistolas é substituído pelo domínio do conhecimento e do poder de sedução, temas também presentes no filme O Piano – também tinha um personagem bruto que foi interpretado por Sam Neill (Peaky Blinders). Nesse caso, a trama se concentra no quarteto brilhantemente vivido por Benedict Cumberbatch (Dr. Estranho), Jesse Plamons (O Irlandês e Breaking Bad), Kirsten Dunst (Entrevista com Vampiro) e o surpreendente Kodi Smith-McPhee (X-Men: Apocalypse) que usa com inteligência uma imagem andrógina que enfrenta a brutalidade do personagem de Cumberbatch. Aqui, o intérprete de Sherlock, faz uma de suas melhores performances, ao interpretar um vaqueiro rude e grosseiro que cultiva uma animosidade com os pais e que tem o hábito estranho de dormir na cama junto com o irmão – hábito rompido com o casamento daquele, criador de animosidades com indígenas, cultivador de um passado que fez do linguista formado em Yale um vaqueiro nas mãos do falecido e cultuado Bronco Henry, aquele que o teria feito ser homem. O espectador tem que entender que o vaqueiro é uma persona de Cumberbatch, pois ele não era daquele meio e foi introduzido por Bronco Henry nas planícies selvagens do Meio-Oeste.

Foto: Marcio Jose Sanchez/AP

Plamons tem uma pequena participação, mas trabalhada com minucioso silêncio e olhares, uma relação de respeito e imposição à fera selvagem que é seu irmão. Dunst, mulher de Plamons na vida real, tem uma atuação sem exageros para destacar a fragilidade mental e emocional que passa na segunda metade do filme nas mãos do cunhado. A cena do ensaio ao piano é exemplar desse jogo psicológico. Certeira a sua indicação ao Oscar, assim como as de Benedict e Smith-McPhee. Jane Campion faz referências não só ao seu filme de maior sucesso, como também a Rebecca – a mulher inesquecível (1940) e a O Segredo de Brokeback Mountain (2005), sem ficar abaixo de nenhuma delas. Passa pela brutalidade do Oeste ao drama e suspense psicológicos em um cenário que remonta a uma sociedade ateniense clássica, repleta de homoerotismo e com as mulheres em um papel secundário. A imensidão da paisagem numa excelente fotografia propositalmente dialoga com os infernos interiores dos personagens. A luz externa e as sombras da casa são um parâmetro das almas e da luz da ciência pode sair uma solução das sombras. Todavia, o filme é uma referência bíblica do Velho Testamento.

O filme, na modesta opinião de quem escreve, foi a melhor produção americana do ano. Ficou irônico ouvir a primeira e melhor Mary Jane chamar por “Peter” ao longo do filme em tom de angústia e medo. Na semana que se relembrou a trágico episódio do ataque ao Capitólio há um ano no coração da democracia americana, país da Revolução – em termos de Hannah Arendt - que colocou vários ideais iluministas em prática, o filme tem muito a nos dizer sobre o poder do ressentimento, seja para entendermos o eleitor de Trump, seja para pensar em nem olhar para cima e nem para trás, como o principal partido de oposição ao presidente reiteradamente faz. É necessário sair do saudosismo de um passado idílico que nunca existiu com Bronco Henry e pensar em um programa, especialmente para os jovens, pois uma geração abaixo de vinte anos não viu o impacto da festa popular ocorrida em Brasília em 2003 e nem viu a transição elegante e republicana da troca de faixas de um sociólogo para um torneiro mecânico, ambos representantes da socialdemocracia germinada em São Paulo. Esses jovens abraçaram Bronco Henry e precisam de uma vacina democrática e republicana.


PS: Temos um leve SPOILER nas linhas abaixo.

Interessante notar o silêncio dos identitários aguerridos no cancelamento quanto ao que o filme propôs. Um homossexual usando de sadismo contra uma mulher. Se falar que o filme é homofóbico vai ter o nó com o personagem jovem. Se tentar explicar a violência pela força do meio acaba por legitimar o machismo gay. Se disser que a mulher é fraca será homofobia. Tem que torcer muito para que Duna ganhe o Oscar, pois será um golpe no fascismo de esquerda que foi engendrado...por uma mulher.


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 14 - SOBRE O EMPREGO: SEM LUGAR AO SOL E OS SEGUIDORES DE D. QUIXOTE


Imagem retirada de Brasil de Fato

Sobre as medidas urgentes espanholas com vistas a reforma trabalhista

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A pandemia da COVID-19 é uma emergência de saúde pública internacional, que originou grandes impactos a nível social e econômico, e que se teve de dar uma resposta imediata no plano sanitário, bem como através de um conjunto significativo de medidas de apoio aos desempregados e desempregadas, as empregadas e empregados e seus rendimentos.

A União Europeia (UE), tomando consciência da severidade da crise pandémica e dos seus profundos efeitos nos diferentes Estados-Membros, promoveu uma resposta coletiva e concertada, tendo os Estados-Membros acordado simultaneamente o Quadro Financeiro Plurianual para o período 2021-2027 e os instrumentos de recuperação europeia, designado de Próxima Geração da UE, aprovado no Conselho Europeu, em julho de 2020, ou seja, já havia a previsão de perdas geracionais ainda no princípio do primeiro ano pandêmico. Com efeito, os Estados-Membros comprometeram-se com uma visão de futuro conjunto, para dar forma nas mitigações dos efeitos que decorreriam da capacidade de resposta totalmente assimétrica dos Estados-Membros.

É neste contexto que se deve falar da proposta de reforma trabalhista na Espanha, pois evoca um processo complexo de tempos diferentes onde a pandemia cruza um conjunto longuíssimo de mudanças que não conseguiram acabar com os seus graves problemas no seu mercado de trabalho. A conjunção de pandemia com a história institucional trabalhista espanhola extremamente complexa fez com que o trabalho por lá (e não só lá) fosse afetado ainda mais pelo desemprego, pelas más condições de emprego e impede a plena cidadania no trabalho.

Desde a aprovação do Estatuto dos Trabalhadores em 1980, logo que foi lançada a Democracia do Pacto de Moncloa, trabalhar em Espanha seguiu e segue carregando um pesado fardo da falta de liberdade por conta do caudilho Francisco Franco (1892-1975) que acabou por impedir que uma parte significativa das trabalhadoras e trabalhadores de reivindicar plenamente seus direitos e criou uma inércia, de dimensão epocal, que com a pandemia só se agravou.

Assim, é determinante entender que a proposta de reforma trabalhista espanhola de dezembro de 2021 se insere num reclame da UE, que já havia insistido na necessidade de se enfrentar as carências desse mercado de trabalho que praticamente constitui-se numa anomalia naquele continente.

Por isso que essa iniciativa conta com os procedimentos dos fundos europeus de inscrição orçamentária e da assunção de encargos plurianuais, e respectivos mecanismos de controle, relativamente a instrumentos financeiros europeus, enquadrados na Próxima Geração da UE, cujos programas para Espanha seguem elegíveis e legalmente estabelecidos na proposta da reforma, o que permite a execução de despesa para 2022 por conta desses programas.

Pois foi, também, estabelecido o modelo de governança dos fundos europeus atribuídos a Espanha através do Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência (PRTR), que foi formalmente aprovado pelas instituições europeias (através do Conselho de Assuntos Económicos e Financeiros – ECOFIN) em 13 de julho de 2021, após ter sido adotado pelo Conselho de Ministros a 27 de abril, apresentado à Comissão Europeia em 30 de abril, sendo positivamente avaliada por aquelas instituições até junho.


Neste contexto, a proposta de reforma trabalhista espanhola nada tem a ver com visões simplistas revogatórias e trata-se sim de medidas urgentes por conta do enfrentamento da UE frente a COVID-19, da qual a Espanha é participe. Esse regime de urgência, inclusive de execução orçamentária e de agilização de procedimentos e definição de competências referentes à execução da proposta de reforma que integra o PRTR aprovado pela Comissão Europeia, por parte das ações das entidades da administração ministerial e da segurança social espanhola, de modo a agilizar a concretização dessas medidas, de forma célere e transparente.

Não à toa que recentemente (novembro e dezembro de 2021) o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman em suas colunas semanais no New York Times, que tem recebido versões das mesmas no jornal Folha de São Paulo explica por que a Europa está se saindo melhor do que os EUA na recuperação do mercado de trabalho. É isso o que de fato está em questão e que podemos refletir para sairmos do nosso atoleiro de ideias e imaginação no nosso bicentenário.

 

Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 2022




[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/ NÚMERO 13 - PENSAR UM PROGRAMA


“Não Olhe para Cima” e a Casa Comum

 

Marcio Junior[1]

 

Em entrevista por conta do lançamento do filme O Lobo de Wall Street, produzido e protagonizado por Leonardo DiCaprio, Margot Robbie (que contracenou sendo a esposa do personagem de Leo) contou uma anedota engraçada: o tempo interminável que Leo falava sem parar sobre a questão ambiental, tema caro para o ator. Nas palavras de sua colega, em tom reclamão, "ele é muito nerd nisso". Talvez ele tenha falado demais ou algo do tipo e isso pode ter chateado a moça no set, mas, a despeito disso, ela tem razão no fato em si. Leo é aplicado em outras questões para além da atividade de ator.

Em 24 de maio de 2015, data da Solenidade de Pentecostes daquele ano, Francisco (que já recebeu Leo no Vaticano) publicou a encíclica Laudato Si[2] (Louvado Sejas), onde inicia citando o Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, que intitula o texto[3]. Trata-se de uma discussão acerca de linhas de ação, e não só, para a proteção da Casa Comum. Foi, na prática, o documento com o qual a Igreja Católica entrou na discussão que resultou no Acordo de Paris, a COP21. Em um dos pontos, acentua que as estratégias de compra e venda de créditos de emissão de gases poluentes[4], se não viabilizadas e praticadas objetivamente, não seriam eficazes como ação de mitigação do efeito estufa. No Acordo de Paris[5], seu Artigo 6 propõe as balizas para essa tarefa e elas seriam de responsabilidade das partes, ou seja, dos países signatários e, consequentemente, dos seus governos.

Leonardo DiCaprio, que anos atrás personificou um desenhista pobre que morreu após o naufrágio de um navio a carvão em 1912, discursou em Glasgow, na COP26, em novembro do ano que terminou a pouco. Este evento marcou, entre muitas coisas, o consenso das partes sobre as balizas objetivas relacionadas ao mercado de carbono, construindo as regras e procedimentos acerca do Artigo 6 do Acordo de Paris[6].

Em 2020 a ConaREDD++[7] publicou suas três resoluções existentes até o momento. A Resolução Nº 3[8], em especial, reconhece um mercado voluntário de carbono florestal, porém é de tamanho mínimo, sem nem ao menos definir o que é isso. Em outras palavras, letra morta. O problema, a nosso ver, é maior do que parece: trata-se de problemas múltiplos, mas todos se voltam para a ausência de programa político.



Em Não Olhe para Cima (2021), de Adam McKay, Leonardo DiCaprio se transforma em Dr. Randall Mindy, astrônomo que, junto a Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), sua aluna e orientanda, precisam convencer o mundo de que o planeta Terra será atingido por um cometa e toda vida será extinta. A maioria, porém, não lhe dá ouvidos, inclusive a Presidente dos EUA, negacionista. A saída das personagens, então, é gritar a plenos pulmões ao mundo o perigo que todos correm. Sem política, no grito.

Entre nós, mesmo se fosse vontade daqueles que compõem o governo discutir seriamente e fazer coisas quanto a essa questão, haveria pessoas que dariam conta do recado, com espírito republicano e democrático para tal? Os estudiosos dessas questões não podem e não devem ajudar na preparação de um programa político para qualquer governo eleito em 2022, o que inclui a possibilidade de reeleição do governo que está em exercício agora? Trata-se de uma questão urgente para o mundo e não é bom, nem para nós nem pra ninguém, que peguemos o bonde andando. Não são as bravatas e a estupidez contra quem quer que seja que irão ajudar, mas sim uma política programática e inteligente. Ou será que estarmos em maus lençóis, principalmente educacionais, não seja algo de responsabilidade de todos e todas ou até mesmo daqueles que tem como atividade fazer ciência?

“Nada deste mundo nos é indiferente”. Escreveu Francisco.



[1] Professor do Instituto Devecchi. Mestre em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

[3]“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.

[4]Em síntese, o mercado de carbono consiste na agregação de um valor à quantidade emitida de gases do efeito estufa por um país, em forma de crédito. Caso este país não emitisse a quantidade de gases que lhe é permitido em determinado tempo, a diferença poderia ser vendida para outro país. Este mercado tem gênese na Rio 92, cuja cidade-sede é de onde escrevo este texto.

[7]A Comissão Nacional para REDD++, presidida pelo Ministério do Meio Ambiente e com vários Ministérios a integrando, foi criada em 2015 e implementado sob o Governo Temer, para coordenar os trabalhos de redução de emissões provenientes de degradação florestal, afim de atender os requisitos para receber os incentivos financeiros estabelecidos no Marco de Varsóvia para REDD++, resultante da COP19, de 2013.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 4


De Volta para a Casa Comum

Em memória de Desmond Tutu

Por Vagner Gomes de Souza

“14 Portanto, acontece com eles o que disse o profeta Isaías: 

“Vocês ouvirão mas, mesmo ouvindo,

    não conseguirão entender;

vocês olharão mas, mesmo olhando,

    não conseguirão ver.

15 Isto acontece, pois o coração deste povo está endurecido.

    Eles taparam os ouvidos e fecharam os olhos.

Se não fosse assim,

    eles poderiam ver com os olhos,

ouvir com os ouvidos

    e entender com o coração,

e se voltariam para mim

    e eu os curaria”.

Mateus 13. 14-15

 

 

Apesar de não ser um filme, a série A Sabedoria do Tempo, com o Papa Francisco – mais uma produção da NETFLIX – tem um grande méritos para que sua mensagem seja levada as multidões.  A ideia de fazer pessoas com mais de 70 anos serem ouvidas é como se fosse uma nova versão da fábula do semeador em que Jesus fazia uso desse método para “amolecer” os corações de seus ouvintes. Nesse caso, há uma produção gravada em meio a pandemia da COVID19 no qual os idosos sempre foram apresentados como aqueles que fizessem parte do “grupo de risco”. Entretanto, se o Planeta Terra é nossa Casa Comum, como nos ensina Jorge Mario Bergoglio, podemos reafirmar que todos nos encontramos vivendo um risco. Esse risco de sobrevivência precisa ser enfrentado com a aproximação da sabedoria do tempo para os mais jovens.

Superar um fosso entre as gerações é uma mensagem da série que está dividida em quatro episódios em que o Papa Francisco, autor do livro que inspirou a série Sabedoria das Idades, em breves respostas sobre Amor, Sonhos, Luta e Trabalho serve como o grande “conduttore” (maestro) de uma sinfonia reflexiva e política. Não se debate os motivos que levaram ao fosso geracional quanto a importância do diálogo com os mais idosos, mas apresentam vidas e sabedorias de algumas personalidades conhecidas ou nem tanta que fazem o espectador ter empatia nas pessoas e em seus exemplos.

Variadas são as situações e experiências apresentadas ao longo dessa série que já te encanta com a música de abertura de Valerio Vigliar, “Dali´s salvation (Everything´s Everywhere)”[1], compositor italiano que está gradualmente ganhando espaço em trilhas sonoras de alguns filmes. A música expressa a “alma” da série. Aliás, as novas gerações não estão muito atentas as músicas das trilhas sonoras nas produções cinematográficas, pois desejam ver ação sem ouvir. A série é para se voltar a ouvir os outros numa postura para ultrapassar o desafio das posturas autoritárias. Aprendemos sempre quando estamos dispostos a ouvir.

No primeiro episódio de tom em tom redescobrimos Martin Scorsese entre outros seres humanos fascinantes. Martin está é o único a aparecer em dois episódios (“Amor” e “Trabalho”). Martin faz leituras para sua filha mais nova que lhe faz perguntas sobre passagens de sua carreira. Um exemplo de diálogo para que a casa seja comum. E não podemos nos esquecer de que esse é o Diretor de A última tentação de Jesus Cristo. Esse poderia ser o melhor tom para que se percebesse a abertura ao conhecimento sem dogmas ou endurecimentos no coração. Como muito bem é acolhida no episódio segundo a ideia do perdão em relação a tema da segregação racial nos Estados Unidos, pois o passado é passado, mas o importante é estamos na mesa da fraternidade no futuro. Esse era o sonho do outro Martin, o Pastor Martin Luther King assim ensinou em seu conhecido discurso “Eu tenho um sonho” (28 de agosto de 1963): “Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.”

A ideia de fraternidade foi provavelmente o que motivou o camarada fotógrafo sul-africano na luta contra a apartheid. O sentido da luta na sabedoria do tempo é muito instigante, pois há muito que se revelar sobre memórias e militantes ainda a se descobrir. Um pouco disso estamos a fazer no Brasil também. Todavia, muitas pessoas não poderiam ter a dimensão do que foi a política racista na África do Sul ainda nos anos 80 do século XX. A luta internacional de solidariedade para que os sul-africanos fossem acolhidos em nossa Casa Comum. Por fim, no episódio “Trabalho” há um belo registro da séria ao se fazer o acolhimento de Oxum uma vez que representa a sabedoria e o poder feminino. Não há espaço para sectarismo da fé ou outro qualquer no Papa Francisco.



[1] A música está no Spotify e há um clipe no YouTube.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

TEXTOS DA JUVENTUDE - O NOVO LIVRO DE CHICO BUARQUE


 

As Caravanas em Anos de Chumbo e outros contos.

Por Julia Neves

 

 Para iniciar, é necessário falar do começo: o título. A escolha deste foi interessante, pois é sugerido que os contos irão retratar, ou ao menos se passar, no período da Ditadura Militar brasileira, o que não é o caso. A obra trás consigo uma leveza e humor, apesar de tratar como assuntos sérios, como a invisibilidade social, preconceito de classe, racismo e a questão das milícias, muito presente até atualmente na Cidade do Rio de Janeiro, onde a maioria dos contos se passa.

 O primeiro conto, intitulado “Meu tio”, trata de uma família disfuncional, na qual a filha está envolvida em um caso de incesto e prostituição pelos próprios pais. O segundo conto, “O passaporte”, é tão atual por mostrar uma política do cancelamento e o tão debatido “hate” a uma pessoa famosa em uma época em que esse termo nem existia. No terceiro conto chamado “Os primos de campo”, outra família disfuncional é retratada, dessa vez à mercê da polícia, milícia e do racismo. Além de debater o abandono paternal. O próximo conto, “Cida”, fala sobre uma moradora de rua e trás a pauta da diferença e preconceito de classes, além da invisibilidade social. O quinto conto é sobre um dos bairros mais famosos do mundo e o cartão postal do Brasil: Copacabana, aonde histórias, ou devaneios, vem à tona na qual o icônico bairro carioca é o personagem principal. O conto “Para Clarisse, com candura”, trás o debate de até que ponto a idolatria de um jovem por um ídolo pode chegar, assunto também que se mostra muito atual, em uma época em que pessoas fazem loucuras e coisas inimagináveis para conhecer alguém endeusado. O penúltimo conto intitulado “O sítio” fala sobre as férias de um casal que recebem ajuda de um caseiro e visitas esporádicas de urubus. Já o último conto, “Anos de Chumbo”, passa-se no período da Ditadura Militar e mostra como um menino resolveu a questão da convivência com seus pais.

  Todos os personagens principais, apesar de não terem nome, possuem características marcantes: o sarcasmo, a ignorância, as angústias, os problemas mentais e éticos de cada um. São essas características, não descritas por Chico Buarque, mas percebidas através das atitudes de cada personagem, que nos permite ver que eles são nada mais e nada menos que humanos. O livro retrata isso: a essência humana. Ninguém é 100% bom ou 100% mal e os contos mostram isso.

 As histórias contadas no livro são engenhosas, com reviravoltas surpreendentes, que diz muito não somente a época em que os contos foram escritos, mas sobre o Brasil atual. As histórias se encaixam tão perfeitamente no momento em que vivemos que poderiam ser facilmente escritas a 2,3 anos atrás.

 Afinal, será que a realidade brasileira atual não pode ser entendida também como os “Anos de Chumbo” do século XXI?  Esse momento de silêncio das autoridades sobre a continuidade da Pandemia no mundo pode ser uma indicador para essa resposta.

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - O BICENTENÁRIO DE DOSTOIÉVSKI


Um lugar ao sol para Dostoiévski

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Nos idos de 4 a 6 de outubro de 2021 a Universidade Estatal de São Petersburgo, com o apoio de várias instituições, realizou o V Foro Internacional "Rusia e Iberoamérica en el mundo globalizante: historia y perspectivas". Naquela ocasião apresentamos A Pandemia da Desigualdade Global & O Futuro Planetário, bem como saudamos os irmãos russos do nosso bicentenário partidário da Rússia Americana.

Na ocasião recordávamos a exclamação de Fiódor Pávlovitch Karamázov, o personagem sombrio e cruel que abalou a vida de seus filhos no romance Os Irmãos Karamázov (1879).

– Por enquanto ainda sou um homem, apesar de tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim, meu amável filho Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis minha filosofia.

Duzentos anos se passaram desde o nascimento do escritor russo (1821-1881), que morreu pouco antes de atingir a sexta década de vida. Este russo cuja vida era comum e que conseguiu mostrar a tragédia que acompanhou a pobreza da sociedade russa daqueles tempos: servidão desde a época medieval (e renovada na primeira metade do século XVII), apesar dele estar situado no coração do século XIX europeu; camponês, apesar do czarismo se dizer aspirante aos ventos iluministas franceses de sua burguesia nascente e seus tribunais; relutante em face da ilustração apesar de ter dado origem a um conjunto de escritores extraordinários que alteraram a alma da literatura e do sentimento da humanidade. Fiódor Dostoiévski, ele mesmo epiléptico, é encurralado numa reunião de pessoas que faziam oposição ao regime do czar Nicolau I e é condenado a ser fuzilado, para mais tarde comutar sua sentença por outra de trabalhos forçados na Sibéria, onde longos anos de vida do escritor se passam; anos amargos e lentos enquanto ele os desenha nas suas Recordações da Casa dos Mortos (1862).



Em seu ensaio sobre Dostoiévski, o crítico da carnavalização Mikhail Bakhtin (1895-1975) observa que a alma russa é capaz de se embriagar com sua própria perdição, e enfoca o perfil poético e filosófico que o escritor faz do sofrimento: o sofrimento é um dos meios pelo qual nós humanos somos capazes de tomar consciência das coisas. Bakhtin percebe em Dostoiévski as origens dos naródniki (versão clássica russa do populismo - que nada tem a ver com as polifonias que o conceito adquiriria no tempo e espaço), mas trágico e permanente, como escreve seu no primeiro romance Gente Pobre (1846): "Os pobres e os desgraçados deviam viver longe uns dos outros, para que as suas misérias não se agravassem mutuamente." Dostoiévski era viciado em jogos de azar, em roleta, em ser vítima da força do acaso. Em O Jogador (1866), descreve claramente a vocação russa para o abismo que se abre quando se está a ponto de perder tudo. O romance confessa que o russo joga para perder, não para ganhar; se no jogo não houvesse possibilidade trágica de perder tudo, não seria mais interessante para o temperamento econômico vigente na pasta brasileira afeta.

O livre arbítrio foi o problema filosófico mais profundo e óbvio revelado na maioria de suas obras. O livre arbítrio dá origem à existência do bem e do mal e, portanto, à culpa e/ou arrependimento, à dúvida moral, como o observamos no que se tornou seu romance mais famoso Crime e Castigo (1866). A liberdade impede a felicidade, pois, se o livre-arbítrio existe, seria necessário escolher com responsabilidade e assumir o controle até dos acidentes do acaso. Ele também fecha o paraíso terrestre e sabe que a razão e/ou a verdade não impedem o sofrimento, o desastre moral em curso para Bárbara de Um lugar ao sol, as adversidades que afetam todo russo, toda a humanidade que usa a razão para acreditar que pode abalar e/ou construir uma vida feliz. Já em Memórias do subsolo (1864), Dostoiévski escreveu: "não se podia sequer culpar as leis da natureza, embora, realmente, as leis da natureza me ofendessem sempre e mais do que tudo, a vida inteira."

No portal de entrada do terceiro ano da pandemia poderíamos dizer no espírito russo de Dostoiévski que a barbaridade da barbárie grita tanto quanto a barbárie da barbaridade, mas esses aspectos das pluralidades de vozes e consciências independentes e distintas típicas de suas personagens expressam suas capacidades de exporem e contrastarem diferentes visões das realidades representadas, e daí o que seus universos e multiversos que, sem se fundir, se combinam na unidade na diversidade da vida concreta e, as vezes, podem apontar para um outro mundo possível melhor planetariamente.

Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 2021

[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 3

Não Olhe para a Política

Dedicado ao astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Por Vagner Gomes de Souza

O filme Não Olhe Para Cima é mais uma produção da NETFLIX que “explodiu” em simpatia conquistando elogios do grande público e chamou a atenção de segmentos considerados mais politizados nas chamadas redes sócias. Nos anos 80 do século passado, diante da hegemonia do Homem-Aranha: sem volta para casa, seria o filme de sucesso da propaganda “boca a boca”. Nesse momento ele é o filme de resistência aos negacionistas de todas as vertentes.

Devemos reconhecer que há setores que se dizem progressistas, mas que ainda fazem parte desse mundo paralelo em negar que o “cometa do autoritarismo” ganha força num terreno em que se nega os princípios da República e da Democracia. Eles preferem a destruição do “cometa” ao contrário de desviá-lo, ou seja, adotam o sectarismo político nas políticas de alianças contra as forças obscuras que rodeiam ao mundo e nosso país em particular. Não teremos eleições fáceis como se fosse um “passeio” de estrelas dançando pelo céu.

 As limitações do “filhote” Jason, Chefe de Gabinete da Presidente dos Estados Unidos, são comuns em algumas lideranças no campo progressista. Jason é o “sinal trocado” de uma geração da antipolítica nas forças da chamada “New Left”.  Elas deveriam orientar a sociedade para a luta comum ao contrário de simplesmente berrar: “Vamos todos morrer!” ou denunciar os interesses dos gananciosos do grande capital numa conversa de bar.  Há burrices também na Esquerda e nós devemos reconhecer isso para que Não Olhe Para Cima ajude na autocrítica de ações que negam a aproximação com as grandes massas. Afinal, Kate declara o não ter votado em Janie Orlean o que não significa que tenha votado em outra candidatura. No filme foi necessário que os cientistas “bonzinhos” mobilizassem uma cantora pop.

Não Olhe Para Cima não se enquadra no gênero comédia ou comédia dramática. Nosso mundo de absurdos é tamanho que escreveram ser um filme de terror. Ele é a mais pura farsa política ao nível de um Nanni Moreti com efeitos visuais. E, na dúvida, vá pesquisar no Wikipédia antes de saber a opinião do jovem ator Tom Holland sobre esse Diretor italiano. Kate, a personagem do empoderamento feminino na ciência da astronomia, foi aprendendo a fazer política no percurso do roteiro que fez a ciência dar as mãos à fé.

Então, olhar simplesmente para os equívocos das forças extremistas da Direita ainda nos faz não olhar para a cima o que impõe fazer política de frente com todas e todos a partir de um debate programático. Precisamos reconhecer que há uma falência no sistema educacional e, com certeza, obtemos resultados de equívocos de quase duas décadas. Um educador como o desconhecido professor Irineu Guimarães precisa ser redescoberto ao menos quanto as suas ações de solidariedade[1]. Será que reconheceram o Carl Sagan no bonequinho? Por que o quadro de Nixon apareceu em destaque numa cena na Casa Branca? Quantos associariam o filme Titanic e a presença de Leonardo DiCaprio no elenco?

Sem olhar para a política surgiram os “memes” sobre o filme. A juventude aderiu ao seu simples compartilhar, mas é necessário muito mais a se fazer para se realizar o bom combate. Imagine como seria mais difícil a história do cristianismo se o Apóstolo Paulo não tivesse a ajuda do Lucas que o acompanhou até o martírio. A solução não é ficar na laje olhando para o céu aguardando a aproximação do fim. A ciência nos ensinou que se aprende fazendo os experimentos. Logo, não podemos deixar de tentar escrever sobre filmes como esse. Caso contrário as novas gerações só conviverá com “O Horror. O Horror.”



[1] A atriz Cate Blanchett coincidentemente estudou num Colégio Metodista aonde começou a fazer Teatro.