sexta-feira, 1 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 7 - O BRASIL NUMA NOVELA?


 Casamento na Roça - Cândido Portinari (1959)

Três Casais com Interpretações do Brasil em Nos Tempos do Imperador

Por Vagner Gomes de Souza

 

A segunda fase do folhetim televisivo Nos Tempos do Imperador trouxe a ficção histórica do século XIX para um debate sobre a necessidade de algumas “revisões” de seu conteúdo. Mudanças em algumas cenas seriam muito bem vidas uma vez que se trata da primeira produção inédita nesse intervalo de “Quarentena” da Pandemia inconclusa. Todavia, ainda nos chama a atenção para a reação distante da juventude para essa obra. Não é uma novidade. Entretanto, é uma opção pelo deserto buscar um diálogo com jovens sobre o trabalho de Selton Mello e as contradições políticas da ficção. Alguns diriam que os jovens estariam distantes da TV ABERTA, mas essa é uma interpretação para aqueles que acham que vivemos 100% digital nas classes subalternas. A “Pequena África” do século XXI é a “Grande Exclusão Digital” como nos demonstrou as experiências de pedra do ensino remoto.

Esse artigo não tem como objetivo aprofundar ou tentar esclarecer sobre a ausência da juventude sobre o debate programático de nosso passado. Alguns diriam que muitos jovens, até politizados, estejam de olhos voltados para a “fuga pra o futuro”. Nesse caso, estariam fazendo militância política pensando em 2024, 2026, 2028 ou 2030. A juventude não se encontrou na “Malhação Viva a Diferença” com uma roupagem do século XIX provavelmente por considerar que há mesmo essa “linha reta” de um Tonico Rocha até um Artur Lira ou uma continuidade do racismo desde antes A Era dos Impérios. Eric Hobsbawm foi sempre comprado, mas nem sempre lido ou compreendido.

Então, falemos da proposta de uma releitura de referências da História numa obra de ficção em três casais ficcionais e históricos. Deveríamos reconhecer que uma obra de ficção histórica não tem o compromisso com a exposição dos “fatos históricos” como plena realidade, porém há oportunidades que se perdem em Nos Tempos do Imperador por buscar uma tensão sobre uma relação inter-racial entre Maria do Pilar (Gabriela Medvedovski) e Jorge/Samuel (Michel Gomes). Se esquecem da contribuição da falecida concorrente TV MANCHETE com a teledramaturgia de Xica da Silva (1996/1997) após a esquecida adaptação da obra de Jorge Amado “Tocaia Grande”. Nessa obra a Xica da Silva (interpretada por Taís Araújo que foi a terceira atriz negra a protagonizar uma novela[1]) vive um romance com João Fernandes, um representante do Estado Colonial português. Eram tempos em que Fanon[2] era um celebrado desconhecido nos “arraiais” das forças progressistas. Aliás, foi uma novela pioneira, diga-se de passagem, pois o ator Guilherme Piva interpretou um homossexual anos antes de “incorporar” o jeitinho brasileiro de Roberto DaMatta[3] no personagem Licurgo.

Licurgo e Germana (Vivianne Pasmanter), para aqueles que ainda não conhecem a trama seriam personagens que vieram das profundezas do iberismo de Portugal na novela “Novo Mundo”, representam um perfil daquilo que muitos desejam superar de uma forma americanista e conservadora. Entretanto, acaba por nos encantar esse estilo próximo ao Macunaíma e foram literalmente atropelados pela modernização através de uma Maria Fumaça ao final da primeira fase. Viraram os “fantasmas do patrimonialismo” ao redor de um Cassino falido num sonho empreendedor do Quinzinho. Esse seria o casal renegado por aquilo que Nelson Rodrigues[4] chamaria de “complexo de vira lata” do brasileiro.

Por fim, o casal histórico D. Pedro II e a Condessa de Barral (Mariana Ximenes) viveriam uma relação extraconjugal como reflexo das contradições do nosso liberalismo até mesmo na abordagem do tema da escravidão. Aonde muitos veem um clichê de novela está a necessária oportunidade de intervenção para que o folhetim de época não se perca em rodeios de anacronismos em temas e abordagens que deixam a política em segundo plano. Na política eleitoral do século XIX brasileiro não pode confundir o Imperador D. Pedro II como uma “Rainha da Inglaterra” que, na falta de condições de fazer política, se dedica a estudar árabe e outros hobbies. Como escreveu Ilmar Rohloff de Mattos[5] tinham “os olhos do soberano” numa intricada política de aproximação da Coroa tanto em relação aos Liberais (“Luzias”) quanto aos conservadores (“Saquaremas”). Havia uma forte preocupação com a fidelidade matrimonial entre o Imperador e a formação do Estado Imperial através de um corpo político que não se fez presente como personagem na novela: o Conselho de Estado. Portanto, os anseios por “retoques” na narrativa de “Nos Tempos do Imperador” precisam dar uma atenção para esse ponto evitando um desfile de manifestações individualizadas.

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2021.

[1] As pioneiras foram Yolanda Braga em A Cor da Sua Pele (1965), da TV Tupi, e Ruth de Souza em A Cabana do Pai Tomás (1968), da Rede Globo.

[2] Frantz Fanon foi um psiquiatra, ensaísta e militante político que se envolveu com a Frente de Libertação da Argélia. No Brasil, passou a ser conhecido mais por vídeos de Youtube do que pela leitura contextualizada de sua vasta obra. Afinal, a “descolonização” pretensamente defendida pelo autor se refere a crítica ao neocolonialismo que surgiu naquilo que seria a fase superior do capitalismo.

[3] Roberto DaMatta é um antropólogo que se orgulha de se posicionar como conservador. Poderia ser o “ideólogo” do debate da Cultura do Privilégio no seu ensaio Você sabe com quem está falando?

[4] Nelson Rodrigue se destacou como teatrólogo e cronista no país e teve a tragédia familiar de 1929 como possíveis influências em sua obra. O Jornal Crítica trouxe o relato da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr. Ilustrada por Roberto (irmão do autor) e assinada pelo repórter Orestes Barbosa. Sylvia, cujo nome fora exposto na reportagem invadiu a redação do jornal e atirou em Roberto com uma arma comprada naquele dia. Nelson testemunhou o crime e a agonia do irmão, que morreu dias depois. Sylvia, apoiada pelas sufragistas e por boa parte da imprensa concorrente de Crítica, foi absolvida do crime.

[5] O Tempo Saquarema. 1ªedição, São Paulo: Editora Hucitec, 1987 (Há uma 5ªedição de 2004).


POLÊMICA - VAMOS BRINCAR DE PIQUE-ESTÁTUA?


 Roda Infantil - Cândido Portinari (1935)

Vamos brincar de pique-estátua?

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A decisão do BioParque da cidade do Rio de Janeiro, as vésperas do 7 de setembro de 2021, de retirar as estátuas de representação de africanos que se encontravam numa exposição no ambiente Savana Africana, é um sinal. Outros foram os incêndios em julho e agosto de 2021, respectivamente, das estátuas de Manuel de Borba Gato (1649-1718) na Avenida Santo Amaro, em São Paulo e de Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1468-1520) na Glória, no Rio de Janeiro. Todos nós sabemos que os óculos da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na Praia de Copacabana, já foram roubados várias vezes. Pior ainda: em fevereiro de 2020, a estátua inteira de dona Rosa Paulina da Fonseca (1802-1873), mãe do marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1897), foi levada da Glória sem deixar vestígios.

As motivações desse conjunto de situações lamentáveis se encontram numa miríade de circunstâncias. Mas as que supostamente envolvem posicionamentos públicos de dita conotação política são as que mobilizam a história como um terreno de disputa hodierna tal como tem se manifestado nesse 2021 e não só. Aqui os passados têm mudado a cada dia. Os passados não têm sido passíveis de reconstituição e tão só sujeitados as narrativas políticas ou não ausentes de compromissos com a busca das verdades.

A nota do BioParque do Rio diz que em face “da ponderação levantada (...) retirou as estátuas do ambiente e revisará o material temático na representação do continente Africano.” Ou seja: as estátuas foram removidas para se evitar a proteção contra atos de vandalismo? Ou o mercado preferiu evitar uma briga em que ficariam de um lado os supostos cultores dos colonizadores e os manifestantes que ficaram do lado dos ditos colonizados. O único problema disso tudo é o anacronismo infinito do hiperamericanismo que nos cerca e alguns teimam em usar, abusar e lambuzar o espaço público.

A estátua de Pedro Álvares Cabral é uma escultura assinada pelo mexicano José Maria Oscar Rodolpho Bernardelli y Thierry (1852-1931), e foi inaugurada em 1900 para a efeméride do quarto centenário da chegada do português. Sua localização, numa praça, um pouco próxima e anterior aos resquícios do Hotel Glória (que nasceu no centenário do nascimento do Brasil em 1922), foi no passado um ponto de referência para milhões de moradores da Capital desde sua instalação. Pedro Álvares Cabral é uma figura histórica que obviamente nunca desembarcou em solo carioca, mas que, devido ao massacre em Calecute, pode ser considerado um precursor dos conquistadores que atacaram e abusaram dos povos originários de toda a América. Aliás, não seria necessário pensar em mudar este último substantivo geográfico, já que se trata de um nome florentino que nos chegou por um germânico, e que ainda gerou consequências terríveis de suas histórias baseadas em suas viagens ao “Novo Mundo”?

Interessa reter que o destino das estátuas do genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) também não tem tido boa sorte pois estão sendo removidas e/ou demolidas num conjunto de cidades. É o que aconteceu em 2020, em Baltimore, Sacramento (que também retirou a do germano-suíço John Sutter [1803-1880]) e São Francisco, nos Estados Unidos da América (EUA) e em Barranquilla, na Colômbia e na cidade do México em 2021 e em várias outras cidades (Caracas em 2009, Buenos Aires em 2013 e Los Angeles em 2018). Em Nova York, apesar de algumas tentativas, era difícil removê-lo de Columbus Circle, pois seu monumento é na verdade uma homenagem à presença italiana na cidade, o que acaba por ser outro anacronismo. Lá eles o veem como um herói representativo das glórias do renascimento da península itálica, como Maradona é para os argentinos.

As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (como tantas outras aqui e em alhures) são grandes metrópoles, com múltiplas e extensas avenidas e parques onde podem ser colocadas estátuas. Se quisermos erguer um monumento à resistência das mulheres dos povos originários, africanos ou afrodescendentes, ou simplesmente às suas existências, existem muitos lugares para fazê-lo. O que se deve fazer é sempre a consulta democrática, em todas as situações. Ruth Pinto de Souza (1921-2019) não mereceria uma? Por que não se deve representar os povos de uma Savana Africana? O que se coloca no lugar? Obviamente, nem Pedro Álvares Cabral, nem as populações africanas ou afrodescendentes, nem os povos originários, nem a própria concepção de resistência têm algo a ver com isso.

Vejamos alguns dos líderes que ordenaram a remoção de estátuas no continente. Hugo Chávez (1954-2013) fez um julgamento simbólico de Cristóvão Colombo em 2004 e, em 2009, ordenou a remoção da sua última estátua em Caracas. Cristina Kirchner em 2013 fez algo similar em Buenos Aires, embora não tenha conseguido mudar o nome do Teatro Colombo, o mais importante da capital argentina. Os diversos parlamentares do Partido Democrata dos EUA em cada uma das circunstâncias citadas estão enlaçados pelo voto com as Coalizões contra os Símbolos Racistas.

Nada melhor do que remover uma estátua ou colocar uma outra ou não o fazer pelo exercício democrático e sempre com debate cívico educado e bem-informado. E tudo isso para não repetirmos o que vem se fazendo e, se fez com o obelisco e estátua de 1960 do gaúcho Miguel Antônio Pastor (1930-1987) para Isabel (1846-1921), também em Copacabana, com a sua demolição na década seguinte sob o beneplácito da ditadura civil-militar. Enquanto isso não acontece, tomemos cuidado quando formos brincar de pique-estátua!

 

30 de setembro de 2021



[1] Professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional.


domingo, 26 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 6 - DEBATE SOBRE A EDUCAÇÃO NA "IDADE DA PEDRA"


 Por um ensino republicano e democrático

 

Pacelli H. S. Lopes

 

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

 

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.338. (Biblioteca luso-brasileira). Série brasileira.

 

Como as escolas podem operar frente aos desencantos democráticos e republicanos? Não é nenhuma novidade, que desde meados da segunda metade do século XX vemos nossas democracias e repúblicas entrarem em ruínas, essas não conseguiram cumprir tudo que prometeram no pós-guerra.

A pandemia sepultou a educação como a conhecíamos, deixando um vazio entre o que deve vir a ser uma nova forma de construção de conhecimento. Como disse Gramsci, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.”



A princípio precisamos nos perguntar: por que morreu? Como morreu? E de que forma morreu? Entendendo melhor o óbito, quem sabe não poderemos construir uma nova organização do que fazer para um renascer da aprendizagem. Frente a isso, como educador e educadoras, como gestores e gestoras escolares, devemos usar as microescalas de observação e análise da nossa prática diária sobre o dia a dia das escolas, pois acreditamos que nos pequenos detalhes das poucas coerências e das muitas incoerências poderemos encontrar valiosas pistas para as mudanças.

Construímos nas nossas práticas diárias a busca por uma educação na e para a democracia e a república. Com isso, buscamos nos provocar: quando e quais das nossas ações diárias no chão da escola contribuem para a civilidade democrática e republicana? Quando falamos em frentes amplas e democráticas para o futuro da política entre nós será que fazemos isso no dia a dia das escolas? Será que nos revoltamos de tamanha maneira contra os descalabros dos governos da mesma maneira quando os colegiados escolares são engolidos pelas sanhas autoritárias dos diretores e diretoras? Será que ficamos indignados com a ausência de dispositivos democráticos como grêmios estudantis e assembleias de alunas e alunos em nossas escolas? Será que conhecemos e lutamos pela implantação e aprimoramento permanente dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas?

De forma científica e ética, buscarmos operar na realidade com o objetivo e valores claramente democráticos. Não tenhamos a pretensão de dizer que já temos condições de parir o novo, porém, lutemos para construir nas nossas práxis uma escola de bases republicanas.



Para isso, buscamos dialogar com todos os setores da comunidade em busca dos seus valores, filosofias e sonhos para se construir um Projeto Político Pedagógico exequível e real. Depois fortalecemos e possibilitemos a autonomia aos grêmios estudantis e aos colegiados escolares. Criarmos redes com setores políticos, sociais e econômicos dialogando com diferentes correntes políticas que permitam trazer o melhor para a escola.

Dentre tudo que fazemos algo parece ser a pedra angular para a construção de uma cultura democrática e republicana: a percepção palpável de que sozinhos nada podemos fazer, nem mudar a nós mesmo. É necessário irmos aos diálogos para com todos e todas aquelas que queiram ensinar e aprender. E nós todos, o que fazemos na prática cotidiana que possibilita reforçar a república e a democracia?




sábado, 18 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 5 - HARRY POTTER E O BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA


 

                                                  Lord Voldemort e nós

Por Marcio Junior

 

Fenômeno curioso, a literatura costuma ser marcante, por muitas vezes, para o leitor durante toda a sua vida. Alguns personagens são fonte de admiração e sentimento afetivo por muitos no mundo, principalmente se produções vendidas em larga escala, tendo sido conhecidos por leituras feitas em diversas línguas. Por vezes, alegorias e metáforas trabalhadas por autores fazem parte do arcabouço formativo de parte significativa de uma geração, inclusive com adaptações para o cinema.

Vejamos um exemplo: a jornada do vilão Lord Voldemort, construída por J. K. Rownling em Harry Potter e disseminada em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Ao saber que um menino poria em risco a sua busca pela imortalidade, resolve matá-lo, e, ao fazer a tentativa após assassinar seus pais, não tem sucesso e é reduzido à apenas uma parte ínfima de criatura humana e mágica que é. Mais do que isso, termina preso em laço profundo ao menino, que virá a ser o herói em sua jornada (laço este vai sendo descoberto pelo leitor ao longo da saga), sendo formado continuamente para enfrentar o desafio de enfrentá-lo quando estiver pronto, o que põe em evidência a figura do professor. Os próximos anos de “vida” do vilão, assim, são marcados por descobrir e tentar recuperar seus atributos físicos, inclusive o próprio corpo, para dar continuidade na expansão de seu domínio de tudo e todos, enquanto muitos acreditavam erradamente, inclusive, que seu destino fora a morte, libertando o mundo da ameaça maligna. Seu nome, inclusive, não é dito em voz alta.

            O fato é que mesmo a literatura de gênero fantasia, se de qualidade, tem os pés fincados no chão do mundo real, e não há a mágica que encanta a vida sem nosso esforço, sobretudo quanto a resolução dos nossos problemas. Para além dos problemas de longa data, como a imensa desigualdade que podemos ver a olho nu, estamos em apuros e não chegamos à toa neste estado de coisas, resultado de nossos próprios erros.

Tivemos formação social peculiar, fruto de um processo de colonização complexo e estudado em alto nível por intelectuais do Pensamento Social Brasileiro. Não é de pouca diferença, sobretudo quanto aos países vizinhos a nós, nossa face moderna, fruto da proximidade antropológica entre escravas e patrões, por muitas vezes violentas, mas que forneceu equilíbrio aos antagonismos daqueles que vieram de vários territórios do planeta e habitavam os espaços da colônia, a casa-grande, a senzala, a capela, o engenho, o canavial. Demos ao mundo um novo tipo social, o brasileiro: criatura mestiça, indefinida, plástica, emotiva, de guerra e de paz. Um povo.

Sendo assim, dada a pouca idade do país (faremos 200 anos em 2022), refletirmos sobre o futuro é pertinente, porém complexo. A título de exemplo, Sérgio Buarque de Holanda se dedicou, em Raízes do Brasil (1936) a dissertar sobre, entre outras coisas, as perspectivas para o país no capítulo Nossa Revolução, último do livro.

A despeito deste e de outros estudos, desviamos, porém, a rota. O século XX, por exemplo, foi momento de importantes marcações quanto a evolução política do país, como a Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido Comunista Brasileiro, ambos em 1922, fenômenos de animação da sociedade no sentido de reivindicar para ela o papel de protagonista no enfrentamento de nossos problemas. Com a Revolução de 30, o Estado elencou para si esta responsabilidade, sendo bem sucedido principalmente na formação do mercado de trabalho do país, fenômeno paradoxal da nossa história.

Já sob a Constituição de 1988, principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores, fez-se leitura próxima: o PT, fruto de animações sociais iniciadas nos parques industriais do ABC durante o regime militar e crítico do fenômeno do Estado enquanto protagonista da vida, cedeu à esta lógica, instrumentalizando os movimentos sociais e os fazendo perder a luz própria, sujeitando-os à política de Estado. Sendo assim, estava aberta a via para as afirmações de interesses, inclusive patrimoniais, e as movimentações da sociedade foram impregnadas pela lógica mercantil em seus modos de operação.

            Assim, a sociedade brasileira cedeu molecularmente à cultura do indivíduo, resultado de experiências outras, na qual a vida social seria determinada pela construção e afirmação da própria identidade. Esse exercício, puramente individual, seria a via de superação das mazelas do passado, sobretudo as desigualdades e diferenças de cor e outras. A partir desta formatação e com a cultura identitária se tornando hegemônica, constituiu-se na sociedade um tribunal da história, a pretexto de, como que em exercício de laboratório, separar o que é “bom” e o que é “mau” e, sob este pretexto, excluindo das salas de aulas das academias grande parte do conhecimento produzido do Pensamento Social.

            Nesse sentido, na conjuntura da condução de Bolsonaro à Presidência da República, a atuação de Paulo Guedes como Ministro da Economia se justifica e se põe como sintomática de um problema maior. Não há direita ou esquerda em Guedes, assim como, na prática, não há nos coletivos que se multiplicam principalmente nas favelas cariocas, havendo somente o indivíduo a se afirmar, principalmente no mercado. Feita a constatação, as dificuldades que estamos enfrentando se mostram mais complexas, de maior duração. Mesmo com a derrota de Bolsonaro no pleito de 2022, muitas dificuldades conjunturais permanecerão, sobretudo educacionais e de formação das crianças e jovens.

Sendo assim, retornamos ao exercício de J. K. Rownling, que pode nos servir de lição: não é porque o mal possivelmente sairá de cena que ele estará morto. Ele pode estar vivo e invisível aos olhos, mas, mesmo combalido, agirá nas sombras, esperando a hora de retornar. A saída, como construiu a autora, deverá ser professoral.

           

sábado, 11 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 4 - VIVA O SUS E O POVO BRASILEIRO!


 Mesa de Abertura da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986)


Viva o SUS, Viva o Povo Brasileiro!

 

Tiago Martins Simões[1]

 

Há algumas interpretações de que, no Brasil, a modernização foi (e é) um processo lento e molecular, sem rupturas no formato de revoluções europeias do século XVIII. Trata-se de correntes que buscam compreender o que há de singular em nossa história e interpretá-la a partir de chaves de longa duração. A história do Sistema Único de Saúde, em sua maior parte, infelizmente pendeu para o lado oposto, como se o mesmo houvesse saído da Constituinte como uma faísca, ainda que nela resida parte importante de sua construção. De outra parte, deixou mal caracterizada sua conformação política nos anos que antecederam esse nascimento, em especial a partir do final da década de 1970.

Recentemente, uma feliz iniciativa da Fundação Astrojildo Pereira, no contexto preparatório dos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mobilizou personagens importantes de uma geração que participou do movimento sanitarista na construção do SUS, através de uma videoconferência intitulada “O PCB, o movimento sanitarista e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)” que está disponível ao público, no seu canal do YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=sZSxDDPzGUI). Escutar a história viva, a partir de personagens reais, é um exercício importante para minha geração (nascida na década de 1980) e para as gerações seguintes. De igual importância é a aprendizagem sobre nossa história, despida, na medida do possível, de preconceitos e assuntos mal compreendidos.

Dentre estes, destaca-se a generalizada confusão que o senso comum faz do comunismo. Isso veio à tona mais uma vez em nosso 7 de setembro, com bizarros cartazes propondo o “afastamento” do comunismo de nosso país. Não é algo novo, mas persistente no imaginário de muitas pessoas. É pouco sabido, por exemplo, que a expressão “viva o SUS”, talvez uma das mais bradadas desde 2020, carrega uma profunda herança comunista, que contribuiu decisivamente para um dos mais avançados e democráticos sistemas sanitários do mundo.

Em entrevista concedida ao site jornalístico “Outras Palavras” (https://www.youtube.com/watch?v=WOEXvTeJsak&t=267s), Sônia Maria Fleury Teixeira (importante estudiosa e militante da reforma sanitária, uma das fundadoras do pioneiro Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), ao final da década de 1970) reconhece que, a despeito das concepções e estudos que avançaram para uma compreensão abrangente de uma Saúde Coletiva, inclusive pelo próprio CEBES, a mobilização e organização política para a concretização das propostas ficaram sob a responsabilidade dos integrantes do PCB, mesmo durante os difíceis anos da Ditadura.

O PCB conseguiu, antes mesmo do nascimento do SUS, realizar rupturas moleculares com a pesada lógica previdenciária que regia nossa seguridade: a saúde era, nada mais, que uma prestação previdenciária para alguns trabalhadores urbanos com carteira de trabalho assinada. Os rurais sequer tinham acesso ao sistema previdenciário stricto sensu. Apenas para dimensionar o tamanho dessa empreitada, ao longo da década de 1980, inúmeros quadros do PCB ocuparam postos no Poder Executivo, em especial no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), e contribuíram decisivamente para emplacar, parcialmente, princípios estruturantes do SUS, como a universalização do acesso. Abriu-se, por exemplo, uma rubrica no orçamento do INAMPS para que este financiasse as Ações Integradas de Saúde (1983) - primeira ruptura real com a lógica previdenciária da seguridade, mantida a mesma, até então, desde sua origem em Vargas.

Sairia do escopo deste texto abrir essa discussão, através de marcos e personagens. O fato é que o SUS carrega uma história das mais exemplares, especialmente nos dias que vivemos. Comunistas, liberais, conservadores e inúmeros outros atores conseguiram pensar e trabalhar por uma pauta pública, inclusive com políticos dos mais variados espectros políticos no Poder Executivo, no Congresso, na Constituinte. Longe de ter sido um processo pacífico foi, antes de tudo, um marco de nossa democracia e da nossa república, de como elas podem e devem funcionar. Distanciamos-nos disso, mas ainda temos pilares da democracia e da república. Precisamos urgentemente qualificar a política, os partidos, a vida pública.

 

Rio, 9 de setembro de 2021



[1] Professor do Município do Rio de Janeiro


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 3 - OS COLETIVOS E SEU EDGAR


 

A MAIS-VALIA ACABOU, SEU EDGAR

Por Ana Beatriz Camarinha[1]

 

Nos últimos anos, a política brasileira observa um crescimento exponencial de temáticas identitárias como pautas de debates políticos. Os chamados “coletivos” se apresentam principalmente através da internet nas redes sociais no campo à esquerda, atraindo a atenção majoritária dos jovens, no entanto, os mesmos não se posicionam politicamente além do seu individualismo. Com a ausência de uma política efetiva – nesse caso, até mesmo uma teoria política aprofundada – os coletivos apresentam um caráter purista e que beira o pensamento liberal individual. Ou seja, agem como “coletivos individuais”, em que negros se unem para discutir sobre negros para negros, mulheres sobre mulheres para mulheres. O ponto em questão não é a discussão. Como uma mulher, acredito que a pauta sobre muitas questões que versam intolerância e preconceitos que ainda no século XXI esse grupo enfrenta é importante. É ainda necessário, por exemplo, nos posicionarmos em relação ao feminicídio. Ao racismo. Porém, a pauta por si só não impede que mulheres continuem sendo mortas ou negros sofrendo pelo sistema desigual.

O diálogo “eu x os outros” transmitidos por muitos dos coletivos não apresentam a real preocupação com temas da esquerda histórica do século passado, dentre eles: democracia, questão nacional e luta de classes. A identidade sobrepôs os três assuntos que compõe o debate e o choque com o sistema em que a mesma está inserida e diz combater. As apropriações em favor da pauta, logo, se intensificam como uma forma de “politizar” o movimento. Dessa forma, a Frida se torna uma feminista anos após sua morte pelo seu desejo por liberdade sendo uma mulher, um deslocamento um tanto anacrônico. Por sua vez, a parcela ativa como sujeito político da artista mexicana em prol do Comunismo se desmancha no ar. Mais uma vez, o político se esvazia para o identitário prevalecer. 

Diante do cenário trágico do Afeganistão, uma das discussões mais ocorridas nas redes sociais é a opressão das mulheres diante do uso do hijab. Segundo uma reportagem da BBC, veiculada pelo G1, que entrevistou a antropóloga e pesquisadora da USP Francirosy Campos, houve, após a tomada de poder pelo Talibã, um aumento expressivo de preconceito e ataques a mulheres fiéis do Islã no Brasil pelo mesmo motivo. O uso do hijab se constitui como uma obrigação alcorânica, existindo o livre arbítrio e podendo ser enxergado de diversas formas exatamente pela diversidade cultural presente entre os mulçumanos. Algumas mulheres afegãs o enxergam como um artefato religioso, parte de costumes, outras como ato político e até instrumento de empoderamento. Entender a diversidade cultural, mesmo quando através da matéria do costume e do religioso, deveria ser uma questão a se sobrepor à mera luta vendada contra o patriarcado. O machismo, nesse caso, não estaria necessariamente no lenço. Isso me faz lembrar do filme recente da Viúva Negra (2021), dirigido por Cate Shortland e que trata do protagonismo feminino a partir de uma ótica ocidental. As personagens controladas fisiologicamente e emocionalmente são “libertas” por uma mulher vingadora que retorna dos Estados Unidos. Será mesmo que poderíamos afirmar que as afegãs e mulçumanas se sentem manipuladas pelo uso do hijab como se fosse algo implantado à força nelas, sem ouvi-las? Será que o hijab é realmente o ponto mais importante de debate nesse contexto?

Estaríamos tentando preencher a posição de vingadora ocidental?

Mais uma vez, não desconheço a importância de pautas que abordem o feminino, LGBTQI+ ou negros, mas o discurso sem um planejamento, agenda e ação política não gera mudança social efetiva. Ficamos, dessa maneira, restritos a simplificações, a um purismo que desconhece a pluralidade, a discursos que se intitulam decoloniais por modismo e a grupos hermeticamente fechados em si. O esquecimento das pautas de democracia, questão nacional e luta de classes, outra vez, provoca uma esfera política vazia e individualista, puramente militante e carente de formação intelectual no campo político.  Enquanto isso, conceitos como “verdadeira democracia, a liberdade e o Estado de Direito” estão sendo apropriados pela direita que está no poder, a qual repetidamente também utiliza a palavra “povo” em seus discursos, por mais que não reflita essa intenção em suas ações. Mas isso é pauta para outra conversa. 

Se as agendas políticas dos partidos enfraqueceram, se os coletivos se reduzem a pauta identitária não dialogando com as premissas da esquerda histórica, me pergunto: onde está a política que visa, de forma conjunta e diversificada, o povo? Às vésperas do bicentenário da independência, qual o legado do Brasil como uma nação? Na arena política? Qual será daqui a alguns anos o legado dessa esquerda atual na política? Coletivos que realizam lutas individuais? Uma busca incessante por particularismos? Apropriação de conceitos que deveriam estar no debate progressista pela direita motoqueira? Estamos, sim, vivendo um mal estar escatológico. Assim como Tatooine, um território afegão, precisamos de novas fontes de água-viva sob a sombra de romanzeiras; discussões programáticas sobre emprego, educação e saúde na República que ainda resiste sob os combalidos alicerces da Constituição de 1988.

             

 



[1] Graduanda de História na Universidade Federal Fluminense (UFF)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

POLÊMICA - O PARTIDO BRASILEIRO


 As Cortes de Lisboa (quadro de Oscar Pereira da Silva)

Você conhece o Partido Brasileiro?

 

Em memória de Ana Carla Magni (1972-2021)

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Sobre as efemérides de 2022 dedicadas ao nascimento do Brasil devesse acrescentar a perseverança e a resistência do Partido Brasileiro (que contou, entre outros, com Cipriano Barata [1762-1838], Muniz Tavares [1793-1876], que haviam participado da Revolução Pernambucana de 1817 e do Padre Diogo Antônio Feijó [1784-1843]) frente à proposta da recolonização do Brasil apresentada nas sessões das Cortes de Lisboa em 1821, pois foi ali que os nativos revolucionários desenvolveram uma das nossas virtudes ao dotar o sentimento da nacionalidade brasileira de uma pluralidade e nunca ter concedido, e não podia realmente conceder, uma unívoca definição de gênero, étnica ou de raça. O que mais se aproximava de sua natureza era o entusiasmo pelo junto e misturado das múltiplas identidades amalgamadas ou não na miscigenação e noutras modalidades de mestiçagens, mas que no final eram as brasileiras e brasileiros que estavam lá e aqui e ponto.

Em parte pelo mito - antigo - e pela realidade - bem mais recente - da miscigenação e mestiçagens no Brasil (de Gilberto Freyre [1900-1987]) e em alguns outros países ibero-americanos, especialmente no Mexico (de José Vasconcelos Calderón [1882-1959]), no Peru (de José Carlos Mariátegui [1894-1930]) e no Equador (de Alfredo Pareja Díez-Canseco [1908-1993], a nacionalidade brasileira e de outras nações da região nunca tiveram uma conotação única de gênero, etnia ou raça que outras sociedades reivindicam, seja desde sua origem ou adquirindo ao longo do tempo.

Isso está começando a sofrer ataques no México, Peru, Equador e Brasil. No Brasil, não tanto pela quantidade de disparates que temos vivido por conta do identitarismo de um lado e pelo resultado eleitoral de 2018 com Bolsonaro de outro, onde ambas as manifestações desejam ver pelas costas o bicentenário do Partido Brasileiro nesse segundo ano pandêmico de 2021 e pela sua ausência de comemorações agora e de sua projeção para 2022, que acabam por anunciar em essência de que nada há a comemorar e os subtextos esdrúxulos que acompanharão essas posturas. Por enquanto, essas manifestações são algo marginal e provavelmente também o serão de curta duração. Se Bolsonaro e os candidatos do identitarismo forem derrotados em 2022, isso não será mais do que um fenômeno passageiro ou um breve pesadelo que felizmente terminará quando todos nós acordarmos.

Mas não vamos nos enganar. Algo de conotação étnica e ou racial na nacionalidade brasileira começa a emergir, como em outros países ibero-americanos, com governantes semelhantes. Não deve ser silenciado ou escondido. O fenômeno não é muito diferente do que aconteceu, por exemplo, na França nos últimos tempos. Muitos intelectuais e políticos franceses ficaram alarmados, ou mesmo angustiados, com a chegada ao país do Iluminismo de estranhas importações da academia norte-americana. Não é tanto sobre o Me Too, que é tão válido e atual na França quanto nos Estados Unidos da América, ou qualquer outro país. Referimo-nos antes aos cultos dos identitarismos, às tentativas de mudar o texto e a gramática francesas para acomodar etnias, raças, gêneros ou outras aspirações ou demandas e, acima de tudo, às diferentes formas de reagir a certas presenças do Islã, por um lado, inegáveis na França, e ao islamismo radical, tão existente e alarmante por outro.

Houve um tempo em que era a academia norte-americana que importava conceitos e teorias de Paris. Talvez primeiro Althusser e Lacan, depois Foucault e Derrida, fizeram fortuna nas grandes universidades dos Estados Unidos da América (e não só por lá), contribuindo em muitas abordagens com construção de conhecimentos extraordinários - ver os pontos de Foucault sobre a prisão, a clínica, a medicina, a sexualidade, entre outras dimensões. Agora é o contrário, mas a qualidade do fluxo reverso não é necessariamente a mesma.

Começa a surgir no Brasil um sentimento que deve preocupar a todos nós. Alguns brasileiros e brasileiras seriam menos brasileiras e brasileiros do que outros, e não porque sejam do Norte ou do Sul do país, porque são ricos ou pobres, porque são migrantes ou de comunidades dos povos isolados como bem pontuou Sebastiao Salgado, mas porque são pardos, mestiços, miscigenados e não identitários, numa palavra, brasileiras e brasileiros. Haveria pelo menos dois tipos de brasileiros e brasileiras: os verdadeiros e verdadeiras e os demais. Isso, além de terrivelmente perigoso, põe em causa um suposto fundamentalismo de identitarísmos à nacionalidade brasileira, com toda a mitologia que se deseja, banindo ad absurdum a miscigenação e a mestiçagens. Sabemos que, essa realidade, pode ter tido um uso político com um que de falso e, talvez, até mesmo tardiamente. Também sabemos que, como uso mítico, tem sido extraordinariamente útil, certamente, para tentar exercer uma forma de dominação doce e poder açucarado, uns dos outros. Mas foi isso que nos permitiu coexistir no que começou a se delinear como nação no final do século XIX ou no início do século XX, em um país que tinha Estado, mas não tinha absolutamente nada como uma Nação. Como diz lucidamente Antonio Risério, é preciso ter cuidado com isso, porque, por mais complexa que tenham sido a miscigenação e a mestiçagem (e o foram como sabemos), é a principal história inclusiva que existe entre nós desde quando nascemos e passamos a existir.

 

1 de setembro de 2021



[1] Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 2 - QUEM AINDA ASSISTE NOVELA?


                                                            Nos tempos do “Lacrador”[1]

Por Vagner Gomes de Souza

 

A novela “Nos Tempos do Imperador” (Rede Globo) estaria a despertar uma curiosidade da sociedade? Os sujeitos inseridos nos coletivos de seu roteiro distante da política de mudança e conservação de nossa História. Lembrados ficamos sobre a Lei Euzébio de Queiroz, mas não compreendemos o silêncio em relação a Lei de Terras que também antecedeu aquela época. Portanto, há os proprietários rurais do Recôncavo Baiano, mas por onde andam os “Barões do Café” do Vale do Paraíba? As famosas narrativas, que inviabilizam a “Grande Política” de Frente Democrática diante do individualismo metodológico de Maria do Pilar que deixou para trás sua irmã, acabou por fazer com que D. Pedro II (muito bem interpretado pelo Selton Mello) pareça um “lacrador” das redes sociais. Todavia, ainda circulam no personagem da História o peso do passado de seu pai ainda compreendido como um símbolo da infidelidade que se coroaria com tendências de um anacrônico Rei Sol dos Trópicos.

Pedimos licença aos leitores que se sintam levados quase ao precipício diante das lições de História que se ausentam em muitos lugares principalmente em livros didáticos que deixaram de lado o “lugar de fala” de Marc Bloch. A História para ser investigada sem que se levante um “Tribunal” fazendo juízo entre o bem e o mal. Nos esforços de suavizar a obra da ficção, o Núcleo Cômico não tem sido muito feliz diante da concorrência com o “coronelismo jorgeamadiano”. Lembrai-vos de Ramiro Bastos e o problema do “crime passional” debatido nos tempos da Declaração de Março de 1958 como um bom preâmbulo para se debater a questão agrária no pré-1964. Sejam nas aulas ou se é que há condições para essas aulas, pois as referências dos livros que deveriam se impor as armas aqui se acumulam. Mas como hei de resistir sem estar a ler? Nas salas das reuniões on-line se comentam sobre os Youtubers que silenciaram os escritores diante também do mundo universitário brasileiro que virou a “Jangada de Pedra” em um Oceano de identidades. Então, apesar dos esforços na dramaturgia do ator Guilherme Piva, nos poderíamos relembrar se Licurgo foi ou não foi do “Partido Brasileiro” uma agremiação partidária que esteve nas sombras de “O Novo Mundo” e hoje está nos escombros da memória da análise da política brasileira assim como a Taberna.

O sonho de Dom Pedro II era ter sido Professor conforme as principais biografias do mesmo. Todavia, as dificuldades do processo de educação como formação ainda vai nos acompanhar por muito tempo diante de muitas dificuldades existentes. A primeira geração de profissionais de educação formados no imediato Fora Collor já começaram a se aposentar de suas atividades e ainda não se entendeu que o “FORA” de nada trouxe de lição para o processo educacional de nossa política. Enfim, os educadores da “Era do Real” vão cada vez mais a envelhecer diante de alunos nascido aos sabores do Danoninho para lembrarmo-nos de um Ex-Presidente que se caracterizou por fazer balanços políticos através do cardápio provavelmente presente no cotidiano do brasileiro. Essa fratura do mundo da política por conta do mundo social foi o “carro do ovo” desses tempos de inúmeras serpentes que sem pernas desejam fazer sua marcha sobre Brasília.

 A crise da Democracia na atualidade tem muitos possíveis fatores que demandam um melhor enquadramento da História de nosso país nas proximidades das comemorações do Bicentenário da Independência e também de muitos personagens que ganham “máscaras” anacrônicas em alguns momentos. As quatro linhas da historiografia devem contribuir para que as instituições democráticas se consolidem diante de debates esvaziados da realidade. E que D. Pedro I seja repensado por seu filho nas mesmas linhas do personagem que Tarcísio Meira imortalizou em “Independência ou Morte” (1972) – grande filme crítico da Ditadura Militar, mas pouco visto dessa forma.



[1] Esse artigo é resultado de conversas com meus Velhos Camaradas acrescidas de outras reflexões feitas com meus filhos. 

domingo, 15 de agosto de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 24


 

Democracia e República: Sem gestão não há solução

Por Vagner Gomes de Souza

 

As instituições democráticas passam por um momento de “teste” na sua capacidade de responder as açãos antisistêmicas exercidas como um projeto político de viés autoritário que permita uma “feira de negócios” em nosso combalido capitalismo. A economia brasileira não oferece sinais de recuperação diante do equívoco na ausência de uma seriedade no combate a pandemia prolongada por variantes e surtos diante de uma campanha nacional de vacinação lenta. Milhões de desempregados, com certeza, não vão retornar ao mercado de trabalho de imediato e/ou com a mesma renda anterior a março de 2020. Enquanto isso, serviços públicos essenciais como saúde e educação estão sob a gestão de Ministros que sempre atuaram em empresas privadas. A situação se agrava com os devaneios de uma Reforma Administrativa (PEC 32) que desmontaria de vez a capacidade de gestão weberiana das políticas públicas, pois servidores públicos sem estabilidade implicam em descontinuidades na gestão das coisas públicas.

A Presidência da República é o aríete dessa movimentação que encaminha o esfacelamento das linhas sociais consolidadas na Constituição de 1988. Uma personificação de uma guerra de movimento da antiguidade com investigações de sobre possíveis ligações com grupos de “centuriões digitais”. Nesse terreno de movimento as forças retrógradas ganham corpo uma vez que não se abalaram com a sequência de mobilizações populares nas ruas organizadas por uma oposição não articulada organicamente num programa. As ruas não fizeram pontes políticas com as instituições partidárias. Pelo contrário, perdeu-se tempo e energia sobre “tapas e beijos” em relação a uma agremiação partidária que surgiu no ano da Carta de 1988 questionando as barganhas políticas do “Centrão”.

A Democracia se arranha pelas ações e discursos que limitam uma prática de oposição em 2021 com um ressentimento por derrotas recentes. Se ganha força no enfrentamento dos passos retrógrados com posturas que ampliem o canal político das forças democráticas através de um debate programático. O ex-Presidente Lula se manifestou nas redes sociais sobre a necessidade de uma reconstrução de nossa Democracia. Concordamos com esse ponto de vista e aprofundamos a ideia do quanto esse será um longo processo de reencontro de nosso país com a formação de quadros para uma gestão pública coordenada. Não se alimenta uma gestão administrativa com gasolinas incendiárias de nosso passado, mas com um compromisso de uma renovação republicana a partir desse momento de debate sobre o bicentenário do começo de nossa formação como Estado Nação.

Não se faz política com calculadoras de coeficiente eleitoral. Essa deveria ser a postura das forças democráticas para melhor enfrentar essas ameaças autoritárias que visam subtrair a capacidade de gestão administrativa do Brasil que ganhou fôlego após 1930. Há anti-Revolução Passiva para todos os gostos nesse mosaico político, mas a política democrática ainda precisa de se firmar com laços e aliados programáticos no centro político. Portanto, a gerência programática é condição para formação de futuros gestores em conexão com a vida pública. Não podemos deixar de reconhecer que há forças de oposição que não compreendem ainda tamanha a importância da moderação da Democracia nesses tempos turbulentos, pois atacam o Presidente da República como se estivessem nas eleições de 2018. Esse trágico ano precisa ser superado não só pela ampliação da Frente Democrática assim como pela introdução de uma nova orientação programática. Esse é ainda o papel de valor dos Partidos Políticos se estiverem, de fato, compromissados com a questão democrática uma vez que formação de quadros se faz numa gestão programática e não com agrupamentos de militantes de um jardim de interesses. Se o Partido Político ainda poderia ser entendido como o “Moderno Príncipe”, a gestão democrática das coisas públicas fortalecerá a luta pela reconstrução das instituições desde que também superemos os anéis burocráticos disfarçados em “narrativas”.