Lord Voldemort e nós
Por Marcio Junior
Fenômeno
curioso, a literatura costuma ser marcante, por muitas vezes, para o leitor
durante toda a sua vida. Alguns personagens são fonte de admiração e sentimento
afetivo por muitos no mundo, principalmente se produções vendidas em larga
escala, tendo sido conhecidos por leituras feitas em diversas línguas. Por
vezes, alegorias e metáforas trabalhadas por autores fazem parte do arcabouço
formativo de parte significativa de uma geração, inclusive com adaptações para
o cinema.
Vejamos
um exemplo: a jornada do vilão Lord Voldemort, construída por J. K. Rownling em
Harry Potter e disseminada em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Ao saber
que um menino poria em risco a sua busca pela imortalidade, resolve matá-lo, e,
ao fazer a tentativa após assassinar seus pais, não tem sucesso e é reduzido à
apenas uma parte ínfima de criatura humana e mágica que é. Mais do que isso,
termina preso em laço profundo ao menino, que virá a ser o herói em sua jornada
(laço este vai sendo descoberto pelo leitor ao longo da saga), sendo formado
continuamente para enfrentar o desafio de enfrentá-lo quando estiver pronto, o
que põe em evidência a figura do professor. Os próximos anos de “vida” do
vilão, assim, são marcados por descobrir e tentar recuperar seus atributos
físicos, inclusive o próprio corpo, para dar continuidade na expansão de seu
domínio de tudo e todos, enquanto muitos acreditavam erradamente, inclusive,
que seu destino fora a morte, libertando o mundo da ameaça maligna. Seu nome,
inclusive, não é dito em voz alta.
O fato é que mesmo a literatura de
gênero fantasia, se de qualidade, tem os pés fincados no chão do mundo real, e
não há a mágica que encanta a vida sem nosso esforço, sobretudo quanto a
resolução dos nossos problemas. Para além dos problemas de longa data, como a
imensa desigualdade que podemos ver a olho nu, estamos em apuros e não chegamos
à toa neste estado de coisas, resultado de nossos próprios erros.
Tivemos
formação social peculiar, fruto de um processo de colonização complexo e
estudado em alto nível por intelectuais do Pensamento Social Brasileiro. Não é
de pouca diferença, sobretudo quanto aos países vizinhos a nós, nossa face
moderna, fruto da proximidade antropológica entre escravas e patrões, por
muitas vezes violentas, mas que forneceu equilíbrio aos antagonismos daqueles
que vieram de vários territórios do planeta e habitavam os espaços da colônia,
a casa-grande, a senzala, a capela, o engenho, o canavial. Demos ao mundo um
novo tipo social, o brasileiro: criatura mestiça, indefinida, plástica,
emotiva, de guerra e de paz. Um povo.
Sendo
assim, dada a pouca idade do país (faremos 200 anos em 2022), refletirmos sobre
o futuro é pertinente, porém complexo. A título de exemplo, Sérgio Buarque de
Holanda se dedicou, em Raízes do Brasil
(1936) a dissertar sobre, entre outras coisas, as perspectivas para o país no
capítulo Nossa Revolução, último do
livro.
A
despeito deste e de outros estudos, desviamos, porém, a rota. O século XX, por
exemplo, foi momento de importantes marcações quanto a evolução política do
país, como a Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido Comunista
Brasileiro, ambos em 1922, fenômenos de animação da sociedade no sentido de
reivindicar para ela o papel de protagonista no enfrentamento de nossos
problemas. Com a Revolução de 30, o Estado elencou para si esta
responsabilidade, sendo bem sucedido principalmente na formação do mercado de
trabalho do país, fenômeno paradoxal da nossa história.
Já
sob a Constituição de 1988, principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores,
fez-se leitura próxima: o PT, fruto de animações sociais iniciadas nos parques
industriais do ABC durante o regime militar e crítico do fenômeno do Estado
enquanto protagonista da vida, cedeu à esta lógica, instrumentalizando os
movimentos sociais e os fazendo perder a luz própria, sujeitando-os à política
de Estado. Sendo assim, estava aberta a via para as afirmações de interesses,
inclusive patrimoniais, e as movimentações da sociedade foram impregnadas pela
lógica mercantil em seus modos de operação.
Assim, a sociedade brasileira cedeu
molecularmente à cultura do indivíduo, resultado de experiências outras, na
qual a vida social seria determinada pela construção e afirmação da própria
identidade. Esse exercício, puramente individual, seria a via de superação das
mazelas do passado, sobretudo as desigualdades e diferenças de cor e outras. A
partir desta formatação e com a cultura identitária se tornando hegemônica,
constituiu-se na sociedade um tribunal da história, a pretexto de, como que em
exercício de laboratório, separar o que é “bom” e o que é “mau” e, sob este
pretexto, excluindo das salas de aulas das academias grande parte do
conhecimento produzido do Pensamento Social.
Nesse sentido, na conjuntura da
condução de Bolsonaro à Presidência da República, a atuação de Paulo Guedes
como Ministro da Economia se justifica e se põe como sintomática de um problema
maior. Não há direita ou esquerda em Guedes, assim como, na prática, não há nos
coletivos que se multiplicam principalmente nas favelas cariocas, havendo
somente o indivíduo a se afirmar, principalmente no mercado. Feita a
constatação, as dificuldades que estamos enfrentando se mostram mais complexas,
de maior duração. Mesmo com a derrota de Bolsonaro no pleito de 2022, muitas
dificuldades conjunturais permanecerão, sobretudo educacionais e de formação
das crianças e jovens.
Sendo
assim, retornamos ao exercício de J. K. Rownling, que pode nos servir de lição:
não é porque o mal possivelmente sairá de cena que ele estará morto. Ele pode
estar vivo e invisível aos olhos, mas, mesmo combalido, agirá nas sombras,
esperando a hora de retornar. A saída, como construiu a autora, deverá ser
professoral.