segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 068 - UM SOPRO DE ESPERANÇA A BEIRA DA COVA


 

Uma loa do Natal

Uma loa do Réveillon

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Embora seu título tenha sido traduzido como Um Conto de Natal e não como uma canção ou vilancico natalin0, o livro de Charles Dickens (1812-1870) foi escrito em menos de um mês originalmente para pagar dívidas, mas tornou-se um dos maiores clássicos natalinos e é uma obra curta, uma “nouvelle”, como diriam os franceses, que aborda temas universais em torno de histórias que acontecem no Natal. Publicado em 1843 na Inglaterra vitoriana e no preludio da segunda revolução industrial, tem todas as características dos escritos de Dickens, humanidade, dor, pobreza, injustiça e redenção. Embora possa parecer, não é uma ficção apenas para crianças e/ou adolescentes, mas para o público em geral. Li-o quando menino e causou-me uma grande impressão e tornou-me um leitor de Dickens para sempre. Agora que sou mais velho, não desprezo reler suas obras.

Ebenezer Scrooge, seu protagonista, era um agiota rico, mesquinho, seco e indiferente ao sofrimento alheio. Um herdeiro do Shylock de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare (1564-1616). Para ele, empatia, gentileza e compaixão são coisas absurdas e inúteis. Porém, na noite anterior ao Natal ele é visitado pelo fantasma de um antigo parceiro tão ganancioso quanto ele, que lhe mostra suas correntes de alma dolorosa e lhe mostra os espíritos do Natal passado, presente e futuro que mergulham nosso protagonista em sua nostalgia por juventude. Também lhe mostra o sofrimento daqueles que o rodeiam hoje e a visão sombria e dolorosa de um futuro solitário e amargo.

No dia seguinte, Scrooge muda e se redime, aproxima-se dos que o rodeiam e inicia uma nova vida serena, altruísta e afetuosa. Ensina-nos, consequentemente, que é possível mudar e para melhor, e que não estamos condenados a serem escravos dos nossos demônios.

É verdade que ainda faltam semanas para o Natal e o final deste ano de 2024, tão cheio de tragédias e dores, que na experiência do Grande Número tem sido gravíssima, mas as coisas também não têm sido fáceis para o nosso país e para a nossa região como se viu a pouco com o Acordo de Parceria Mercosul-União Europeia, já para não falar da situação planetária.

Voltamos a mencionar o primeiro Scrooge (Ainda estamos aqui - https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/09/boletim-brasilia-conection-bbc-059.html) e seu autor Charles Dickens porque sua caneta é muito expressiva ao apontar como a vida cotidiana está relacionada com as características gerais da vida em sociedade. É assim que os traços negativos, gananciosos e indiferentes do primeiro Scrooge não são estranhos, estão relacionados em seu espírito com regressões, violência e maus sentimentos nas sociedades. Pelo contrário, o altruísmo sereno do segundo Scrooge tem um ar familiar, assemelhando-se às virtudes da coexistência democrática e pacífica a nível social.

Porque essa questão mobiliza a seguinte indagação: qual é a natureza do governo em curso, nascido da Frente Democrática de 2022 reconhecida no discurso ao Congresso Nacional em primeiro de janeiro de 2023? Está claríssimo que ele busca a normalização nas relações entre democracia política e democratização social no Brasil. De como é que nós derrotamos o regime golpista pela via que todos conhecemos, não revolucionária, democraticamente construída.

É este quadro que nós temos que dominar. Antes mesmo da conquista da democracia política em 2022, o processo da democratização social avançava no País, por força mesmo da luta pela vida na pandemia. O fato é que, quando esses dois processos coincidem, o que temos assistido, tem sido um avanço da democratização social associada às conquistas que se vêm fazendo em termos de democracia política.

Assim, o governo concebeu, à ingleses no Brasil, um tipo de reincorporação dos de baixo, contando, primeiro com o plano de estabilização fiscal e os efeitos derivados, em termos distributivos de renda, provocados por isto. Os indicadores sociais são todos nesta direção. Claro está que essa incorporação passa pela revolução passiva do Grande Número.

Desta forma, nós temos que aprimorar a articulação dessas duas dimensões que recortam a sociedade brasileira de hoje: a da democracia política e a da democratização social. Sem isso, creio que vamos perder a oportunidade da passagem do primeiro Scrooge para o segundo Scrooge, como perdemos todas as oportunidades até aqui.

É isso o que há de esperançoso nesta história que ainda pulsa a despeito dos caminhos e descaminhos do que aí está. Uma loa ao Natal, uma loa ao Réveillon.

8 de dezembro de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

SÉRIE ESTUDOS - O "GAMBITO DO REI" DA DIPLOMACIA BRASILEIRA

 




O que a votação na Assembleia Geral da ONU revela sobre a relação do Brasil com os Estados Unidos e a China?

Por Rodrigo de Sousa Escaño¹

 

Uma grande questão nas Relações Internacionais e Ciência Política é se é possível medir o alinhamento entre países de maneira quantitativa. Uma medida aproximada (proxy) para responder à questão seria calcular a convergência da votação deles na Assembleia Geral das Nações Unidas. 

É fácil pensar em países que seriam interessantes para entender a relação com o Brasil: os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo desde o fim da segunda guerra mundial, e depois do colapso da União Soviética restou como única superpotência mundial. Posição esta que passou a ser questionada recentemente com a ascensão econômica e militar da China.

Como a posição brasileira variou ao longo da Nova República em relação a esses países? A mudança de presidentes ao longo desse período pode ter influenciado algo? 

Para responder a essas perguntas, este artigo irá fazer uma análise exploratória da base de dados mantida por Erik Voeten, professor da Georgetown University, disponível no Harvard Dataverse². O percentual de alinhamento está calculado na própria base. Iremos percorrer desde o governo de José Sarney até o último ano de Jair Bolsonaro, separadamente para cada país de interesse.

 

Estados Unidos

Gráfico 1- Convergência Brasil e Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU


Ao contrário do que o autor esperava, o governo Collor (1990-1992) apresentou declínio no alinhamento com os Estados Unidos em relação ao seu antecessor, José Sarney. Em contraste, os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC) foram marcados por alto alinhamento, caindo nos dois últimos anos do mandato deste.

A convergência diminuiu drasticamente depois de Lula assumir o governo (2003), atingindo o pico negativo de todo período analisado em 2007, porém voltando a subir a partir do ano seguinte. O mundo então passava pela crise econômica de 2008, e talvez a eleição de Barack Obama no mesmo ano tenha influenciado.

O governo Dilma I manteve a tendência de alta no começo, começando com 41% logo em 2011, porém observou uma forte queda a partir de 2013. Isto se deu provavelmente ao escândalo da espionagem, onde se descobriu que a própria presidenta havia sido grampeada pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, mais conhecida pela sigla em inglês, NSA.

O governo Temer assistiu o pico histórico de convergência, 50% em 2016, porém viu um leve declínio nos anos seguintes. A tendência geral do governo Bolsonaro foi de alta, chegando a 48% em 2022.

 

China 

Gráfico 2- Convergência Brasil e China na Assembleia Geral da ONU


A convergência das votações na ONU entre Brasil e China são significativamente maiores do que em relação aos Estados Unidos. Talvez isso se dê à similaridade de interesses em diversas matérias entre países do chamado terceiro mundo ou sul global, em oposição aos países ditos “ricos”. Porém, a ascensão chinesa como potência econômica e militar mundial parece ter um efeito reverso ao estudarmos o alinhamento brasileiro com ela.

A série histórica chinesa começa altíssima, tendo mais de 90% de alinhamento em todos os anos do governo Sarney e Collor. Porém, o Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989 pode ter afetado a relação entre os dois países. Já nos anos finais de Collor se observa um declínio, que piora a partir de Itamar Franco (1992), se mantendo por todo o governo FHC. O menor valor desse período foi 2002, com 81%.

Com os governos Lula I e II os valores voltam a aumentar levemente, ficando acima de 85% durante este período. Esta tendência se manteve com Dilma I, chegando a 93% em 2013.

Após Temer assumir (2016) há uma forte queda no alinhamento, quadro que se manteve no governo Bolsonaro (2018-2022). Este observou o menor valor do período analisado, 71% em 2022.

 

[1] Doutorando em Ciência Política pela UNIRIO, pesquisador do Grupo de Relações Internacionais e Sul Global (GRISUL).

[2] Disponível em: https://dataverse.harvard.edu/dataset.xhtml?persistentId=doi:10.7910/DVN/LEJUQZ