Os
Quatro da Candelária e o “mistério de Nápoles”
Por Vagner Gomes
de Souza[1]
“(...)
Ocorre ainda hoje que homens relativamente jovens (com pouco mais de 40 anos),
de ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de
vinte e cinco anos de serviço público, não se dediquem mais a nenhuma atividade
produtiva, mas vegetem com aposentadorias mais ou menos elevadas, ao passo que
um operário só pode desfrutar de uma aposentadoria depois de 65 anos e um
camponês não tem limite de idade para o trabalho (por isso, o italiano médio se
surpreende quando ouve dizer que um americano multimilionário continua ativo
até o último dia de sua vida
consciente). Se numa família um padre se torna cônego, imediatamente o ‘trabalho
manual’ se torna ‘uma vergonha’ para toda a parentela; no máximo, é possível dedicar-se ao comércio”
Antonio
Gramsci - Caderno 22: “Americanismo e fordismo” pp. 245-246.
O seriado “Os Quatro da
Candelária” é uma oportunidade para elaborar um balanço político sobre as
últimas três décadas da política carioca. Em quatro episódios, nós testemunhamos
as idas e vindas de seus personagens moradores de rua num país a beira da hiperinflação.
Um país na “antessala” do Plano Real (1994). As considerações de Antonio
Gramsci em “Americanismo e Fordismo”, provavelmente escritas em 1934, sugerem
uma teoria política sobre as sociedades “infladas” pelos mais diversos níveis
de “clientelismo” pela via da superestrutura estatal.
Não busquemos frases feitas para comentar “Os
Quatro da Candelária”. Elas podem esvaziar a complexidade política e social
dessa série. Lembremos que o
esvaziamento econômico carioca foi, gradualmente, se consolidando na sua
desindustrialização com encerramento das antigas fábricas de tecidos e outras de
bens básicos. O fenômeno não foi compreendido em tempo para se perceber que,
mais que uma “herança maldita” da escravidão, a sociedade carioca estava se
inserindo numa nova etapa de modernização conservadora pela via do setor de
serviços.
Não há rodeios no
roteiro numa contagem regressiva até o desfecho que foi o “11 de setembro” das
forças democráticas no município. Pela postura cada vez mais belicista das
forças da segurança pública numa cidade cada vez mais esvaziada economicamente.
A Candelária está na memória política da luta democrática por causa do comício
das Diretas Já em 10 de abril de 1984. Os tiros da noite do dia 23 de julho de
1993 atingiram muito a nossa vitalidade democrática. Na sequência os chamados “Cavalos
Corredores”; as guerras das facções criminosas; a milicialização do espaço
público; os tiros numa vereadora em plena intervenção da segurança pública
estadual em 2018.
Lembrai-vos do 12 de
junho de 2000. Um sequestro que tem suas “linhas tênues” no episódio de 1993. A
política carioca foi se entregando cada vez mais a ao esvaziamento de sua capacidade
de reflexão. O distanciamento do mundo acadêmico da vida pública ficou cada vez
mais evidente na baixa qualidade das assessorias políticas que predominam
muitos políticos uma vez que seriam funções contaminadas pelo parasitismo do “mistério
de Nápoles”.
Olhar para os desafios
do Rio de Janeiro a 40 anos atrás e projetar os desafios para os próximos 40
anos – um pouco do sonho utópico “afro futurista” do último episódio. Do Jesus “surfista
de trem” ou “Wakanda carioca”. O
parasitismo da cidade com suas instituições que retroalimentaram um viés mais tecnocrático
na vida política através de grupos políticos de assessoramento a parlamentares
com pouca vivência política. A festividade carioca foi inserida numa dinâmica
mais de mercado e o liberalismo em economia se incorporou no liberalismo social
das classes subalternas. Os personagens Douglas, Sete, Pipoca e Jesus se
comunicam com essas transformações em que a pressão dos interesses mal compreendidos
se revela. Por fim, a cena do filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1980) é a “cereja
de bolo” de uma série que convida aos jovens intelectuais a muitas reflexões.
Portanto, deslumbramos
na série uma nova oportunidade para nos olhar pelo espelho da
representatividade. Nos dizeres de Bernad Manin,
“(...) O governo
representativo parecia, assim, aproximar-se do ideal de autogoverno, do povo governando
a si mesmo. Esse progresso rumo à democracia, entendida como o governo do povo
pelo povo, chegou a ser interpretado como um prolongamento da história dos
Whigs ou, numa versão mais próxima de Tocqueville, como um degrau no avanço
inexorável dos direitos de igualdade e autonomia dos indivíduos, que o ‘parlamentarismo
liberal’ realizava de modo imperfeito.” (Bernard Manin, “As metamorfoses do
governo representativo” in: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n.
29, p. 5-34, 1995)
[1]
Doutorando do PPGCP-UNIRIO
2 comentários:
O Rio de Janeiro nunca mais será lindo novamente?
“Nossa famosa garota nem sabia a que ponto a cidade turvaria, esse Rio de amor que se perdeu.” Diz Vinícius De Moraes em sua canção “Carta ao Tom 74”. O Rio de Janeiro não voltará a ser belo… Não enquanto crimes como retratados em “Os Quatro da Candelária” continuarem sendo cometidos. A brutalidade dos policias, a desigualdade social, o abandono social nas comunidades, a violência, o descaso com os direitos humanos, todos esses fatores contribuem para o desencantamento da “Cidade Maravilhosa”.
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