A
fábula como ilustração da casa comum e o legado para os que virão
Marcio Junior[1]
Pedrinho
sonhou. Sonhou que estava sentado numa pedra, com os olhos nos carneiros do
rebanho. Súbito, foram se sumindo os carneiros e apareceu uma estrada que ia perder-se
nas montanhas azuis. Um vulto vinha vindo pela estrada. Um homem... Um velho de
andar trôpego...
O
velho chegou e sentou-se na pedra.
−
É daqui? – Perguntou Pedrinho.
−
Sou de todos os lugares e todos os tempos. Sou a história.
Pedrinho
encarou-o, surpreso. O velho não era mais o velho, sim uma deidade semelhante a
certa figura feminina que ele vira no Partenão, com a cara de musa.
Monteiro
Lobato. O Minotauro. P. 106.
Não é preciso procura
exaustiva para percebermos que estamos lendo mal; a Progress in
International Reading Literacy Study (Estudo Internacional de Progresso em
Leitura) - PIRLS 2021 demonstrou que há uma dificuldade das nossas crianças em
ler e interpretar textos, sejam eles informativos ou literários, e que essa
dificuldade atinge não só um grande número de crianças, sendo apenas um pequeno
número delas as que conseguem ler, no 4° ano do Ensino Fundamental, de forma
minimamente satisfatória e que vai proporcionar base para aprender, ao longo do
tempo, por meio de textos.
Como ninguém nasce
sabendo, a sugestão óbvia é que os problemas que nos levaram a esse quadro
estão mais nos que são responsáveis por ensiná-las do que nas próprias
crianças. Isso significa que a solução é complexa, difícil e demorada, pois
demanda que pais, professores, governos e não só ajam em favor da necessária
refundação educacional. Será que somente a recondução das crianças à escola,
nem sempre feita, após o fim da emergência de saúde pública da COVID-19 foi
suficiente? E os anos "perdidos"?
Essa breve exposição do
atual quadro educacional mostra que tanto o problema quanto as suas
consequências só são possíveis de compreender, mensurar e tentar resolver na
medida em que ele é posto como de fato é: em vários aspectos muito mais longo
do que o presente e muito mais amplo do que o Brasil, que, mesmo dotado de
particularidades tanto vantajosas quanto desvantajosas, apresenta sintomas que
são, além de globais, também uma demonstração do esgotamento do contrato social
da educação cuja pedagogia filosófica se apoiava na experiência das luzes do
século XVIII.
É nesse contexto (assim
como também com a entrada em cartaz de Gladiador 2) que Megalópolis, filme
independente do octogenário Francis Ford Coppola, pai, avô e bisavô, nos brinda
com a fábula novaiorquina/romana da casa comum. O gênero literário, transposto
para o audiovisual de forma quase artesanal, permite a liberdade de nomear
ludicamente seus personagens como alguns personagens da antiguidade, falando a
partir de um país já nascido republicano, mas sem deixar de beber de
experiências que conheceram a monarquia, como nós.
Nessa Nova Roma em cuja
luxúria é, também, meio da juventude ganhar a vida como se Vênus fosse exposta
no Onlyfans, o mal-estar civilizacional está instalado sem a capacidade das
forças responderem à altura, na medida em que pouco conseguem unir, entre
muitas coisas, a capacidade responsiva da boa ciência, de boa leitura do mundo,
para os problemas contemporâneos, com a institucionalidade política republicana
e democrática "embebida" de interesses diversos.
Assim, não deixa de ser
um convite para a reflexão, daqui desta terra, tendo o novo filme como um insight
lobatiano que convoca o Tempo de Nero a partir de uma chave interpretativa mais
próxima d'O Presidente Negro, tornando o herói, apesar de descrito como um
arquiteto vencedor do Nobel de Física, também um historiador que tem diálogo
fértil com o iberismo de um Padre Antônio Vieira e a sua História do Futuro.
Robert Darnton, ao revisitar o século XVIII, reparou que a novidade dos intelectuais deste tempo estava na possibilidade de discutir e impor um programa com maior grau de autonomia, o que diferenciou os philosophers e seu engagement dos intelectuais anteriores, tornando-os um novo tipo social. Com o esvaziamento da educação de parte considerável deste compromisso que é, também, histórico, as gerações estão e seguirão ao relento da incapacidade também de se descolar da realidade material com competência, dando asas à fabulações em detrimento da boa fábula. É marca de boa literatura conter “verdade nas mentiras”, e caminhar por entre as abstrações da imaginação exige orientação professoral, do contrário não há guarda corpo para a proteção ao "limbo" da ignorância que em nada ajuda o debate sobre um futuro mais sustentável sobre a nossa casa comum.
[1] - Doutorando pelo CPDA/UFRRJ.
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