domingo, 28 de abril de 2024

ESPECIAL - REVOLUÇÃO DOS CRAVOS 50 ANOS

 

50 anos de Democracia portuguesa[1]

 

Júlio Lopes[2]

O processo democrático, inaugurado pela Revolução portuguesa de 25 de abril de 1974, propiciou inclusão social – especialmente saúde, educação e feminina – à urbanização de Portugal, então majoritariamente rural. A democracia portuguesa de origem revolucionária, a partir da juventude militar oposta às guerras para manter suas colônias africanas, ocasionou cidadania mais larga que outras democracias missionárias, mas provenientes de ampla transação política (como a atual espanhola e brasileira), não estabeleceram tanto. Basta ver que sua ultradireita emergente, apesar de crescente, ainda não alcançou 20% de votos e já há até autodeterminação legal de gêneros em Portugal.

Outra característica democrática positiva é o consenso republicano em sua classe política, durante o último meio século, no expurgo de agentes públicos (mesmo parlamentares) diante de corrupção exposta. Inclusive do modelo de República social, construído por ambos os principais partidos Socialista e Social-Democrata, que sempre formam a maioria absoluta do eleitorado (média de 67,98% até 2022 e 56% na eleição de março). Gerido pela centro-esquerda (PS em 10 das 17 legislaturas) ou pelo centrista PSD, seu regime parlamentarista funciona pela convergência PS-PSD na maioria parlamentar (mais de 75% anuais) das medidas governamentais, geralmente de apoio direto ao empresariado e aos socialmente vulneráveis.

Ao contrário da polarização PT x PSDB, por décadas na democracia brasileira, a oposição entre os principais partidos portugueses de esquerda e centro jamais foi absoluta. Mas os desafios atuais da integração portuguesa (cuja população minguante implica mais esforços de recomposição migratória) à unidade europeia e às nações lusófonas requerem mais arte política do que mera cortesia parlamentar entre PS e PSD. À medida que seus votos compõem larga maioria portuguesa e suas orientações programáticas são afins à manutenção e aperfeiçoamento da economia social de mercado pautada pela União Europeia, ambos deviam parar de se oporem como se o PS fosse meramente de esquerda e não há décadas uma centro-esquerda, e o PSD fosse uma direita, ao invés de assumir o centrismo político majoritário entre seus membros.

Neste sentido, a democracia portuguesa não extrairá todo o seu potencial democrático, no fortalecimento da economia social de mercado que tem atraído migrantes lusófonos (especialmente africanos e brasileiros) e outros ao País, enquanto seus maiores partidos continuarem polarizando, artificialmente. Os quais podem e, portanto, devem dar o passo seguinte à confluência parlamentar habitual entre ambos (de 2012 a 2023, mesmo as suas minoritárias discrepâncias se dividiram tanto entre abstenções quanto votos contrários recíprocos): montando governos unitários cuja maioria deixe de ser uma divisão nacional ideologicamente precária entre eleitores portugueses.  



[1] O presente artigo foi recebido para publicação em 16 de abril de 2024 antes da manifestação do Presidente da República de Portugal sobre a responsabilidade dessa nação na história da escravidão moderna. (Nota do Editor).

[2] Julio Lopes é luso-brasileiro e Pesquisador da Casa Rui Barbosa.

 


quarta-feira, 10 de abril de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 036 - A LONGA CAMINHADA

Lula e Macron visitam a Ilha do Combú, perto de Belém, no Pará 26/03/2024 REUTERS/Ueslei Marcelino

Uma Democracia de Valor Concreto

 

Em memória de Ziraldo, patrono da UniverCidade

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Um clássico do pensamento político, o francês Alexis de Tocqueville[2], disse há quase três séculos que a democracia se baseava no valor intrínseco das suas ideias, mas também na sua utilidade concreta. Em abstrato, poderíamos iludir-nos de que nenhum sistema político alternativo lhe pode ser preferido, porque racionalmente estaríamos a prestar um mau serviço a nós próprios, enquanto indivíduos e à sociedade como um todo. Não é em vão que a democracia, apesar das suas muitas imperfeições, revelou-se não só idealmente, mas historicamente, o único sistema capaz de proteger elevados níveis de liberdade e níveis crescentes de igualdade, ao mesmo tempo em que permite controlar a arbitrariedade do poder.

Mas isto seria assumir que as opções políticas são formadas apenas através da razão, da reflexividade e do discernimento informado dos cidadãos.  Como bem sabemos, e a nossa história também nos mostra, as opções políticas estão longe de se formar desta forma; cordialidade, empatias e emoções efémeras, ressentimentos e medos, preconceitos, interesses mal compreendidos, impulsos de escasso altruísmo, indiferença pelo bem comum e fanatismo tribal muitas vezes predominam na formação da vontade popular. Bastaria, como exemplo do quanto a desrazão influencia estes processos, analisar, mesmo com espírito benevolente, o elenco de incompetência estelar que atualmente constitui uma maioria significativa das Presidências das Américas.

Se continuarmos a viagem pelo resto do mundo, as coisas não serão muito diferentes. Não à toa o sucesso mútuo que a viagem que o presidente da França, Emmanuel Macron realizou ao Brasil em fins de março. Além disso, na atual atmosfera política global, é muito provável que nas 76 eleições que terão lugar no mundo este ano não haja uma mudança suficientemente significativa num sentido positivo.

Isto explica por que a solidez da democracia, a sua manutenção ao longo do tempo, o seu fortalecimento não é algo que tem a ver apenas com o seu valor tipo ideal, mas também em face a eficácia dos seus resultados, com a percepção que tem os cidadãos de que ela os protege e dentro da qual a prosperidade se espraia para todos e cujos benefícios são palpáveis ​​na vida cotidiana.

Entretanto, se ela é superada pela insegurança e pelas dificuldades, pela estagnação e pela ineficiência, o apreço pelos valores que encarna começa a regredir e aí predomina a preocupação com as condições materiais de existência de cada cidadão. Não é de estranhar, como já acontece em muitas partes do mundo, que comecem a duvidar das instituições democráticas e de sentir a tentação de um regime de força, da figura sem escrúpulos, a tentação da ordem a qualquer custo ou de populismos iliberais. E é isto que impulsiona o surgimento de autoritarismos eletivos que enfraquecem as instituições democráticas e, em nome da segurança e do bem-estar, acabam por transformar os cidadãos no gado humano que pontuou Nestor Duarte em 1936 dispostos a renunciar a serem sujeitos políticos para poder brincar e pastarem em paz. Mesmo que na maioria das vezes acabem sem pão, paz e terra.

Estas figuras supostamente providenciais que oferecem soluções categóricas podem ter uma ideologia das extremidades da geografia política, ligadas pelo que o próprio Tocqueville disse “uma ideia falsa, mas clara e precisa terá sempre maior poder no mundo do que uma ideia verdadeira e complexo."  A ideia do autoritarismo é simples, a ideia de democracia é complexa.

A nossa democracia no Brasil tem dificuldades no seu funcionamento e é assim que a grande maioria das pessoas a percebe. Sem dúvida há boas intenções e esforços daqueles que governam, mas décimos a mais ou décimos a menos, estamos numa paralisia, não há olhar demorado, mas sim confusão, posições contraditórias, brigas e erros tortuosos e ininteligíveis em suas colocações explosivas. Por mais que explicitem, é claro que as almas dos partidos da Frente Democrática não são gémeas, mas a cordialidade da vida brasileira está a torná-los parentes distantes e desconfiados um do outro.

Já a oposição também não incorpora serenidade e moderação. Quem tenta levantar o olhar com o sentido de estadistas são o minimum minimorum, vê-se muito canibalismo andando por aí.

Algo está errado no atual quadro político que não nos ajudam a obter resultados que resolvam os graves problemas abertos de segurança pública e de bom desenvolvimento que fortaleçam a democracia.

Existe um grande vazio político que, se preenchido, poderá nos ajudar a sair do atual bloqueio, embora não a curto prazo, uma vez que os dados estão lançados para o próximo processo eleitoral que temos pela frente em 2024, onde as alianças políticas já acordadas manterão a confusão e bloqueio ao não se trazer à consciência política da sociedade brasileira que ensejou a Frente Democrática formada ao longo da histórica campanha de 2022. Esse vazio é a inexistência dela como um ator reformador atualizado face as tarefas que o Brasil e o planeta necessitam hoje, pois no passado recente este existiu direcionando com sucesso a transição para a democracia no final do século anterior e quando dela nos afastamos em 1989 adentramos numa tragédia.

Portanto, a Frente Democrática como ator político deverá ter uma orientação clara no seu projeto que inclua as raízes sociais liberais e conservadoras democráticas, o cristianismo social católico e evangélico e as sociais-democracias, e considerar retomar nesta época o impulso propulsor ao desenvolvimento sustentável econômico com níveis apreciáveis ​​de igualdade e de acumulação da civilização brasileira. Deverá estar aberto ao diálogo com os setores da centro-direita que abraçaram sem reservas. Deverá ser um pilar de uma dialética construtiva e da criação de acordos que tirem o país da sua letargia de mais de uma década.

O caminho fácil que aí está é juntar-se ao que já existe, mas nessa hipótese um grande setor do país não teria representação e seguirá a votar de forma volátil, surfando para no decrescimento ou crescimento dos extremos que compõem esses setores, para os quais a democracia nada mais é do que uma variável tática com a qual devem conviver até que sejam criadas as condições necessárias que lhes permitam avançar para um futuro que não definem, mas que cheira ao autoritarismo eletivo.

O caminho difícil, cuja chegada a um porto não está de forma alguma garantida, é aquele que procura reconstruir a política da Frente Democrática reformadora, com os olhos postos no futuro, capaz de fortalecer a democracia como um todo. Bem sabemos que é um caminho que carece de glamour, será uma caminhada difícil, mas é a que tem a grandeza da civilização brasileira.

 

9 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Vide https://votopositivo-cg.blogspot.com/2023/08/serie-estudos-lembrancas-sobre.html

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

ATUALIDADE CARIOCA - DISCURSO DE POSSE

 Foto: Helcio Peynado


Discurso de posse na Cadeira 14 do Instituto Campograndense de Cultura de Mila Pimentel de Souza Aranda André no dia 02 de abril de 2024 na Câmara Municipal do Município do Rio de Janeiro

 

Agradeço aos presentes que tanto engrandecem essa noite.

Em 2004 me formo em História na faculdade Moacyr Sreder Bastos.

Vinte anos depois ingresso no Instituto Campograndense de Cultura (ICC).

Como não associar aqui a presença do Professor Moacyr Sreder Bastos, nessas duas instituições de Campo Grande. Sendo a primeira que me fez chegar até aqui e a outra me levará adiante. Sem mais delongas nas palavras, mas ressalto a importância dessa personalidade para o nosso bairro, somando a isso sua contribuição para a cidade do Rio de Janeiro.

Venho aqui enaltecer os fundadores do Instituto Campograndense de Cultura (ICC), naquele Brasil de 1967, que entenderam a importância de um espaço onde vários agentes da sociedade, nas mais diversas áreas, se reuniriam para constituir um lugar e um legado. Naquele subúrbio rural. Hoje naquele bairro populoso do extremo oeste carioca.

Fato isso que 57 anos após, aqui estamos nós, reunidos pelo e em torno do ICC.  

Muito ainda falta na construção, mas a ausência é um fato a cada período histórico, ausências que existiam no ano de 1967, e outras que encontramos nos dias atuais. Mas hoje essa responsabilidade é nossa. O trabalho de deixar um bairro melhor do que recebemos.

Com orgulho ocuparei a cadeira de número 14, que tem seu patrono José Joaquim Seabra, jurista que participou da promulgação de duas primeiras constituições republicanas. Hoje estamos sob a égide da Constituição Cidadã de 1988, aquela que ampliou os direitos essenciais à sociedade.

A baianidade do Patrono da Cadeira, apesar de suas adversidades políticas com Rui Barbosa, não o impediu de zelar pelo campo da Justiça em dias turbulentos do entreguerras (1919 – 1939). J. J. Seabra nos deixou em plena Segunda Guerra Mundial mas podemos dizer que seria um nome na linha de frente do antifascismo. E assim pleiteamos seguir esse legado no mundo da Cultura pois temos um bairro que tem muito a acrescentar na cultura carioca e nacional.

Getulio Vargas afirmou que o Rio de Janeiro era o tambor do Brasil. E podemos dizer que em Campo Grande se enraíza a cultura democrática desse país se soubermos evitar as aventuras de ocasião.


quarta-feira, 3 de abril de 2024

segunda-feira, 1 de abril de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 12


 Da esquerda para a direita, o presidente Goulart e os generais Osvino Ferreira Alves e Amaury Kruel

Sessenta Anos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Passaram 30 anos desde a medonha efeméride do 30º aniversário da tragédia para a nossa democracia que significou o golpe de Estado de 31 de março de 1964.

Coube ao saudoso Luiz Werneck Vianna (1938-2024) dar sentido aquele momento[2]. Apenas 9 anos de governos democráticos se passaram e os efeitos da longa ditadura que os precedeu estavam mais próximos.

Contudo, o tom do seu sentido foi sereno. Eram tempos em que o mundo atravessava momentos mais esperançosos, o processo de globalização ainda estava longe do seu contexto tristonho e um certo clima mais próximo da convivência democrática ainda predominava no continente.

O Brasil estava no final do segundo governo democrático e nascido de um impeachment. Ambos os governos, de Sarney e de Itamar, buscaram o crescimento econômico à procura de uma expansão do bem-estar social, do reforço do funcionamento da democracia, das virtudes republicanas e à expansão das liberdades democráticas e das garantias dos direitos das humanidades conforme programaticamente expressas na nossa jovem Constituição de 1988.

O caminho escolhido pelo governo do impeachment de 1992 demorou até encontrar o avanço gradual com o Plano Real que abriu uma nova esperança.

O sentido ofertado por Luiz Werneck Vianna aquela macabra lembrança teve sobretudo a ver e a destacar que o Brasil sob a democracia mesmo com seus percalços era infinitamente melhor do que o Brasil sob a ditadura e esse foi o profundo significado de recordar aquela tragédia sangrenta com toda a dor que acarretou.

É por isso que era importante combinar elementos muito diversos para fazê-lo. Em primeiro lugar, a preservação da memória, a busca dos desaparecidos como tarefa permanente, a exigência de punição pelos crimes cometidos, a reparação aos torturados e às famílias das vítimas. Ao mesmo tempo, tratava-se de normalizar as relações com as Forças Armadas como instituições permanentes da República, governadas pela obediência ao poder constitucional e civil democraticamente constituído e pelo reconhecimento de responsabilidades partilhadas na criação de uma situação política não mais divisora e polarizada que levou a 1964.

No Golpe de 1964, está contido a sua fundamental inaceitabilidade e junta-se o fato de aqueles que o perpetraram, alegando a defesa de uma democracia supostamente em perigo, terem em poucos dias a certeza de que não havia Forças Armadas nas sombras e controlaram todo o território nacional, mas continuaram aprisionando, assassinando, torturando e desaparecendo com cidadãos.

Por fim, é claro que a intenção dos seus líderes não era “colocar as coisas em ordem”, mas sim mudar a “ordem das coisas”, não precisamente num sentido democrático, mas sim estabelecer uma ditadura que durou mais de 20 anos e que suprimiu todas as liberdades em especial as civis e políticas.

Será então um erro apontar que houve responsabilidades partilhadas no processo de divisão, polarização e crise que precedeu o golpe?

A resposta é negativa. Os principais partidos que compunham o Governo João Goulart, para além das suas aspirações de justiça social, não tinha uma ideologia comunista tampouco marxista-leninista.

Agiu absorto aos anos da Guerra Fria, sem considerar a posição que os EUA adotariam, junto com a extrema direita, antes mesmo do governo começar.

Aos olhos de hoje, do ponto de vista teórico e histórico, não havia nenhum programa e seguiu a triste sina da nossa “proverbial inorganicidade”. Nenhuma democracia é capaz de navegar sem balizas minimamente definidas e claras.

Isto contribuiu para a impossibilidade de um acordo de governabilidade à época com as forças políticas, desde o início do governo em 1961 como antes do fim abrupto de 1964. Dentro do próprio governo João Goulart havia divergências profundas sobre como sair da crise e evitar um mal maior como o que nos abateu. No final foi a tragédia. Sem democracia, terminamos quase sem democratas.

Este ano, quando recordamos os 60 anos da tragédia, vivemos tempos muito mais tumultuados no mundo, o impulso propulsor no Brasil foi perdido em 2018, e recuperá-lo será complexo e levará tempo.

Temos um governo que nesta quadra histórica tem apoios restritos e que comete erros com demasiada frequência e uma oposição que tende a endurecer o seu papel à medida que se sente reforçada. O tom da política fica cada vez mais enrijecido e isso bloqueia acordos para o avanço do país.

Mais do que nunca, é necessário afirmar a convivência republicana de sua Frente Democrática vitoriosa em 2022, dialogando com os adversários para que não se elimine os acordos necessários para avançar e fazer dos sofrimentos da memória da “hecatombe” uma base sólida para não repetir os erros do passado. Esse deve ser o significado desses 60 anos.

22 de março de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Luiz Werneck Vianna. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 2, n. 1, 30 de junho de 1994: 7-10. Publicado em https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/20/22

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 11

 Leitura do texto do espetáculo “Auto dos 99%”, no Teatro Guaíra Curitiba — PR

1964 e a efervescência cultural

Alessandra Loyola


     60 anos atrás o país vivenciava um marco em sua história, um marco na cultura. Com isso, penso sobre a importância de refletir em alguma medida sobre como a cultura se configurava antes e como se dá hoje, tomando como referência algumas obras.

    É interessante saber que autores já pensaram em como definir ou articular a ideia de cultura popular, a exemplo de Alfredo Bosi que irá dizer que a cultura é heterogênea, diversa e aquilo dito como cultura das classes populares pode ser encontrado em diversas situações. Nessa perspectiva, ao olharmos para alguns anos atrás e observarmos a efervescência cultural pré e durante ditadura militar é possível perceber a música, o cinema e a literatura como fontes de construção da cultura popular. No entanto, todas se veem diante de algo quase como contracultura quando os militares tomam o poder do Brasil em abril de 1964.

   Diante disso, ao assistir um filme do Cinema Novo - movimento que surge um pouco antes de 64, mas perdura nesse período - como, por exemplo, Deus e o diabo na terra do Sol (Glauber Rocha) fica evidente o papel da cultura: expor um problema. É possível encontrar na obra de Rocha alegorias didáticas, construções que contam com a filmagem feitas com a câmera na mão e edições com poucas transições, além da marca da literatura de cordel, criando, assim, imagens para falar sobre o que acontecia com o povo nesse período.

   Exemplos como o longa metragem nos mostram como a cultura popular foi importante para o período da ditadura no Brasil, dando voz de alguma maneira, à população e construindo um mosaico artístico sobre a necessidade de direitos que foram sendo usurpados, dentre outras questões. 

   Hoje em dia 40 anos depois do grito das “Diretas Já”, após tristes tentativas de determinados grupos de reatar laços com ideologias do regime, vemos ainda criações culturais que se mantêm firmes em suas posições de buscar a liberdade e direitos, a exemplo de manifestações culturais como as rodas de Slam - que concedem voz aos que por vezes são silenciados. Manifestações contemporâneas - como rodas de Slam -apresentam novas maneiras culturais, que são frutos de uma influência estrangeira, porém que tomam corpo com as marcas culturais brasileiras, dando visibilidade a questões populares.

    Olhar para efervescências culturais como as citadas nos leva outra vez para Bosi, que discorre sobre a cultura ser fruto de um cultivo através do tempo de cada sociedade, então, se hoje há o resgate da cultura um dia apagada junto a uma articulação contemporânea perpassada por tantos acontecimentos - eleições, pandemia, polarização- é devido a um longo cultivo feito pelas próprias classes populares. E são esses os grupos que sentem na pele, no prato, no bolso…enfim, que sentem em sua realidade o que os grandes governos decidem entre si.

    O olhar para obras produzidas por nomes como Glauber Rocha é perceber até hoje como a cultura é atemporal e fala através do tempo, utilizando a estética, os temas e as ferramentas de sua época. Isto também nos permite ver outras maneiras culturais como poesia cantada que, de maneira análoga, se utiliza o que há disponível em sua realidade para, como já dito, se posicionar em tempos difíceis.

    Seja olhando para o cinema novo brasileiro sejam olhando para as rodas de Slam, o entendimento que fica é a importância das vozes que existem e de que maneira essas vozes populares são colocadas à vista. Há esperança ao olhar para produção cultural popular brasileira.

    Por fim, ainda que existam questões a serem pensadas sobre as obras e os movimentos citados, em cada um deles é possível encontrar as vozes e os ecos que duros regimes com suas armas, censuras e discursos de ódios não o são capazes de sufocar, pois todas são como uma bela rosa que brota do quente e sufocante asfalto.