Em memória de Ziraldo,
patrono da UniverCidade
Ricardo José de Azevedo Marinho
Um clássico do pensamento
político, o francês Alexis de Tocqueville,
disse há quase três séculos que a democracia se baseava no valor intrínseco das
suas ideias, mas também na sua utilidade concreta. Em abstrato, poderíamos
iludir-nos de que nenhum sistema político alternativo lhe pode ser preferido,
porque racionalmente estaríamos a prestar um mau serviço a nós próprios,
enquanto indivíduos e à sociedade como um todo. Não é em vão que a democracia,
apesar das suas muitas imperfeições, revelou-se não só idealmente, mas
historicamente, o único sistema capaz de proteger elevados níveis de liberdade
e níveis crescentes de igualdade, ao mesmo tempo em que permite controlar a
arbitrariedade do poder.
Mas isto seria assumir que
as opções políticas são formadas apenas através da razão, da reflexividade e do
discernimento informado dos cidadãos.
Como bem sabemos, e a nossa história também nos mostra, as opções
políticas estão longe de se formar desta forma; cordialidade, empatias e
emoções efémeras, ressentimentos e medos, preconceitos, interesses mal
compreendidos, impulsos de escasso altruísmo, indiferença pelo bem comum e
fanatismo tribal muitas vezes predominam na formação da vontade popular.
Bastaria, como exemplo do quanto a desrazão influencia estes processos,
analisar, mesmo com espírito benevolente, o elenco de incompetência estelar que
atualmente constitui uma maioria significativa das Presidências das Américas.
Se continuarmos a viagem pelo
resto do mundo, as coisas não serão muito diferentes. Não à toa o sucesso mútuo
que a viagem que o presidente da França, Emmanuel Macron realizou ao Brasil em fins
de março. Além disso, na atual atmosfera política global, é muito provável que
nas 76 eleições que terão lugar no mundo este ano não haja uma mudança
suficientemente significativa num sentido positivo.
Isto explica por que a
solidez da democracia, a sua manutenção ao longo do tempo, o seu fortalecimento
não é algo que tem a ver apenas com o seu valor tipo ideal, mas também em face a
eficácia dos seus resultados, com a percepção que tem os cidadãos de que ela os
protege e dentro da qual a prosperidade se espraia para todos e cujos
benefícios são palpáveis na vida cotidiana.
Entretanto, se ela é superada
pela insegurança e pelas dificuldades, pela estagnação e pela ineficiência, o
apreço pelos valores que encarna começa a regredir e aí predomina a preocupação
com as condições materiais de existência de cada cidadão. Não é de estranhar,
como já acontece em muitas partes do mundo, que comecem a duvidar das
instituições democráticas e de sentir a tentação de um regime de força, da
figura sem escrúpulos, a tentação da ordem a qualquer custo ou de populismos
iliberais. E é isto que impulsiona o surgimento de autoritarismos eletivos que enfraquecem
as instituições democráticas e, em nome da segurança e do bem-estar, acabam por
transformar os cidadãos no gado humano que pontuou Nestor Duarte em 1936 dispostos
a renunciar a serem sujeitos políticos para poder brincar e pastarem em paz.
Mesmo que na maioria das vezes acabem sem pão, paz e terra.
Estas figuras supostamente
providenciais que oferecem soluções categóricas podem ter uma ideologia das
extremidades da geografia política, ligadas pelo que o próprio Tocqueville
disse “uma ideia falsa, mas clara e precisa terá sempre maior poder no mundo
do que uma ideia verdadeira e complexo." A ideia do autoritarismo é simples, a ideia
de democracia é complexa.
A nossa democracia no Brasil
tem dificuldades no seu funcionamento e é assim que a grande maioria das
pessoas a percebe. Sem dúvida há boas intenções e esforços daqueles que
governam, mas décimos a mais ou décimos a menos, estamos numa paralisia, não há
olhar demorado, mas sim confusão, posições contraditórias, brigas e erros
tortuosos e ininteligíveis em suas colocações explosivas. Por mais que explicitem,
é claro que as almas dos partidos da Frente Democrática não são gémeas, mas a
cordialidade da vida brasileira está a torná-los parentes distantes e
desconfiados um do outro.
Já a oposição também não
incorpora serenidade e moderação. Quem tenta levantar o olhar com o sentido de estadistas
são o minimum minimorum, vê-se muito canibalismo andando por aí.
Algo está errado no atual
quadro político que não nos ajudam a obter resultados que resolvam os graves
problemas abertos de segurança pública e de bom desenvolvimento que fortaleçam
a democracia.
Existe um grande vazio
político que, se preenchido, poderá nos ajudar a sair do atual bloqueio, embora
não a curto prazo, uma vez que os dados estão lançados para o próximo processo
eleitoral que temos pela frente em 2024, onde as alianças políticas já
acordadas manterão a confusão e bloqueio ao não se trazer à consciência
política da sociedade brasileira que ensejou a Frente Democrática formada ao
longo da histórica campanha de 2022. Esse vazio é a inexistência dela como um ator
reformador atualizado face as tarefas que o Brasil e o planeta necessitam hoje,
pois no passado recente este existiu direcionando com sucesso a transição para
a democracia no final do século anterior e quando dela nos afastamos em 1989
adentramos numa tragédia.
Portanto, a Frente
Democrática como ator político deverá ter uma orientação clara no seu projeto
que inclua as raízes sociais liberais e conservadoras democráticas, o
cristianismo social católico e evangélico e as sociais-democracias, e
considerar retomar nesta época o impulso propulsor ao desenvolvimento sustentável
econômico com níveis apreciáveis de igualdade e de acumulação da civilização
brasileira. Deverá estar aberto ao diálogo com os setores da centro-direita que
abraçaram sem reservas. Deverá ser um pilar de uma dialética construtiva e da
criação de acordos que tirem o país da sua letargia de mais de uma década.
O caminho fácil que aí está é
juntar-se ao que já existe, mas nessa hipótese um grande setor do país não
teria representação e seguirá a votar de forma volátil, surfando para no decrescimento
ou crescimento dos extremos que compõem esses setores, para os quais a
democracia nada mais é do que uma variável tática com a qual devem conviver até
que sejam criadas as condições necessárias que lhes permitam avançar para um
futuro que não definem, mas que cheira ao autoritarismo eletivo.
O caminho difícil, cuja
chegada a um porto não está de forma alguma garantida, é aquele que procura
reconstruir a política da Frente Democrática reformadora, com os olhos postos
no futuro, capaz de fortalecer a democracia como um todo. Bem sabemos que é um
caminho que carece de glamour, será uma caminhada difícil, mas é a que
tem a grandeza da civilização brasileira.
9 de abril de 2024