A
Utopia de Guerra
Vagner Gomes de
Souza
Ruy Guerra poderia ser
reconhecido como um exemplo de um intelectual marcadamente formado pelo lusotropicalismo
(se Gilberto Freyre me permitisse a ousadia). Nascido em Lourenço Marques – que
os “decolonias” localizem a cidade nos dias atuais – em 22 de agosto de 1931
foi estudar cinema em Paris em 1952 e se radicou no Brasil no simbólico ano de
1958 em plena época do ápice do nacional desenvolvimentismo sob a condução da
moderação mineira de Juscelino Kubitschek. Em nosso país, estreou no cinema em
1962 com Os Cafajestes – primeiro filme de nu frontal do cinema nacional – e se
uniu ao movimento do cinema novo com Os Fuzis (1964). Sua identificação com os
temas políticos sociais urbanos se faz presente no filme A Queda (1978) em que
o tema da segurança do trabalho numa obra do metrô do Rio de Janeiro é abordado
no ano das greves do ABC. Sem falar na sua vida social que mereceria um
belíssimo documentário sobre as fases do feminismo brasileiro se assim houvesse
uma diretora disposta a estender esse lugar de fala para tal desafio.
Lamentavelmente seu xará Rui Castro ainda não lhe dedicou uma merecida biografia.
Todavia, deixamos a
presença de Guerra no contexto do Teatro Brasileiro para merecido destaque,
pois sua peça “Dom Quixote de Lugar Nenhum” está em cartaz no Teatro Oi
Casagrande (Rio de Janeiro)[1]
com preços populares. A peça é um musical (lembrai-vos de Chico Buarque e Ruy
Guerra em “Calabar” nos idos de 1973 a enfrentar a censura da Ditadura Militar
de onde emergiu a belíssima “Tatuagem”) que é um gênero que o fez dirigir a
primeira encenação de “Ópera do Malandro”. Estrelada por Lucas Leto (um Quixote
nordestino que foi batizado como Queixada) e Claudia Ohana (atuando como uma
satânica anti-heroína) – curiosamente sem trabalhar com o diretor desde o
marcante ano de 1989. O musical tem as músicas de Zeca Baleiro numa parceria
que mereceria um melhor destaque para os críticos musicais – rarefeitos nos
dias da Inteligência Artificial cantada numa publicidade. A história do
aragonês Cervantes é inserida no contexto do Nordeste brasileiro para lembrar
que ainda temos esse peso demográfico em nossa formação cultural.
Sob cuidadosa Direção de Jorge Fajalla (premiado por "Senhora dos Afogados"), observamos as cores da
iluminação em palco que impactam a visualização do espectador como se fossem as
cores de um Almodóvar brasileiro ou de uma Frida Kahlo sem dar seus cochilos. A
escolha do musical em forma de cordel foi muito acertada diante de uma
apresentação do Coral como se fosse uma “geringonça cultural”. Cego seria quem
não quer estar a ver que deixar a escolha da narrativa feita por um personagem
com baixa acuidade visual para lembrarmos que os desafios que estão por vir são
tamanhas aventuras.
O mesmo não poderá afirmar Ruy Guerra, que em sua eterna busca movida pela utopia de dias melhores pode até reconhecer ter chegado a Lugar Nenhum. |Entretanto, está disposto a continuar na trilha das aventuras com as vitórias adiadas e, quiça, sua aposentadoria. Portanto, Queixada é o nosso Guerra que ao longo de sua vida intelectual foi transitando da “Guerra de Movimento” para a “Guerra de Posição”. Uma peça em dois atos, mesmo que não se anuncie isso em lugar nenhum, podemos assimilar que a personagem Sancho Pança (interpretado por Danilo Moura) ganha outro tom com sua alma atraída pelo Diabo na Terra do Sol. Digamos que é uma forma suave de provocação ao público que se ausenta de continuar acreditando em fazer as aventuras pelo simples individualismo ou pragmatismo. A dialética sem síntese entre Queixada e Sancho é um alerta para que as novas gerações se dirijam ao Teatro para entender que a esperança se faz com ações não somente digitais. Essa é a utopia de Guerra, ou seja, que os mais novos venham a ocupar os assentos das plateias seja no cinema e nos teatros para viver as aventuras das lágrimas e dos risos como ato de resistência.
[1] Até
23/07/2023 Local: Teatro Casa Grande - Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon
Horário: Quinta a Sábado às 20h | Domingo às 18h
3 comentários:
Sempre um ótimo texto. Compartilhando!
Excelente texto!
Quanta informação em um texto tão pequeno. Vagner sempre colocando nossas cabeças para trabalhar bastante! --- Fui aluno de Ruy Guerra na faculdade de cinema - e o cara é incrivel. Suas aulas eram maravilhosas e humanas. Vou ver a peça essa semana. Grande Abraço!
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