Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Que as democracias na América vinham sendo
emperradas podia parecer ser uma lenda a poucos anos atrás. Nos últimos tempos
não mais. Os motivos desse estado de coisas são bem conhecidos e os eventos
também. Mas é conveniente revisar rapidamente três histórias e suas raízes.
Brasil, Peru e El Salvador são as
experiências icônicas da conjuntura. Em 8 de janeiro próximo, uma multidão
invadiu o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palacio do
Planalto da Presidência em Brasília, protestando contra uma fake news de
fraude eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem a menor evidência
correspondente. Eles causaram estragos, fizeram com que imagens vergonhosas - análogas
a do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021
- fossem transmitidas em todo o mundo e fizeram com que o novo governo recorresse
as prisões, investigações e atos simbólicos em defesa da democracia, mostrando
sua robustez. Não tanto pelos manifestantes, mas pelo grande número de
brasileiros que, de fato, acreditam nessas teorias da conspiração sobre o
resultado das eleições. O evento vai além da ideia dominante de polarização,
que pode até existir em outros países ou mesmo no Brasil em outros momentos.
O exemplo do Peru é diferente. A disputa
lá não foi sobre os resultados eleitorais, mas em relação ao conjunto de
instituições existentes no país. Certamente, as eleições de 2021, onde Pedro
Castillo foi eleito no segundo turno por pequena diferença, foram questionadas
por seus adversários. E o Congresso peruano, poderoso devido ao sistema híbrido
que existe no país, passou um ano e meio dificultando a vida de Castillo,
tentando destituí-lo em diversas ocasiões, acusando-o de corrupção e
incompetência.
O
país de Mariátegui não enfrentava um simples conflito de poderes. Por trás do
confronto havia - e hoje mais do que nunca - divisões de classes, regionais e
étnicas. Apesar do bom desempenho econômico insustentável deles no conjunto da América
desde o ano 2000, subsiste uma reivindicação ancestral da maioria das peruanas
e peruanos contra exclusões multifacetadas. Os protestos que começaram no sul
do país após a destituição de Castillo e se estenderam até Lima foram violentamente
reprimidos - com mais de 50 mortos - e às vezes parecem assumir um caráter
quase insurrecional. Os manifestantes exigem a renúncia da Presidente, que
substituiu Castillo, eleições imediatas em vez de 2026 - como anunciou Boluarte
- e uma Assembleia Constituinte.
Ao contrário do Brasil, onde o andamento
econômico tem sido mais difícil, e sem que se culpe a democracia representativa
pelos graves atrasos sociais, no Peru esperava-se uma prosperidade graças à
democracia, ou pelo menos uma profunda redistribuição. O sentimento também
surgiu em outros países: dezenas de milhões de Americanos pedem à sua
democracia - nova ou antiga - bem-estar, saúde, educação, moradia, preços justos
e melhores empregos. A rigor, a democracia serve para retirar legalmente os
governos que não entregam bons resultados e, quando possível, para distribuir
de forma mais justa e sustentáveis o crescimento econômico, quando ele existir.
Mas isso aconteceu nas velhas democracias após intermináveis lutas, reformas,
guerras, eleições e crises: não foi feito de um dia para o outro. As peruanas e
peruanos sentem a necessidade premente em exigir mais de sua democracia e isso
é bom quando conduzido democraticamente, mas sempre tendo a clareza de que por
ela esse intento levará tempo.
Em El Salvador, a democracia deve muito
aos seus cidadãos. Ao final de décadas de autoritarismos, violências, pobreza e
exílio entre outras intempéries, os acordos de paz de 1992 abriram caminho para
um sistema bipartidário de democracia representativa que poderia ter mudado as
entranhas do país. As partes em guerra – a Frente Farabundo Martí de Libertação
Nacional e as elites salvadorenhas, com o Exército, empresários e partidos
políticos - deram uma grande lição de sabedoria e habilidade. Mas tudo o que se
seguiu foi para minar essas conquistas. Os quase 30 anos seguintes foram de
destruição. A corrupção atingiu extremos e as violências das gangues fez o reembarque
no caminho autoritário supostamente apagado.
Nayib Bukele, após eleito em 2019, instalou
outra vez a mão autoritária no país. Ao obter resultados contra a violência, o
povo o aplaude de acordo com as pesquisas de popularidade, e quase ninguém
defende os acordos de paz de Chapultepec e/ou a democracia hoje precária que
eles deram origem em outrora. Ele é o ditador mais legal do mundo, um dos
líderes mais populares do mundo, e está prestes a ser reeleito - até agora
ilegalmente - por ampla margem. Quase toda a sociedade parece aprovar a
regressão autoritária, acreditando que isso resolverá seus problemas.
Por enquanto, os partidos, movimentos e
lideranças que contribuíram para a instalação de regimes democráticos na
América - exceto as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela - tem mantido o
ideal democrático vivo, apesar de todas as suas deficiências como ficou claro no
encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, as
instituições construídas ao longo de várias décadas são preferíveis a qualquer ditadura,
mesmo que ainda não proporcionem o tão desejado e digno bem-estar. Novos eventos
surgem na Argentina - pelo crescente conflito entre Executivo e Judiciário - e
no México, ante a investida do Executivo contra a autoridade eleitoral. A
América não é a Europa, onde há tentações autoritárias em vários países - e em
alguns governos, como o da Hungria - tem sido rejeitado, até agora, pelos
eleitorados sensatos. Mas desemperrar as democracias é o caminho a ser seguido
planetariamente.
26
de janeiro de 2023
[1] Presidente da
CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.