Você conhece o Partido Brasileiro?
Em memória de Ana Carla Magni (1972-2021)
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Sobre as efemérides de 2022 dedicadas
ao nascimento do Brasil devesse acrescentar a perseverança e a resistência do
Partido Brasileiro (que contou, entre outros, com Cipriano Barata [1762-1838], Muniz
Tavares [1793-1876], que haviam participado da Revolução Pernambucana de 1817 e
do Padre Diogo Antônio Feijó [1784-1843]) frente à proposta da recolonização do
Brasil apresentada nas sessões das Cortes de Lisboa em 1821, pois foi ali que os
nativos revolucionários desenvolveram uma das nossas virtudes ao dotar o
sentimento da nacionalidade brasileira de uma pluralidade e nunca ter concedido,
e não podia realmente conceder, uma unívoca definição de gênero, étnica ou de
raça. O que mais se aproximava de sua natureza era o entusiasmo pelo junto e
misturado das múltiplas identidades amalgamadas ou não na miscigenação e noutras
modalidades de mestiçagens, mas que no final eram as brasileiras e brasileiros que
estavam lá e aqui e ponto.
Em parte pelo mito - antigo - e pela
realidade - bem mais recente - da miscigenação e mestiçagens no Brasil (de
Gilberto Freyre [1900-1987]) e em alguns outros países ibero-americanos,
especialmente no Mexico (de José Vasconcelos Calderón [1882-1959]), no Peru (de
José Carlos Mariátegui [1894-1930]) e no Equador (de Alfredo Pareja
Díez-Canseco [1908-1993], a nacionalidade brasileira e de outras nações da
região nunca tiveram uma conotação única de gênero, etnia ou raça que outras
sociedades reivindicam, seja desde sua origem ou adquirindo ao longo do tempo.
Isso está começando a sofrer ataques no
México, Peru, Equador e Brasil. No Brasil, não tanto pela quantidade de
disparates que temos vivido por conta do identitarismo de um lado e pelo resultado
eleitoral de 2018 com Bolsonaro de outro, onde ambas as manifestações desejam
ver pelas costas o bicentenário do Partido Brasileiro nesse segundo ano
pandêmico de 2021 e pela sua ausência de comemorações agora e de sua projeção
para 2022, que acabam por anunciar em essência de que nada há a comemorar e os
subtextos esdrúxulos que acompanharão essas posturas. Por enquanto, essas
manifestações são algo marginal e provavelmente também o serão de curta
duração. Se Bolsonaro e os candidatos do identitarismo forem derrotados em 2022,
isso não será mais do que um fenômeno passageiro ou um breve pesadelo que
felizmente terminará quando todos nós acordarmos.
Mas não vamos nos enganar. Algo de
conotação étnica e ou racial na nacionalidade brasileira começa a emergir, como
em outros países ibero-americanos, com governantes semelhantes. Não deve ser
silenciado ou escondido. O fenômeno não é muito diferente do que aconteceu, por
exemplo, na França nos últimos tempos. Muitos intelectuais e políticos
franceses ficaram alarmados, ou mesmo angustiados, com a chegada ao país do
Iluminismo de estranhas importações da academia norte-americana. Não é tanto
sobre o Me Too, que é tão válido e atual na França quanto nos Estados
Unidos da América, ou qualquer outro país. Referimo-nos antes aos cultos dos identitarismos,
às tentativas de mudar o texto e a gramática francesas para acomodar etnias,
raças, gêneros ou outras aspirações ou demandas e, acima de tudo, às diferentes
formas de reagir a certas presenças do Islã, por um lado, inegáveis na França,
e ao islamismo radical, tão existente e alarmante por outro.
Houve um tempo em que era a academia norte-americana
que importava conceitos e teorias de Paris. Talvez primeiro Althusser e Lacan,
depois Foucault e Derrida, fizeram fortuna nas grandes universidades dos
Estados Unidos da América (e não só por lá), contribuindo em muitas abordagens com
construção de conhecimentos extraordinários - ver os pontos de Foucault sobre a
prisão, a clínica, a medicina, a sexualidade, entre outras dimensões. Agora é o
contrário, mas a qualidade do fluxo reverso não é necessariamente a mesma.
Começa a surgir no Brasil um
sentimento que deve preocupar a todos nós. Alguns brasileiros e brasileiras seriam
menos brasileiras e brasileiros do que outros, e não porque sejam do Norte ou
do Sul do país, porque são ricos ou pobres, porque são migrantes ou de comunidades
dos povos isolados como bem pontuou Sebastiao Salgado, mas porque são pardos,
mestiços, miscigenados e não identitários, numa palavra, brasileiras e
brasileiros. Haveria pelo menos dois tipos de brasileiros e brasileiras: os
verdadeiros e verdadeiras e os demais. Isso, além de terrivelmente perigoso,
põe em causa um suposto fundamentalismo de identitarísmos à nacionalidade
brasileira, com toda a mitologia que se deseja, banindo ad absurdum a
miscigenação e a mestiçagens. Sabemos que, essa realidade, pode ter tido um uso
político com um que de falso e, talvez, até mesmo tardiamente. Também sabemos
que, como uso mítico, tem sido extraordinariamente útil, certamente, para tentar
exercer uma forma de dominação doce e poder açucarado, uns dos outros. Mas foi
isso que nos permitiu coexistir no que começou a se delinear como nação no
final do século XIX ou no início do século XX, em um país que tinha Estado, mas
não tinha absolutamente nada como uma Nação. Como diz lucidamente Antonio
Risério, é preciso ter cuidado com isso, porque, por mais complexa que tenham
sido a miscigenação e a mestiçagem (e o foram como sabemos), é a principal história
inclusiva que existe entre nós desde quando nascemos e passamos a existir.
1 de setembro de 2021
2 comentários:
Maravilhoso seu texto, como sempre.
E sim, assunto deveras importante.
Somos brasileiros e ponto, qualquer coisa fora disso é loucura, gancho para mais uma crise desnecessária.
Estou de acordo com tudo que você escreveu. Muito pertinente nesse momento.
Neste momento "turbulento" no Brasil, é muito relevante e importante estarmos atentos ao seu texto. A miscigenação e a mestiçagem é forte em nosso país, porém pouco debatido, mas muito existente : o preconceito. Compartilho carismáticamente com seu texto e forma pedagógica aplicada.
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