Batalhas da Educação e os números do Censo de 2022
“(...)“as
identidades são benções ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há
como dizer quando um se transforma no outro.”
Zygmunty Bauman,
2005
Vagner Gomes de
Souza
O censo demográfico
brasileiro, pelas circunstâncias do acaso, se fez no bicentenário da
independência do Brasil. Foi também o centenário de Darcy Ribeiro que nos
brindou com O Povo Brasileiro: A Formação
e o Sentido do Brasil (1995) – um livro que está merecendo ser lido pelos
gestores do Ministério da Igualdade Racial na perspectiva de destravar a
política de Frente Democrática nesse segmento.
Os números que agora
vem a público informa que a sociedade brasileira se reconhece “parda” na
classificação por cor ou raça. Pela primeira vez na história, o número de
pardos supera aqueles que se declaram brancos naquilo que um autor polêmico,
Antonio Risério (que é do estado da federação que mais se declarou de cor
preta) poderia classificar como a vitória de uma mestiçagem.
Todavia, os números
surgem numa época de polarizações nas redes sociais. Muitos desavisados da “revolução passiva”
sempre constante na sociedade brasileira correm para somar pardos e pretos numa
ansiedade pelo reconhecimento da identidade afro-brasileira acima da
pluralidade de cores de nosso país. Esse atalho pela via das narrativas faz
emergir leituras mais próximas da modelagem da identidade num mosaico de grupos
fragmentados. A liberdade avança sem que se reconheça uma história de políticas
públicas com suas bases na educação.
Voltemos ao mesmo Darcy
Ribeiro que foi senador (1 de fevereiro de 1991 a 17 de fevereiro de 1997) com
suplência de Addias Nascimento. Darcy tinha uma preocupação com a formação
política de seu Gabinete através da revista “Carta” que ainda mereceria estudos
no mundo acadêmico. Na segunda metade de seu mandato, o intelectual-provocador
de debates cede espaço para um articulador político. Assim, em 1995 assumiu a
relatoria da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Era uma oportunidade de
levar seus estudos para o mundo real. O
Brasil ainda engatinhava em uma nova ordem constitucional na Carta de 1988 –
que merece ter uma Semana de Celebração nas Escolas Brasileira. A LDB seria o
alicerce para a alfabetização, o cultivo dos jovens, a qualificação
profissional, a formação superior. A assumir a relatoria do projeto de LDB, ele
surpreendeu a todos com um substitutivo que praticamente reiniciava todo o
debate consolidado em sete anos e foi muito criticado por segmentos de uma
esquerda refém do corporativismo na educação. A LDB seria o alicerce para a
alfabetização, o cultivo dos jovens, a qualificação profissional, a formação
superior[1].
A educação brasileira
ganhou então um pouco do perfil do pensamento social exposto no livro de Darcy
Ribeiro de 1995. Está seria nossa primeira hipótese para vislumbrar que os
avanços nos índices educacionais em quase três décadas da LDB nos permitiu a
ascensão dos pardos nos números do IBGE uma vez que a legislação permitiu uma
diversidade ao ensino brasileiro incluindo e destacando em seu primeiro artigo:
“A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida
familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais.”
Na sequência, o sociólogo
Florestan Fernandes, então Deputado Federal, batalhou pela mudança na LDB que
fez surgir a Lei 10.639/2003 que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. A lei foi promulgada em 9 de janeiro de 2003, como se fosse um
presente da transição de governo do também sociólogo Fernando Henrique Cardoso
(autor de Capitalismo e escravidão no
Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata no Rio Grande do Sul em
1962, um instigante livro para ser lido em comparação com os números
atualizados do Censo referentes aos gaúchos de onde surgiu Vargas) para o primeiro mandato de Lula uma
vez que todo debate legislativo ocorreu anteriormente.
Em mais de 20 anos
dessa lei, que foi modificada pela Lei 11645/2008 em atendimento ao
reconhecimento dos povos originários, não se fala mais no acerto do executivo
em seu veto ao parágrafo terceiro que defendia uma “cota curricular” na
disciplinas de História e Educação Artística como se lê:
Ҥ 3o As disciplinas
História do Brasil e Educação Artística, no ensino médio, deverão dedicar, pelo
menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática
referida nesta Lei."
A mensagem de veto é
uma aula de gestão pública nos princípios republicanos e democráticos ao se
referir num base nacional curricular “o referido parágrafo não atende ao interesse
público consubstanciado na exigência de se observar, na fixação dos currículos
mínimos de base nacional, os valores sociais e culturais das diversas regiões e
localidades de nosso país” (extraído da mensagem de veto).
Portanto, em dois
momentos de mudanças na educação brasileira, em que temos a presença de
intelectuais com contribuição ao pensamento social brasileiro, podemos perceber
avanços nesse território que permitiu o reconhecimento da ascensão dos
mencionados pardos. Não foram as mudanças gramaticais e muito menos as polêmicas
em torno de temas linguísticos que teriam moldado esse ponto de inflexão no
censo demográfico de 2022. Nesse momento, temos que seguir atentos para o
resgate da educação depois de anos deixada alheia de um debate que se faça
ouvir aquilo que ainda restou de intelectualidade na vida pública. Pois, as
leituras hipermodernas poderão ser usadas contra nossa democracia.
[1]
Fonte: Agência do Senado https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/09/darcy-ribeiro-o-legislador
Consultado em 26 de dezembro de 2023. Reportagem: Guilherme Oliveira