segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - QUESTÃO MERIDIONAL CARIOCA


Era uma vez o Jogo do Bicho 

Pablo Spinelli 


Há um raro e incomum interesse por parte de um setor da classe média carioca acerca de um tema que tem um corte transversal na política, na economia, na cultura e nas agruras do Rio de Janeiro, seja a cidade ou o Grande Rio. É a série documental lançada em novembro pelo streaming Globoplay: 'Vale O Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho”, a respeito de personagens do mundo da contravenção e outras coisinhas mais. O mesmo streaming lançara em 2021 com muito sucesso o documentário “Doutor Castor”, acerca de Castor de Andrade, aquele que seria considerado o Capo di tutti capi (chefe dos chefes) termo contrabandeado da organização siciliana “Cosa Nostra”, vulgarmente chamada de máfia nos EUA e aqui - que não é exclusiva dos italianos, pois há a irlandesa e a judaica, representadas pelos filmes Os Infiltrados (2006) e Era Uma Vez na América  (1984) - fora as mais diversas espalhadas por todos os continentes.  

Nessa toada, Vale o Escrito pode ser visto como o desdobramento de “Doutor Castor” (ver antes essa série e ler o livro Os porões da contravenção: Jogo do bicho e Ditadura Militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado) por onde somos guiados por viva voz pelos sobreviventes da Velha Guarda – o ex-capitão do exército Aílton Guimarães e o José Scaffura, o Piruinha e adentramos no universo da nova geração, com foco no que restou da Família Andrade – especialmente o sobrinho, Rogério e da Família Garcia, as netas gêmeas de Miro Garcia, filha do intempestivo “Maninho”. Ao longo de sete episódios temos um flerte com a história recente do país e com a sociologia e antropologia urbanas. Percebe-se que a presença do ex-capitão do Exército foi fundamental para dividir a cidade do Rio de Janeiro em áreas de influência como a Partilha Afro-asiática do Imperialismo. Antes que detratores da formação do país associem com as Capitanias Hereditárias vemos na série que a hereditariedade não é posta como algo de consenso sem coerção.  


Nas palavras do criador da série, Fellipe Awi , o interesse foi despertado a ele porque "Sempre me impressionou que, em pleno século XXI, uma atividade ilegal funcionasse ainda à luz do dia em qualquer esquina da cidade e, principalmente, mantivesse uma estrutura típica de máfia. Além da divisão de territórios, existe essa tradição quase monárquica da liderança dos negócios passada de pai para o filho mais velho"i. A despeito dos fatos narrados na série contradizerem a “nostalgia imperial” do criador pois, nem sempre rei morto será príncipe posto, cumpre destacar que a hereditariedade é marca das mais diversas esferas de ação, seja à margem da lei, como patronos da cultura carioca que permitiu com o mecenato do poder paralelo aquilo que já foi subvencionado pelo Estado Varguista – ou seja, a margem da lei não é tão diversa da cultura política do Estado – seja também em áreas como música, futebol, política, teatro, igrejas,  universidades e, claro, jornalismo. Antes que um universitário cheio de USP no sangue diga que isso é do “homem cordial” como a sarcástica narração de Pedro Bial faz supor na série, lembremos dos Kennedy (EUA), Fujimori (Peru), os Mendes Godinho (Portugal), Luksic (Chile), Grosvenor (Inglaterra). A tradição vem das monarquias e entrou no mundo empresarial, portanto, aquilo que é visto como mafioso na esquina da cidade é uma ponta do espírito empreendedor e do self-made man por aqui. O que seria somente nossas raízes ibéricas tem muito de americanismo, basta ver que a grande referência valorativa para um representante da nova guarda é um filme americano, O Poderoso Chefão.  

Sobre a Nova Guarda há um paralelo com a diacronia no mundo da política e das ações societais da juventude. Paradoxalmente, os mais novos são mais ibéricos que os pais. Nasceram em rico patrimônio, nascidos na Zona Oeste Mall, não tem pudor em ostentar marcas ou a si mesmos. Sem juízo de valor é como se Abel, Moisés, Adílio fossem substituídos por Gabi, Kaká e Yuri Alberto, ou ainda, saem Monarco e Almir Guineto para entrar Silva e João Martins.  Um certo ar gourmet. Sai o talonário de apostas e entra o game. A virada do século XXI parece que goumertizou essa “garotada”, o que implica numa atomização - que gera mais violência, mais fragmentação - com a perda do centralismo democrático da “Cúpula” ou Comitê Central no “Partido dos Trabalhadores do Bicho”, metáfora usada pelo “Capitão” Guimarães, cuja eficácia é a presença de “diretórios” em todos os municípios do Estado.  


A série, com um episódio dedicado a um perfil do mundo da contravenção com mais ênfase no sangue do que nas rosas, representadas pela fala de Neguinho (ainda pode ser chamado assim?) acerca do libanês Aniz A. David. É muito bem editada, com depoimentos importantes, e põe luz à metástase societal carioca na relação entre milícia, mundo do bicho, política e, mídia, numa discreta autocrítica a mostrar a relação da Globo com os patronos do Carnaval. Por fim, mas não menos importante, como diria o engenheiro Leonel Brizola, o Rio de Janeiro é a “caixa de ressonância” do Brasil, logo, vemos a ex-juíza Denise Frossard como o experimento laboratorial da toga da velha UDN no mundo da política. O resenhista não sabe explicar a causalidade, mas curiosamente, foi ali que o Rio faliu. E jovens, uma indagação: como aguentam assistir a 7 episódios de 50 a 60 minutos de uma só vez, mas não vão ao cinema ver um filme de 2h30? Respostas para o autor desse VOTO POSITIVO.  

2 comentários:

José Bezerra de Oliveira disse...

Excelente texto. Sobre assistir 7 episódios de aproximadamente 60 minutos e não assistir um filme no cinema de duas horas e meia... Essa pergunta não deveria ter sido formulada.

Heitor Victor disse...

Boa análise, do documentário e do Rio. Também sempre me irrita essa mania de afirmar coisas sobre o Brasil (os garotos da PUC) como se fossem únicas, mas que ocorrem em diversas esferas e em diversas partes do planeta. Achei instigante pensar em como as lideranças do crime, agora atomizadas pela cutlura vigente, vão se sair no individualismo nosso de cada dia, pois organizações costumam se construiu coletivamente.