segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - QUESTÃO MERIDIONAL CARIOCA


Era uma vez o Jogo do Bicho 

Pablo Spinelli 


Há um raro e incomum interesse por parte de um setor da classe média carioca acerca de um tema que tem um corte transversal na política, na economia, na cultura e nas agruras do Rio de Janeiro, seja a cidade ou o Grande Rio. É a série documental lançada em novembro pelo streaming Globoplay: 'Vale O Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho”, a respeito de personagens do mundo da contravenção e outras coisinhas mais. O mesmo streaming lançara em 2021 com muito sucesso o documentário “Doutor Castor”, acerca de Castor de Andrade, aquele que seria considerado o Capo di tutti capi (chefe dos chefes) termo contrabandeado da organização siciliana “Cosa Nostra”, vulgarmente chamada de máfia nos EUA e aqui - que não é exclusiva dos italianos, pois há a irlandesa e a judaica, representadas pelos filmes Os Infiltrados (2006) e Era Uma Vez na América  (1984) - fora as mais diversas espalhadas por todos os continentes.  

Nessa toada, Vale o Escrito pode ser visto como o desdobramento de “Doutor Castor” (ver antes essa série e ler o livro Os porões da contravenção: Jogo do bicho e Ditadura Militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado) por onde somos guiados por viva voz pelos sobreviventes da Velha Guarda – o ex-capitão do exército Aílton Guimarães e o José Scaffura, o Piruinha e adentramos no universo da nova geração, com foco no que restou da Família Andrade – especialmente o sobrinho, Rogério e da Família Garcia, as netas gêmeas de Miro Garcia, filha do intempestivo “Maninho”. Ao longo de sete episódios temos um flerte com a história recente do país e com a sociologia e antropologia urbanas. Percebe-se que a presença do ex-capitão do Exército foi fundamental para dividir a cidade do Rio de Janeiro em áreas de influência como a Partilha Afro-asiática do Imperialismo. Antes que detratores da formação do país associem com as Capitanias Hereditárias vemos na série que a hereditariedade não é posta como algo de consenso sem coerção.  


Nas palavras do criador da série, Fellipe Awi , o interesse foi despertado a ele porque "Sempre me impressionou que, em pleno século XXI, uma atividade ilegal funcionasse ainda à luz do dia em qualquer esquina da cidade e, principalmente, mantivesse uma estrutura típica de máfia. Além da divisão de territórios, existe essa tradição quase monárquica da liderança dos negócios passada de pai para o filho mais velho"i. A despeito dos fatos narrados na série contradizerem a “nostalgia imperial” do criador pois, nem sempre rei morto será príncipe posto, cumpre destacar que a hereditariedade é marca das mais diversas esferas de ação, seja à margem da lei, como patronos da cultura carioca que permitiu com o mecenato do poder paralelo aquilo que já foi subvencionado pelo Estado Varguista – ou seja, a margem da lei não é tão diversa da cultura política do Estado – seja também em áreas como música, futebol, política, teatro, igrejas,  universidades e, claro, jornalismo. Antes que um universitário cheio de USP no sangue diga que isso é do “homem cordial” como a sarcástica narração de Pedro Bial faz supor na série, lembremos dos Kennedy (EUA), Fujimori (Peru), os Mendes Godinho (Portugal), Luksic (Chile), Grosvenor (Inglaterra). A tradição vem das monarquias e entrou no mundo empresarial, portanto, aquilo que é visto como mafioso na esquina da cidade é uma ponta do espírito empreendedor e do self-made man por aqui. O que seria somente nossas raízes ibéricas tem muito de americanismo, basta ver que a grande referência valorativa para um representante da nova guarda é um filme americano, O Poderoso Chefão.  

Sobre a Nova Guarda há um paralelo com a diacronia no mundo da política e das ações societais da juventude. Paradoxalmente, os mais novos são mais ibéricos que os pais. Nasceram em rico patrimônio, nascidos na Zona Oeste Mall, não tem pudor em ostentar marcas ou a si mesmos. Sem juízo de valor é como se Abel, Moisés, Adílio fossem substituídos por Gabi, Kaká e Yuri Alberto, ou ainda, saem Monarco e Almir Guineto para entrar Silva e João Martins.  Um certo ar gourmet. Sai o talonário de apostas e entra o game. A virada do século XXI parece que goumertizou essa “garotada”, o que implica numa atomização - que gera mais violência, mais fragmentação - com a perda do centralismo democrático da “Cúpula” ou Comitê Central no “Partido dos Trabalhadores do Bicho”, metáfora usada pelo “Capitão” Guimarães, cuja eficácia é a presença de “diretórios” em todos os municípios do Estado.  


A série, com um episódio dedicado a um perfil do mundo da contravenção com mais ênfase no sangue do que nas rosas, representadas pela fala de Neguinho (ainda pode ser chamado assim?) acerca do libanês Aniz A. David. É muito bem editada, com depoimentos importantes, e põe luz à metástase societal carioca na relação entre milícia, mundo do bicho, política e, mídia, numa discreta autocrítica a mostrar a relação da Globo com os patronos do Carnaval. Por fim, mas não menos importante, como diria o engenheiro Leonel Brizola, o Rio de Janeiro é a “caixa de ressonância” do Brasil, logo, vemos a ex-juíza Denise Frossard como o experimento laboratorial da toga da velha UDN no mundo da política. O resenhista não sabe explicar a causalidade, mas curiosamente, foi ali que o Rio faliu. E jovens, uma indagação: como aguentam assistir a 7 episódios de 50 a 60 minutos de uma só vez, mas não vão ao cinema ver um filme de 2h30? Respostas para o autor desse VOTO POSITIVO.  

sábado, 16 de dezembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 029 - UM BALANÇO SOBRE A EDUCAÇÃO

Educação e Futuro da Democracia

Vagner Gomes de Souza

 

Estamos num ano de encerramento do ano letivo no país. Valeria um balanço do primeiro ano de gestão do Ministério da Educação no Governo Lula – Alckmin. Como em diversos segmentos do governo, observamos que a Frente Democrática ainda se encontra desafiada pelas mazelas da pandemia no qual o antecessor nada fez como se a sociedade estava aprisionada a um “Game”. Essas seriam, em breves linhas, nosso balanço para que a educação tenha um trabalho contínuo para que o futuro da democracia não esteja sob ameça.

Os números das avaliações indicam o retrocesso na educação brasileira em apenas quatro anos. Esse retrocesso colaboraria com o negacionismo científico em inúmeras situações. Por exemplo, se um aluno do ensino médio explica com naturalidade que as chuvas caem porque há nuvens acionadas pelos raios, observamos que estamos no limiar do “fundo do poço”. Imagine os olhares de desconhecimento para temas da saúde, por exemplo, a diabetes.

Seriam dois temas em que suas habilidades estariam abordadas no ensino fundamental. Aliás, diversos especialistas em educação adoram enumerar que a situação do ensino fundamental estaria melhor que no ensino médio. Dependeria dos parâmetros a quais se referem. Muitas vezes usam os números de evasão escolar e de aprovação nessas opiniões comparativas. Muitos se silenciam sobre os impactos de uma “aprovação automática” disfarçada e, sem critérios pedagógicos, uma fantasia de relatórios que ficarão a ser lidos pelos “ratos da História”.

A manutenção do gestor no Ministério da Educação, ainda que haja ajustes a serem feitos, seria um desafio no comparativo a gestão anterior. Aos poucos, a Secretaria de Ensino Superior consolida um perfil mais expansivo na abertura de novas vagas no ensino universitário público. Todavia, assim como os alertas sobre o ensino básico, devemos estar atentos a descaracterização do ensino EAD que seria mais complementar, porém está assumindo força sem um balanço. No nível do Ensino Básico, a necessidade de uma melhoria na articulação política do Ministério com os entes da federação seria urgente.

A inserção das mudanças ao projeto original de ajustes ao Novo Ensino Médio, relatado por um parlamentar de um partido da base do Governo, não pode ser visto como se fosse um revanchismo político ou com a nova onda do neoliberalismo pedagógico. Números de aulas aula não são critérios para serem polarizados num debate político sobre a Educação. Ser mais criterioso nas ofertas de ensino presencial se faz necessário uma vez que a juventude pobre tem todas as cores e o princípio da universalidade do acesso a educação pública deve atender todos os segmentos sociais. Os ajustes necessários no Novo Ensino Médio devem agregar esse princípio político republicano e democrático.

Apesar dos deslizes sobre as manifestações de alguns assessores sobre o ensino nas escolas civil-militares, devemos sempre estar abertos a inclusão de todas e todos. Vejam um exemplo do governo de Centro-esquerda da capital carioca para perceber que a ascensão do Partido dos Trabalhadores a gestão municipal não foi condicionada a suspensão desse projeto em algumas unidades escolares. Esse amadurecimento deveria se espalhar para outras esferas do Governo Federal.

Ainda temos o desafio da leitura e escrita numa sociedade cada vez mais digitalizada. O Ministério da Educação, com auxílio de especialistas da educação e da saúde, precisa promover uma campanha de esclarecimento aos pais e a juventude sobre o uso excessivo dos canais digitais em celulares. A ansiedade na juventude provavelmente cresceu nas últimas décadas e a educação está se adaptando com o problema ao contrário de ser um espaço para fazer valer a orientação educacional. Se um professor não pode criar suas regras de convivência com as novas tecnologias na unidade escolar, tudo é fruto da ausência de uma parceria com a família. Esse debate deve incluir os responsáveis para que tenhamos uma melhor valorização do uso do tempo livre para o lazer e a leitura. Todavia, faltam espaços públicos federais apresentados uma diversidade de programação cultural. Enfim, está faltando diálogo entre os Ministérios da área social. Esse seria o papel de um Ministro da Casa Civil promover.

Um Brasil de livros se faz com leitores motivados nas escolas e nas famílias. Não se cria mais leitores com disciplinas como “Circulo de Leitura” ou “Rodas de Leituras”. Essas iniciativas são sinalizações de estimulo pedagógico que precisam ser acompanhadas por outras iniciativas, por exemplo, “Caravanas dos Livros” (levar bibliotecas móveis em comunidades da periferia). Por fim, diante de um Governo que deseja ter a marca na busca da igualdade de gênero, não podemos ter ainda um enorme déficit de creches públicas no país. E Creches que estejam abertas até 18 horas, pois temos as creches que encerram suas atividades às 15 horas diante do silêncio de parlamentares até do campo da Esquerda.

sábado, 9 de dezembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 028 - RECOMPOR A GRANDE POLÍTICA

                                    Fotografia Cristiano Mariz (Veja 2016)

A Frente Democrática desafiada

Vagner Gomes de Souza

 

Não foi por falta de avisos que chegamos a dezembro afogados em números de duas pesquisas relevantes de opinião que vaticinam para a Democracia no Brasil um futuro incerto. O difícil mês de novembro foi apenas uma ponta do iceberg da complexa sociedade em que estamos a viver, uma vez que, a campanha eleitoral de 2022 se fez com uma fuga do debate programático e mais se desenrolou num sentimento de rejeição ao governo anterior. Entretanto, na prática da pequena política, há ainda muitas lideranças no campo progressista no cálculo de que houve uma ampla margem de vitória como nos sugerem as assustadoras negociações pré-eleitorais daqueles que alimentam a ideia de que o Governo avançará mais diante de inúmeras “frentes de esquerda” nas capitais e principais cidades do país.

Afogados nos números das pesquisas, o mal estar da crise da política ainda se mantém num fogo brando no aguardo da “picanha da autocracia” se não retornarmos ao fio da meada no desenho político das forças presentes na composição do Governo, que encerra seu primeiro ano com a Frente Democrática desafiada a se fazer presente apesar de todos os devaneios que testemunhamos nesses meses aparentemente perdidos se continuarem os lugares de fala de quadros políticos formados num “Asilo Arkham”. Diante disso a percepção da insegurança pública cresceu assim como os números do feminicídio puxados pela “locomotiva do voto retrógrado” no estado de São Paulo.

Enquanto a Frente Democrática é desafiada no terreno carioca pelo messianismo da Praça de São Salvador sob lideranças de beatos à esquerda, a Zona Sul (base eleitoral do que sobrou da chamada esquerda carioca) enfrenta a emergência dos “Justiceiros”. A derrota já se anuncia por antecipação para todos nós democratas por conta de articulações que não se atentam que o momento pede um passo atrás para se dar dois adiante. Os desafios cariocas seriam mais ousados, pois temos o maior bairro da América Latina (Campo Grande) com uma sociedade psicologicamente pressionada em fortes mutações e os valores da civilização se perdem numa velocidade assustadora. Aparentemente, não leram as linhas escritas por nós sobre a série “Cangaço Novo” que indicava referências do pensamento social brasileiro para se partir para uma nova tipologia da interpretação sobre os desafios postos nesse momento.


 Na verdade, grau da leitura política equivocada é proporcional a baixa densidade de leitura dos quadros intermediários envolvidos na política. Vivem de vídeos ou áudios com velocidade acelerada que simplificam a análise política, se foram as urnas com os livros nas mãos, o desafio será lê-los a cada mês. Portanto, a alta dos preços dos livros está nos rondando sob o silêncio dos Ministérios da Educação e da Cultura. A identidade do cinema brasileiro está sob pressão da ausência da reserva de espaços nas redes de cinemas por um possível descuido da assessoria parlamentar do ministério responsável pelo tema. Aliás, triste é a situação política de um governo em que os assessores ganham o protagonismo de atos falhos como se fossem encontrados numa plenária de estudantes secundaristas.

Falemos sobre a juventude. Com certeza os números das pesquisas não estão a sorrir para a Democracia. Na avaliação do Governo, o segmento de 16 – 24 anos ficam no “muro” da avaliação regular acima dos 40% como de além de nem trabalhar, nem estudar tenhamos também o nem opinar. Essa “massa incógnita” se transforma em seguida em opiniões mais reacionárias no segmento posterior. Logo, a juventude está abandonada nesse esvaziamento da Frente Democrática. Uma vez que os grupos juvenis mais articulados seriam os evangélicos e o a política organizada na criminalidade com bases com tamanha capilaridade nas periferias dos grandes centros urbanos, sugerimos que a incerteza para os próximos anos se acentuem se não modelarem um olhar para uma cultura política democrática na base da sociedade. Ainda mais num contexto de globalização da inteligência artificial ameaçando a existência dos empregos numa velocidade para além das condições de respostas dos diversos segmentos da gestão pública federal.

Entretanto, a democracia ainda é defendida como um valor positivo e as diversas vertentes da política brasileira defendem a liberdade em suas diversificadas nuances. Esses elementos nos permitem reconhecer que ainda temos um tempo para os ajustes necessários. Os sinais positivos já surgem no promissor encontro entre o atual Vice-Presidente da República e o ex-Governador de São Paulo que foi responsável por um amplo embate contra o negacionismo em relação a eficácia das vacinas contra a COVID-19. Devemos estimular novos reencontros como se seguíssemos o legado de Betinho que, em seu equilíbrio político, afirmava que quem tem fome tem pressa. Temos que olhar para os movimentos reais da sociedade e abandonar essas fantasias de narrativas pós-modernas, pois essas posturas estão fornecendo o combustível dos adversários do nosso marco civilizatório. 

 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 027 - BUSCA DA SERENIDADE

Resgatar o fio da meada

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Deixa a vida me levar em nossa linguagem é uma expressão que se refere à necessidade de agradecer o livramento cotidiano face às questões de caráter dramático que ela pode ou não possuir, algo que pretende ou não alimentar as tensões de um ou mais conflitos ou de situações que parecem ser mais graves do que realmente são. Ao subir o tom do cancioneiro popular, se salienta que não chegamos ao abismo, ao irreparável, nem às portas do inferno nem tão pouco às do paraíso.

Essa é a atmosfera que por vezes surge, e por vezes também, surgiram ao longo do primeiro ano do governo Lula-Alckmin, mas, mais genericamente, à atmosfera briguenta e turbulenta que se intensificou no debate político, à atmosfera de suspeita, grosseria e raiva permanente entre aqueles que governam e a oposição.

E essa percepção já se avizinha em torno da agenda de 2024 que é por vezes imatura e outras vezes exala mau humor, pois o carácter informativo necessário para não embarcar nessa canoa furada é pobre e a exacerbação da propaganda cobre tudo, parece que os defeitos ou virtudes do governo e da oposição não foram considerados como foco, mas sim sobre uma luta entre mundos opostos, onde o outro é a encarnação do mal. Os efeitos que isso tem desenvolvido é algo muito distante de uma cultura cívica saudável.

É claro que este espírito é resultante de não se ter construído de forma límpida e não ziguezagueante o governo da Frente Democrática que poderia compor um acordo aceitável para todos, ou pelo menos para o Grande Número.

Tal como num andamento anterior, a então dita esquerda radical, inflada pela sua suposta efêmera vitória, age de forma irresponsável e messiânica, com uma ideologia de reconstrução que contém aspectos delirantes, que alimenta uma extrema direita que se deseja divina pela sua política eleitoral motivada por um impulso hegemônico e imoderado em sua arrogância, ambas distantes em tudo da busca dos antagonismos em equilíbrio.


A grande maioria dos cidadãos, que certamente não conseguem explicar como é que a Frente Democrática não chegou a um acordo, acreditam com muito bom senso que ela ainda pode e deve acontecer, trazendo certamente boas surpresas reservadas para nós, mas não sabemos ainda o que vai ser.

O que sabemos é que as mudanças devem ser feitas pelas atuais instituições democráticas através do caminho testado e aprovado das reformas, como acontece nas democracias, sem gritar para o céu e removendo qualquer conotação apocalíptica.

Para tanto devemos tomar consciência, de uma vez por todas, de que, como todos os outros, atravessamos tempos sombrios, de dificuldades econômicas, em que estão ocorrendo guerras longas e sangrentas, e onde a democracia está desafiada (A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto de Marco Aurélio Nogueira, Ateliê de Humanidades: São Paulo, 2023) em muitas latitudes e regiões, e não muito longe de nós. Estes ainda são tempos, como disse no final do século XIX o historiador suíço Jacob Burckardt, que no século seguinte as pessoas procurarão “salvadores” que oferecerão soluções duras e simples: “les terríveis simplificadores”.

No Brasil vivemos um momento complexo. Começamos a lembrar de que o bem-estar social requer uma economia bem arrumada. Se não tivermos recursos e investimentos produtivos, não haverá reforma tributária que ajude.

Isto não é inevitável e ao valorizar as reformas positivamente isso pode nos levar a transição bem-sucedida no desenvolvimento das forças produtivas como estamos vendo com a nossa bela atuação na COP 28 nesse quase fechamento de 2023 bem como na assunção do Rio de Janeiro como capital do G20 em 2024. Essas são as ações que podem permitir um novo impulso propulsivo e nos tirar do forte sonambulismo que já nos acometeu, como mostrou o historiador australiano Christopher Clark sobre o universo de 1914.

Isto requer uma atitude diferente de todas e todos. Requer um forte compromisso de cooperação para obtermos os resultados desejados. É necessária uma forma de convivência onde prevaleçam as boas razões, as boas palavras, lidar com a realidade de forma saudável e que se reduzam os maus sentimentos. Digamos que sejam reduzidos porque o seu desaparecimento é estranho à natureza do estado de coisas que aí está, que é, como sabemos, demasiado esquizoide. Daí que para o nosso bem-estar social, será necessário mais espírito coletivo, mais cooperação democrática e um pouco mais de ideais exequíveis.

 

Por um bom Natal e um 2024 sereno que permita um país e um mundo estável e próspero. Domingo, 3 de dezembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 26 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE A DIABETES E O CINEMA


Pela Saúde da Lua das Flores

 

Para a Amiga Nísia Trindade Lima

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

No último dia 14 de novembro aconteceu a edição de 2023 do dia mundial de prevenção e controle da diabetes. No filme lançado em outubro passado Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese a partir do livro de igual título de David Grann de 2017 e aqui em 2018, o diabetes é apresentado com destaque: a protagonista Mollie é membro da tribo Osage baseado principalmente no condado de mesmo nome em Oklahoma na década de 1920. Os Osage são um povo indígena dos Estados Unidos da América que pode ser encontrado em toda a América do Norte. Os Osage geralmente morrem antes dos 50 anos de idade de uma "doença debilitante", Mollie morreu (como Gramsci) em 1937 devido a diabetes aos 50 anos. Aqui entre nós estamos desde janeiro na Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da desassistência à população Yanomami. Se entre nós a desnutrição é a principal mazela dos Yanomamis, os Osage e os demais indígenas norte-americanos têm algumas das taxas mais altas de diabetes em todo o mundo.

Fruto de uma ampla pesquisa o livro e o filme, ao lançar luz sobre o diabetes que acomete os Osage trazem a oportunidade de observarmos as últimas duas décadas, onde estudiosos atentos às lições do saudoso Giovanni Berlinguer quanto aos fatores sociais e culturais que moldam as interpretações e experiências das doenças têm voltado cada vez mais atenção para as experiências comunitárias de diabetes, particularmente entre grupos, incluindo as populações indígenas, que correm um risco particularmente elevado para esta condição.

A antropóloga Margaret Pollak, pesquisadora e professora da Indiana University NorthWest, em sua pesquisa ricamente contextualizada Diabetes in Native Chicago: An Ethnography of Identity, Community, and Care (University of Nebraska Press, 2021)[2] estuda o diabetes em comunidades nativas urbanas como mostra o filme de Martin Scorsese.


Embora a maioria dos estudos antropológicos sobre diabetes em comunidades nativas tenham se concentrado em ambientes de reservas (como acontece com a Missão Yanomami em curso), Pollak volta a atenção para um ambiente urbano, documentando a experiência, o cuidado e a compreensão do diabetes nas comunidades nativas. Com base em meses de pesquisa etnográfica com a população indígena entre 2007 e 2017, Pollak considera a relação recíproca entre cultura e saúde, dando uma contribuição admirável.

Ela mostra como o diabetes é determinado pelo que os membros da comunidade observam nas experiências da doença entre familiares e amigos, e não é tão somente uma doença física, mas social. A relação entre a cultura hominídea e biológica é recíproca. Na comunidade indígena pesquisada descobriu-se: os elevados custos financeiros e de tempo dos cuidados de saúde; falta de reconhecimento e/ou resposta aos sintomas agudos aos níveis elevados de glicose; priorização de outras responsabilidades cotidianas; desconfiança na medicina praticada; e, visões fatalistas sobre o desenvolvimento e prognóstico da diabetes.

Para reduzir as taxas de diabetes e suas complicações relacionadas a essas populações nativas, ela aconselha que reformulemos nossa visão de quem são os povos indígenas e o que a epidemia de diabetes significa nessas comunidades, e considerar a partir daí como desenvolver as melhores soluções para o cuidado dessas populações.

Um ponto forte que ressalta é a atenção às práticas aparentemente mundanas de cuidado que ela encontrou durante a pesquisa de campo com a comunidade nativa, por exemplo, de comparecer a consultas, fazer compras, cozinhar, administrar medicamentos (um nó explorado em Assassinos da Lua das Flores por Martin Scorsese), fazer exercícios, fazer dietas para diabetes quando não diabético, lembrando os pacientes sobre os alimentos, observando os sinais de hiperglicemia em outras pessoas, fornecendo educação e aconselhamento e considerando as necessidades de dieta para eventos comunitários maiores, e seu consistente destaque às vozes das pessoas. O envolvimento da pesquisa com os estudos históricos e antropológicos existentes (como no livro e no filme Assassinos da Lua das Flores) também destaca como as perspectivas e experiências das comunidades não existem isoladamente, convergindo de forma significativa com as comunidades indígenas de outros lugares. Em última análise, a pesquisa oferece um estudo etnográfico matizado e profundamente contextualizado sobre o diabetes com nativos e nativas, que será de interesse para a cidadania que procura aprender sobre a Missão Yanomami e a relação dinâmica entre saúde, doença e os mundos sociais e culturais em que vivemos.

 

23 de novembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Agradeço ao amigo biólogo espanhol José Félix Rodríguez Antón que me apresentou essa referência.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 026 - COMO O BEATO JOSÉ MARIA GESTOU JAVIER MILEI?

Último Tango em Buenos Aires


Não fique pensando no que aconteceu,

no que não aconteceu, senão, vai ter mil passados e nenhum futuro.

(Citação de O Segredo dos Seus Olhos)

 

Por Vagner Gomes de Souza

 

Sem uso de manteiga os argentinos acordaram hoje numa aventura de atração pelo perigoso extremismo de Javier Milei. Ensinou-nos Bernardo Bertolucci que esse relacionamento anônimo perderá controle. Os seguidores de Macri, distantes do que um dia foi a União Cívica Radical, muito se arrependerão diante dessa nova versão da americanização dos pampas.

A política na Argentina está em transe uma vez que o centro político muito pouco se fez presente na apresentação de um programa político. E o segundo turno foi um debate sobre o equilíbrio emocional. Mas, o que esperaremos de uma sociedade que convive com um Coringa a procura de uma Arlequina. E temos a ideia de liberdade dos antigos diante de uma emancipação fantabulosa.

Fantabulosos são esses Hermanos que tem em seu território um território chamado “Fim do Mundo” como lembrou uma vez o Papa Francisco. Fantasmas da hiperinflação e de um kirchnerismo próximo ao abismo da renúncia de dialogar com o princípio da Frente Democrática. Apesar de Argentina, 1985 ter feito muito barulho na mídia brasileira com seu tom de ressentimento às avessas, lembremos que Oscar de Melhor Filme Estrangeiro os argentinos ganharam por História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009). Filmes que se ampliaram para o campo democrático em momentos políticos significativos.



Enfim, aguardemos as possibilidades de dialogo ainda abertas como assinalou o presidente do Chile, que sente uma reversão política das expectativas em seu país. Já se assinala que uma Internacional de Extrema-Direita está muito bem articulada nas redes sociais e que tem um forte apelo de mobilização na juventude em cada país. Dos jogos em celulares passando pelos aplicativos de sucesso e empreendimentos até chegar a militância antipolítica. Temos um cenário muito aberto para que novos sujeitos políticos venham a emergir com faixas etárias menores, pois a acupação política do Estado a ser desmontado é uma possibilidade para que esteja na geração “Nem Estuda e Nem Trabalha”. Acrescentariam o terceiro Nem (Nem Programa).

Sem o doce de leite dos alfajores, abre-se uma nova etapa na Argentina de Sarmiento que fez a crítica ao caudilhismo em Facundo. Vamos acompanhar e ajudar naquilo que for comum no conjunto do Sul da América para que não haja uma instabilidade maior nas “Terras do Sul”. Em breve novas eleições ocorrem na Argentina para renovar parte do Congresso Nacional e tudo dependerá das forças políticas democráticas estarem atentas aos números da economia com a desigualdade social agravada aos efeitos da emergência climática.

Duas Guerras tortas (Ucrânia e Faixa de Gaza) estão deixando a Democracia no mundo sem condições de respiração. Itália foi um primeiro sinal. O Paraguai emergiu um obscuro político que faz um discurso cheio de xenofobia contra os brasileiros. A celebrada vitória na Colômbia gradualmente vira um pesadelo. E teremos eleições norte-americanas em menos de 12 meses aonde Trump com inúmeros processos não perde capital eleitoral.

No Brasil, os especialistas em eleições nas diversas franquias que se dizem de esquerda parecem estar de bruços para a chegada de algum Marlon Brando. Não se atenta ao som dos Helicópetros UH-1 Huey (usados na Guerra do Vietnã) que antecipam as rajadas das metralhadoras ao som das Walquírias. O “modus operandi” das redes sociais deixam em germinação as sementes das heras venenosas que serão colhidas nas eleições municipais. Não se pode fazer encontros tranquilos e defender Frente de Esquerda nas capitais brasileiras depois do que houve na Argentina. Não ampliamos a margem da vitória acidental de 2022. Sejamos mais cautelosos com as movimentações pré-eleitorais diante de uma sociedade que não se considera atendidos nas demandas mobilizadas em campanha sem debate programático. Tem muitos ajudando a empurrar o eleitor de Centro-direita para os braços do extremismo. Porém, temos estrategistas distantes da realidade que esnobaram Damares, Mourão, Moro e outros nomes como viáveis eleitoralmente na disputa ao Senado.

 A realidade foi outra. Não há autocrítica sobre as eleições ao parlamento pois fazem uma métrica colorista ou de gênero. Na verdade, como o Aipim de Santa Cruz e outros lugares a mandioca cresce para baixo junto com os defensores da Frente de Esquerda. Assim que o som do samba tiver atravessado a Avenida e os blocos de rua, teremos o fim dos efeitos da fortuna. A ausência de um Partido Republicano e Democrático se faz sentir. Então, a serenidade se faz necessária para evitar o efeito Orloff.


sábado, 18 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - EDNEY SILVESTRE E O TEMA DOS INTELECTUAIS


OS EXAMES CRÍTICOS DA MODERNIDADE

Isabella Souza da Silva

 

    Nos acontecimentos recentes no cenário internacional, assistimos lamentavelmente a invasão do braço armado do Hamas a Israel e toda a barbárie consumada pelo grupo através de uma tela do outro lado do continente contra a vida de civis. Juntamente as superficiais tentativas da ONU e dos ademais países de intervirem nesta guerra unilateral. Isto porque, o pedaço de extensão territorial da Palestina doado ao estado de Israel pela ONU em 1947, propiciou a hostilidade em que os palestinos eram e são tratados pela "Terra Santa".

No livro Constestadores, elaborada pelo excepcional correspondente internacional e escritor Edney Silvestre, que redigiu uma coletânea de entrevistas de forma erudita com os intelectuais mais renomados das últimas décadas. Seriam contestadores do senso comum. Por exemplo, uma desses entrevistados foi feita com o tempestuoso palestino e professor da universidade de Columbia, Edward Said, em 1997, que mencionou sobre a sua família tornasse refugiada no Egito, e o Said argumentar que: "Israel existe porque a Palestina foi destruída". Essa ponderação direta ganhou destaque na página de sua entrevista.


Logo em seguida, no mesmo capítulo, veio a complementação da interlocução do indiano Salman Rushdie. O homem responsável por escrever "Versos Satânicos", a obra que enfureceu o governo Irariano por razões igualitariamente religiosas. Fundamentalmente, na introdução no início da página desta entrevista, Silvestre detalha a atribulação que passou ao lado de Rushdie para conseguirem um ambiente seguro para a entrevista. Percorrendo estradas e realizando diferentes ligações até chegarem ao Bard College, com seguranças rodeando o Campus.

Essa não deve ter sido a situação mais distinta de sua carreira, entretanto, para quem ler o livro se impressiona por seu comprometimento e empenho de concluir este trabalho. Em dada circunstância do diálogo, Edney Silvestre o questiona como ele veria o papel da literatura com a aproximação do milênio, tendo como resposta que: "O papel do intelectual é falar a verdade ao poder, aos que detêm o poder. Sobretudo que hoje somente há uma superpotência mundial”.

   Em todas as vinte entrevistas exploradas minuciosamente por Edney Silvestre, ele usou de sua sensibilidade e ética para extrair os pensamentos mais ousados de seus entrevistados; isto fez o livro ser dividido em cinco conjuntos nomeando as personalidades como boxeadores, tempestuosos, cordiais, militantes e visionários. Todas mostrando suas diferentes concepções do mundo.

    Recentemente "Constestadores" ganhou uma edição comemorativa das duas décadas do lançamento da obra. Acrescentaram duas entrevistas inéditas com o visionário José Saramago que em poucas páginas destacou sua vida pessoal e deu uma aula vanguardista sobre cultura e política. E a imortal e cordial Fernanda Montenegro.

No princípio da página referente a atriz,  Silvestre expressa sua profunda admiração de décadas pela Arlette Torres, popularmente conhecida como Fernanda Montenegro. De forma nostálgica, ele detalha sua experiência satisfatória de tê-la conhecido por si próprio em Nova York em sua indicação ao Oscar de melhor atriz pelo filme rico em cultura "Central no Brasil".

Cada um dos diferenciados pontos de vista dos estrelados assinalados em uma página branca causa, por vezes, o sentimento de estranheza e outros provoca curiosidade pelas próximas folhas; como o de Paulo Freire que destacou: "O analfabetismo, no fundo, esconde uma proibição que é uma proibição de classe social".

Embora nem todos tenham feito previsões que tivessem acertos bem como de Paulo Francis que afirmou a Edney, em 1994, que não seria possível o Lula torna-se presidente do Brasil, e atualmente, 29 anos depois estamos vivendo em seu terceiro mandato.

O livro possui sua relevância educacional por tratar de temas contemporâneos, abordando cultura e geopolítica. Portanto, sua leitura de fácil entendimento ajuda a formação do senso crítico.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O PRIMEIRO FREVO EM PARIS


Gilberto Freyre com intelectuais franceses e Mario Pinto de Andrade (1956) 

Casa-Grande & Senzala no Pós-Segunda Guerra Francês

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França, de Cibele Barbosa Calvino (São Paulo: Global Editora, 2023)

 


Aqui está uma bela obra sobre Gilberto Freyre oferecida às leitoras e leitores pela historiadora Cibele Barbosa, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco do Recife. Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França é um livro chave para compreender a riqueza das relações intelectuais que marcaram o período 1950-1970 entre a França e o Brasil e não só. O livro é fruto da sua tese de doutorado defendida em 2011 perante a Universidade de Paris-Sorbonne e vencedor do 1º Concurso Internacional de Ensaios - Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021.

A riqueza da obra aparece antes de tudo no lugar dado pela historiadora a abordagem que situa a grande obra de Gilberto Freyre na diversidade do pensamento social brasileiro. Mas a sua principal fortuna está na descrição da rede de sociabilidade estabelecida entre Gilberto Freyre e os intelectuais franceses como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Roger Bastide entre outros que saudaram a moderna escrita da história. Ao conhecerem a obra de Gilberto Freyre publicada no Brasil em 1933, Casa-grande & senzala é uma revelação para os intelectuais franceses que notavelmente integraram essa elaboração da formação da sociedade brasileira, essa civilização em seus conhecimentos da história. A recepção da obra de Gilberto Freyre tem como ponto de partida trocas intelectuais com os franceses.

No prefácio de Lucien Febvre a sua obra-prima na primeira edição francesa de 1952, ele revelava uma ironia fina ilustrando que o livro devia ser lido observando-se que o Brasil é uma terra de histórias podendo ser confrontado com as da Europa, só que naquele momento a comparação teria como base o modo pelo qual cada sociedade lidava com a relação entre diferentes grupos étnicos e culturais. Desse modo, a Europa daquele tempo terminava por ser descrita, numa forma própria à Rabelais (que Mikhail Bakhtin apresentou), como obcecado pela possibilidade de se construir um ideal de civilização incorporadora, visto que como dirá Febvre, “Agora, o branco se aflige. Tateia. Hesita. E, prisioneiro de sua reverência por tudo aquilo que pensou, construiu, inventou e realizou, não consegue oferecer a esses homens revoltados contra uma civilização da qual se sentem estrangeiros outra coisa senão invenções de branco, criações de branco que ele insiste em chamar de 'progresso'. Panem et circenses!”

Esta tradução, publicada sob o título de Maîtres et esclaves: la formation de la société brésilienne em 1952 na famosa coleção La Croix du Sud dirigida por Roger Caillois é devida ao filho de Xangô Roger Bastide que conhecia bem o Brasil. Em 1938, Roger Bastide saiu de França para lecionar na nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, onde Fernand Braudel também lecionaria. A partir daí, o Brasil é reconhecido pelos franceses como uma terra de história.

Mas o trabalho de Gilberto Freyre também deixou obviamente a sua marca em outros intelectuais como Georges Gurvitch que orientou as teses de doutorado de Roger Bastide, Jean Pouillon e Jean Duvignaud, bem como em Roland Barthes.

Quatro anos depois, em 1956, a obra de Gilberto Freyre esteve no coração de uma conferência de Cerisy. A questão da racial no ambiente do pós-segunda guerra e de reposicionamento do tema nas democracias foi então debatido nessa comuna francesa e essas discussões também animaram a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em França surge então a questão do império colonial nascido com Napoleão, particularmente no continente africano, estando a experiência da Indochina na Ásia longe de resolução. E a questão do império colonial francês na África é então objeto de controvérsias entre os atores da vida política francesa por conta da comparação também com a dos impérios ibéricos. Um conceito de Gilberto Freyre que povoou as mentes francesas foi o de lusotropicalismo. Com isso a recepção da obra de Gilberto Freyre chegou para além da França na África, onde a revista parisiense Présence Africaine publicou, em outubro-novembro de 1955, um artigo do ativista angolano Mário Pinto de Andrade: “O que é o lusotropicalismo?" O futuro presidente do Movimento Popular da Libertação de Angola (MPLA) critica a mobilização deste conceito pelos integrantes da ditadura portuguesa de Salazar. Os ativistas do Congresso de Escritores e Artistas Negros realizada em Paris, no anfiteatro Descartes da Sorbonne, por iniciativa do senegalês Alioune Diop e da revista Présence Africaine vão se opor a essas e outras apropriações de Gilberto Freyre.

Mas não há duas leituras da recepção da obra do nosso gênio da raça: a de Casa-Grande & Senzala, que fascinou os historiadores Lucien Febvre e Fernand Braudel e que se difundiu entre o pensamento social francês, graças a Roger Bastide, professor na Sorbonne desde 1958; a do “lusotropicalismo” de Salazar e os seus que os ativistas da revista Présence Africaine criticaram duramente em favor da democracia que marcou e marca a vida política francesa desde o nascimento do seu império colonial.

Nessas inúmeras qualidades, Cibele Barbosa traz uma nova perspectiva sobre este período das relações franco-brasileiras, franco-africanas e afro-brasileiras entre outras, e com este trabalho lança uma nova luz sobre Gilberto Freyre nos 90 anos de Casa-Grande & Senzala.

 

13 de novembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.