Resgatar o fio da
meada
Ricardo
José de Azevedo Marinho[1]
Deixa a
vida me levar em nossa
linguagem é uma expressão que se refere à necessidade de agradecer o livramento
cotidiano face às questões de caráter dramático que ela pode ou não possuir,
algo que pretende ou não alimentar as tensões de um ou mais conflitos ou de
situações que parecem ser mais graves do que realmente são. Ao subir o tom do
cancioneiro popular, se salienta que não chegamos ao abismo, ao irreparável,
nem às portas do inferno nem tão pouco às do paraíso.
Essa é a atmosfera que por vezes surge, e
por vezes também, surgiram ao longo do primeiro ano do governo Lula-Alckmin,
mas, mais genericamente, à atmosfera briguenta e turbulenta que se intensificou
no debate político, à atmosfera de suspeita, grosseria e raiva permanente entre
aqueles que governam e a oposição.
E essa percepção já se avizinha em torno
da agenda de 2024 que é por vezes imatura e outras vezes exala mau humor, pois
o carácter informativo necessário para não embarcar nessa canoa furada é pobre
e a exacerbação da propaganda cobre tudo, parece que os defeitos ou virtudes do
governo e da oposição não foram considerados como foco, mas sim sobre uma luta
entre mundos opostos, onde o outro é a encarnação do mal. Os efeitos que isso
tem desenvolvido é algo muito distante de uma cultura cívica saudável.
É claro que este espírito é resultante de
não se ter construído de forma límpida e não ziguezagueante o governo da Frente
Democrática que poderia compor um acordo aceitável para todos, ou pelo menos
para o Grande Número.
Tal como num andamento anterior, a então
dita esquerda radical, inflada pela sua suposta efêmera vitória, age de forma
irresponsável e messiânica, com uma ideologia de reconstrução que contém
aspectos delirantes, que alimenta uma extrema direita que se deseja divina pela
sua política eleitoral motivada por um impulso hegemônico e imoderado em sua
arrogância, ambas distantes em tudo da busca dos antagonismos em equilíbrio.
A grande maioria dos cidadãos, que
certamente não conseguem explicar como é que a Frente Democrática não chegou a
um acordo, acreditam com muito bom senso que ela ainda pode e deve acontecer,
trazendo certamente boas surpresas reservadas para nós, mas não sabemos ainda o
que vai ser.
O que sabemos é que as mudanças devem ser
feitas pelas atuais instituições democráticas através do caminho testado e
aprovado das reformas, como acontece nas democracias, sem gritar para o céu e
removendo qualquer conotação apocalíptica.
Para tanto devemos tomar consciência, de
uma vez por todas, de que, como todos os outros, atravessamos tempos sombrios,
de dificuldades econômicas, em que estão ocorrendo guerras longas e sangrentas,
e onde a democracia está desafiada (A
democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto de Marco Aurélio Nogueira, Ateliê de Humanidades: São Paulo, 2023)
em muitas latitudes e regiões, e não muito longe de nós. Estes ainda são
tempos, como disse no final do século XIX o
historiador suíço Jacob Burckardt, que no século
seguinte as pessoas procurarão “salvadores” que oferecerão soluções
duras e simples: “les terríveis
simplificadores”.
No Brasil vivemos um momento complexo.
Começamos a lembrar de que o bem-estar social requer uma economia bem arrumada.
Se não tivermos recursos e investimentos produtivos, não haverá reforma
tributária que ajude.
Isto não é inevitável e ao valorizar as
reformas positivamente isso pode nos levar a transição bem-sucedida no
desenvolvimento das forças produtivas como estamos vendo com a nossa bela
atuação na COP 28 nesse quase fechamento de 2023 bem como na assunção do Rio de
Janeiro como capital do G20 em 2024. Essas são as ações que podem permitir um
novo impulso propulsivo e nos tirar do forte sonambulismo que já nos acometeu,
como mostrou o historiador australiano Christopher Clark sobre o universo de
1914.
Isto requer uma atitude diferente de todas e todos. Requer um forte compromisso de cooperação para obtermos os resultados desejados. É necessária uma forma de convivência onde prevaleçam as boas razões, as boas palavras, lidar com a realidade de forma saudável e que se reduzam os maus sentimentos. Digamos que sejam reduzidos porque o seu desaparecimento é estranho à natureza do estado de coisas que aí está, que é, como sabemos, demasiado esquizoide. Daí que para o nosso bem-estar social, será necessário mais espírito coletivo, mais cooperação democrática e um pouco mais de ideais exequíveis.
Por um
bom Natal e um 2024 sereno que permita um país e um mundo estável e próspero. Domingo, 3 de dezembro de 2023
[1] Presidente
da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.