domingo, 26 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE A DIABETES E O CINEMA


Pela Saúde da Lua das Flores

 

Para a Amiga Nísia Trindade Lima

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

No último dia 14 de novembro aconteceu a edição de 2023 do dia mundial de prevenção e controle da diabetes. No filme lançado em outubro passado Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese a partir do livro de igual título de David Grann de 2017 e aqui em 2018, o diabetes é apresentado com destaque: a protagonista Mollie é membro da tribo Osage baseado principalmente no condado de mesmo nome em Oklahoma na década de 1920. Os Osage são um povo indígena dos Estados Unidos da América que pode ser encontrado em toda a América do Norte. Os Osage geralmente morrem antes dos 50 anos de idade de uma "doença debilitante", Mollie morreu (como Gramsci) em 1937 devido a diabetes aos 50 anos. Aqui entre nós estamos desde janeiro na Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da desassistência à população Yanomami. Se entre nós a desnutrição é a principal mazela dos Yanomamis, os Osage e os demais indígenas norte-americanos têm algumas das taxas mais altas de diabetes em todo o mundo.

Fruto de uma ampla pesquisa o livro e o filme, ao lançar luz sobre o diabetes que acomete os Osage trazem a oportunidade de observarmos as últimas duas décadas, onde estudiosos atentos às lições do saudoso Giovanni Berlinguer quanto aos fatores sociais e culturais que moldam as interpretações e experiências das doenças têm voltado cada vez mais atenção para as experiências comunitárias de diabetes, particularmente entre grupos, incluindo as populações indígenas, que correm um risco particularmente elevado para esta condição.

A antropóloga Margaret Pollak, pesquisadora e professora da Indiana University NorthWest, em sua pesquisa ricamente contextualizada Diabetes in Native Chicago: An Ethnography of Identity, Community, and Care (University of Nebraska Press, 2021)[2] estuda o diabetes em comunidades nativas urbanas como mostra o filme de Martin Scorsese.


Embora a maioria dos estudos antropológicos sobre diabetes em comunidades nativas tenham se concentrado em ambientes de reservas (como acontece com a Missão Yanomami em curso), Pollak volta a atenção para um ambiente urbano, documentando a experiência, o cuidado e a compreensão do diabetes nas comunidades nativas. Com base em meses de pesquisa etnográfica com a população indígena entre 2007 e 2017, Pollak considera a relação recíproca entre cultura e saúde, dando uma contribuição admirável.

Ela mostra como o diabetes é determinado pelo que os membros da comunidade observam nas experiências da doença entre familiares e amigos, e não é tão somente uma doença física, mas social. A relação entre a cultura hominídea e biológica é recíproca. Na comunidade indígena pesquisada descobriu-se: os elevados custos financeiros e de tempo dos cuidados de saúde; falta de reconhecimento e/ou resposta aos sintomas agudos aos níveis elevados de glicose; priorização de outras responsabilidades cotidianas; desconfiança na medicina praticada; e, visões fatalistas sobre o desenvolvimento e prognóstico da diabetes.

Para reduzir as taxas de diabetes e suas complicações relacionadas a essas populações nativas, ela aconselha que reformulemos nossa visão de quem são os povos indígenas e o que a epidemia de diabetes significa nessas comunidades, e considerar a partir daí como desenvolver as melhores soluções para o cuidado dessas populações.

Um ponto forte que ressalta é a atenção às práticas aparentemente mundanas de cuidado que ela encontrou durante a pesquisa de campo com a comunidade nativa, por exemplo, de comparecer a consultas, fazer compras, cozinhar, administrar medicamentos (um nó explorado em Assassinos da Lua das Flores por Martin Scorsese), fazer exercícios, fazer dietas para diabetes quando não diabético, lembrando os pacientes sobre os alimentos, observando os sinais de hiperglicemia em outras pessoas, fornecendo educação e aconselhamento e considerando as necessidades de dieta para eventos comunitários maiores, e seu consistente destaque às vozes das pessoas. O envolvimento da pesquisa com os estudos históricos e antropológicos existentes (como no livro e no filme Assassinos da Lua das Flores) também destaca como as perspectivas e experiências das comunidades não existem isoladamente, convergindo de forma significativa com as comunidades indígenas de outros lugares. Em última análise, a pesquisa oferece um estudo etnográfico matizado e profundamente contextualizado sobre o diabetes com nativos e nativas, que será de interesse para a cidadania que procura aprender sobre a Missão Yanomami e a relação dinâmica entre saúde, doença e os mundos sociais e culturais em que vivemos.

 

23 de novembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Agradeço ao amigo biólogo espanhol José Félix Rodríguez Antón que me apresentou essa referência.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 026 - COMO O BEATO JOSÉ MARIA GESTOU JAVIER MILEI?

Último Tango em Buenos Aires


Não fique pensando no que aconteceu,

no que não aconteceu, senão, vai ter mil passados e nenhum futuro.

(Citação de O Segredo dos Seus Olhos)

 

Por Vagner Gomes de Souza

 

Sem uso de manteiga os argentinos acordaram hoje numa aventura de atração pelo perigoso extremismo de Javier Milei. Ensinou-nos Bernardo Bertolucci que esse relacionamento anônimo perderá controle. Os seguidores de Macri, distantes do que um dia foi a União Cívica Radical, muito se arrependerão diante dessa nova versão da americanização dos pampas.

A política na Argentina está em transe uma vez que o centro político muito pouco se fez presente na apresentação de um programa político. E o segundo turno foi um debate sobre o equilíbrio emocional. Mas, o que esperaremos de uma sociedade que convive com um Coringa a procura de uma Arlequina. E temos a ideia de liberdade dos antigos diante de uma emancipação fantabulosa.

Fantabulosos são esses Hermanos que tem em seu território um território chamado “Fim do Mundo” como lembrou uma vez o Papa Francisco. Fantasmas da hiperinflação e de um kirchnerismo próximo ao abismo da renúncia de dialogar com o princípio da Frente Democrática. Apesar de Argentina, 1985 ter feito muito barulho na mídia brasileira com seu tom de ressentimento às avessas, lembremos que Oscar de Melhor Filme Estrangeiro os argentinos ganharam por História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009). Filmes que se ampliaram para o campo democrático em momentos políticos significativos.



Enfim, aguardemos as possibilidades de dialogo ainda abertas como assinalou o presidente do Chile, que sente uma reversão política das expectativas em seu país. Já se assinala que uma Internacional de Extrema-Direita está muito bem articulada nas redes sociais e que tem um forte apelo de mobilização na juventude em cada país. Dos jogos em celulares passando pelos aplicativos de sucesso e empreendimentos até chegar a militância antipolítica. Temos um cenário muito aberto para que novos sujeitos políticos venham a emergir com faixas etárias menores, pois a acupação política do Estado a ser desmontado é uma possibilidade para que esteja na geração “Nem Estuda e Nem Trabalha”. Acrescentariam o terceiro Nem (Nem Programa).

Sem o doce de leite dos alfajores, abre-se uma nova etapa na Argentina de Sarmiento que fez a crítica ao caudilhismo em Facundo. Vamos acompanhar e ajudar naquilo que for comum no conjunto do Sul da América para que não haja uma instabilidade maior nas “Terras do Sul”. Em breve novas eleições ocorrem na Argentina para renovar parte do Congresso Nacional e tudo dependerá das forças políticas democráticas estarem atentas aos números da economia com a desigualdade social agravada aos efeitos da emergência climática.

Duas Guerras tortas (Ucrânia e Faixa de Gaza) estão deixando a Democracia no mundo sem condições de respiração. Itália foi um primeiro sinal. O Paraguai emergiu um obscuro político que faz um discurso cheio de xenofobia contra os brasileiros. A celebrada vitória na Colômbia gradualmente vira um pesadelo. E teremos eleições norte-americanas em menos de 12 meses aonde Trump com inúmeros processos não perde capital eleitoral.

No Brasil, os especialistas em eleições nas diversas franquias que se dizem de esquerda parecem estar de bruços para a chegada de algum Marlon Brando. Não se atenta ao som dos Helicópetros UH-1 Huey (usados na Guerra do Vietnã) que antecipam as rajadas das metralhadoras ao som das Walquírias. O “modus operandi” das redes sociais deixam em germinação as sementes das heras venenosas que serão colhidas nas eleições municipais. Não se pode fazer encontros tranquilos e defender Frente de Esquerda nas capitais brasileiras depois do que houve na Argentina. Não ampliamos a margem da vitória acidental de 2022. Sejamos mais cautelosos com as movimentações pré-eleitorais diante de uma sociedade que não se considera atendidos nas demandas mobilizadas em campanha sem debate programático. Tem muitos ajudando a empurrar o eleitor de Centro-direita para os braços do extremismo. Porém, temos estrategistas distantes da realidade que esnobaram Damares, Mourão, Moro e outros nomes como viáveis eleitoralmente na disputa ao Senado.

 A realidade foi outra. Não há autocrítica sobre as eleições ao parlamento pois fazem uma métrica colorista ou de gênero. Na verdade, como o Aipim de Santa Cruz e outros lugares a mandioca cresce para baixo junto com os defensores da Frente de Esquerda. Assim que o som do samba tiver atravessado a Avenida e os blocos de rua, teremos o fim dos efeitos da fortuna. A ausência de um Partido Republicano e Democrático se faz sentir. Então, a serenidade se faz necessária para evitar o efeito Orloff.


sábado, 18 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - EDNEY SILVESTRE E O TEMA DOS INTELECTUAIS


OS EXAMES CRÍTICOS DA MODERNIDADE

Isabella Souza da Silva

 

    Nos acontecimentos recentes no cenário internacional, assistimos lamentavelmente a invasão do braço armado do Hamas a Israel e toda a barbárie consumada pelo grupo através de uma tela do outro lado do continente contra a vida de civis. Juntamente as superficiais tentativas da ONU e dos ademais países de intervirem nesta guerra unilateral. Isto porque, o pedaço de extensão territorial da Palestina doado ao estado de Israel pela ONU em 1947, propiciou a hostilidade em que os palestinos eram e são tratados pela "Terra Santa".

No livro Constestadores, elaborada pelo excepcional correspondente internacional e escritor Edney Silvestre, que redigiu uma coletânea de entrevistas de forma erudita com os intelectuais mais renomados das últimas décadas. Seriam contestadores do senso comum. Por exemplo, uma desses entrevistados foi feita com o tempestuoso palestino e professor da universidade de Columbia, Edward Said, em 1997, que mencionou sobre a sua família tornasse refugiada no Egito, e o Said argumentar que: "Israel existe porque a Palestina foi destruída". Essa ponderação direta ganhou destaque na página de sua entrevista.


Logo em seguida, no mesmo capítulo, veio a complementação da interlocução do indiano Salman Rushdie. O homem responsável por escrever "Versos Satânicos", a obra que enfureceu o governo Irariano por razões igualitariamente religiosas. Fundamentalmente, na introdução no início da página desta entrevista, Silvestre detalha a atribulação que passou ao lado de Rushdie para conseguirem um ambiente seguro para a entrevista. Percorrendo estradas e realizando diferentes ligações até chegarem ao Bard College, com seguranças rodeando o Campus.

Essa não deve ter sido a situação mais distinta de sua carreira, entretanto, para quem ler o livro se impressiona por seu comprometimento e empenho de concluir este trabalho. Em dada circunstância do diálogo, Edney Silvestre o questiona como ele veria o papel da literatura com a aproximação do milênio, tendo como resposta que: "O papel do intelectual é falar a verdade ao poder, aos que detêm o poder. Sobretudo que hoje somente há uma superpotência mundial”.

   Em todas as vinte entrevistas exploradas minuciosamente por Edney Silvestre, ele usou de sua sensibilidade e ética para extrair os pensamentos mais ousados de seus entrevistados; isto fez o livro ser dividido em cinco conjuntos nomeando as personalidades como boxeadores, tempestuosos, cordiais, militantes e visionários. Todas mostrando suas diferentes concepções do mundo.

    Recentemente "Constestadores" ganhou uma edição comemorativa das duas décadas do lançamento da obra. Acrescentaram duas entrevistas inéditas com o visionário José Saramago que em poucas páginas destacou sua vida pessoal e deu uma aula vanguardista sobre cultura e política. E a imortal e cordial Fernanda Montenegro.

No princípio da página referente a atriz,  Silvestre expressa sua profunda admiração de décadas pela Arlette Torres, popularmente conhecida como Fernanda Montenegro. De forma nostálgica, ele detalha sua experiência satisfatória de tê-la conhecido por si próprio em Nova York em sua indicação ao Oscar de melhor atriz pelo filme rico em cultura "Central no Brasil".

Cada um dos diferenciados pontos de vista dos estrelados assinalados em uma página branca causa, por vezes, o sentimento de estranheza e outros provoca curiosidade pelas próximas folhas; como o de Paulo Freire que destacou: "O analfabetismo, no fundo, esconde uma proibição que é uma proibição de classe social".

Embora nem todos tenham feito previsões que tivessem acertos bem como de Paulo Francis que afirmou a Edney, em 1994, que não seria possível o Lula torna-se presidente do Brasil, e atualmente, 29 anos depois estamos vivendo em seu terceiro mandato.

O livro possui sua relevância educacional por tratar de temas contemporâneos, abordando cultura e geopolítica. Portanto, sua leitura de fácil entendimento ajuda a formação do senso crítico.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O PRIMEIRO FREVO EM PARIS


Gilberto Freyre com intelectuais franceses e Mario Pinto de Andrade (1956) 

Casa-Grande & Senzala no Pós-Segunda Guerra Francês

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França, de Cibele Barbosa Calvino (São Paulo: Global Editora, 2023)

 


Aqui está uma bela obra sobre Gilberto Freyre oferecida às leitoras e leitores pela historiadora Cibele Barbosa, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco do Recife. Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França é um livro chave para compreender a riqueza das relações intelectuais que marcaram o período 1950-1970 entre a França e o Brasil e não só. O livro é fruto da sua tese de doutorado defendida em 2011 perante a Universidade de Paris-Sorbonne e vencedor do 1º Concurso Internacional de Ensaios - Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021.

A riqueza da obra aparece antes de tudo no lugar dado pela historiadora a abordagem que situa a grande obra de Gilberto Freyre na diversidade do pensamento social brasileiro. Mas a sua principal fortuna está na descrição da rede de sociabilidade estabelecida entre Gilberto Freyre e os intelectuais franceses como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Roger Bastide entre outros que saudaram a moderna escrita da história. Ao conhecerem a obra de Gilberto Freyre publicada no Brasil em 1933, Casa-grande & senzala é uma revelação para os intelectuais franceses que notavelmente integraram essa elaboração da formação da sociedade brasileira, essa civilização em seus conhecimentos da história. A recepção da obra de Gilberto Freyre tem como ponto de partida trocas intelectuais com os franceses.

No prefácio de Lucien Febvre a sua obra-prima na primeira edição francesa de 1952, ele revelava uma ironia fina ilustrando que o livro devia ser lido observando-se que o Brasil é uma terra de histórias podendo ser confrontado com as da Europa, só que naquele momento a comparação teria como base o modo pelo qual cada sociedade lidava com a relação entre diferentes grupos étnicos e culturais. Desse modo, a Europa daquele tempo terminava por ser descrita, numa forma própria à Rabelais (que Mikhail Bakhtin apresentou), como obcecado pela possibilidade de se construir um ideal de civilização incorporadora, visto que como dirá Febvre, “Agora, o branco se aflige. Tateia. Hesita. E, prisioneiro de sua reverência por tudo aquilo que pensou, construiu, inventou e realizou, não consegue oferecer a esses homens revoltados contra uma civilização da qual se sentem estrangeiros outra coisa senão invenções de branco, criações de branco que ele insiste em chamar de 'progresso'. Panem et circenses!”

Esta tradução, publicada sob o título de Maîtres et esclaves: la formation de la société brésilienne em 1952 na famosa coleção La Croix du Sud dirigida por Roger Caillois é devida ao filho de Xangô Roger Bastide que conhecia bem o Brasil. Em 1938, Roger Bastide saiu de França para lecionar na nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, onde Fernand Braudel também lecionaria. A partir daí, o Brasil é reconhecido pelos franceses como uma terra de história.

Mas o trabalho de Gilberto Freyre também deixou obviamente a sua marca em outros intelectuais como Georges Gurvitch que orientou as teses de doutorado de Roger Bastide, Jean Pouillon e Jean Duvignaud, bem como em Roland Barthes.

Quatro anos depois, em 1956, a obra de Gilberto Freyre esteve no coração de uma conferência de Cerisy. A questão da racial no ambiente do pós-segunda guerra e de reposicionamento do tema nas democracias foi então debatido nessa comuna francesa e essas discussões também animaram a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em França surge então a questão do império colonial nascido com Napoleão, particularmente no continente africano, estando a experiência da Indochina na Ásia longe de resolução. E a questão do império colonial francês na África é então objeto de controvérsias entre os atores da vida política francesa por conta da comparação também com a dos impérios ibéricos. Um conceito de Gilberto Freyre que povoou as mentes francesas foi o de lusotropicalismo. Com isso a recepção da obra de Gilberto Freyre chegou para além da França na África, onde a revista parisiense Présence Africaine publicou, em outubro-novembro de 1955, um artigo do ativista angolano Mário Pinto de Andrade: “O que é o lusotropicalismo?" O futuro presidente do Movimento Popular da Libertação de Angola (MPLA) critica a mobilização deste conceito pelos integrantes da ditadura portuguesa de Salazar. Os ativistas do Congresso de Escritores e Artistas Negros realizada em Paris, no anfiteatro Descartes da Sorbonne, por iniciativa do senegalês Alioune Diop e da revista Présence Africaine vão se opor a essas e outras apropriações de Gilberto Freyre.

Mas não há duas leituras da recepção da obra do nosso gênio da raça: a de Casa-Grande & Senzala, que fascinou os historiadores Lucien Febvre e Fernand Braudel e que se difundiu entre o pensamento social francês, graças a Roger Bastide, professor na Sorbonne desde 1958; a do “lusotropicalismo” de Salazar e os seus que os ativistas da revista Présence Africaine criticaram duramente em favor da democracia que marcou e marca a vida política francesa desde o nascimento do seu império colonial.

Nessas inúmeras qualidades, Cibele Barbosa traz uma nova perspectiva sobre este período das relações franco-brasileiras, franco-africanas e afro-brasileiras entre outras, e com este trabalho lança uma nova luz sobre Gilberto Freyre nos 90 anos de Casa-Grande & Senzala.

 

13 de novembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


sábado, 11 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LIÇÕES DE BAKHTIN AO CINEMA BRASILEIRO

 

Mussum, a Frentis

Em memória de Luciano Leal dos Santos (Mangueirense, Flamenguista e meu tio)

Por Vagner Gomes de Souza

O filme “Mussum, o filmis” timidamente ganha espaço no imaginário popular uma vez que foi bem em sua primeira semana de estreia no décimo primeiro mês do governo Lula/Alckmin. Se o filme é tecnicamente perfeito, destaquemos que é muito mais que isso se for avaliar sua contribuição cultural do frentismo democrático. Uma vez que Antonio Carlos Bernardes Gomes era um sambista e humorista que fez as pessoas rirem com as mudanças linguísticas. Além disso, ocupou o “lugar de fala” do cidadão comum brasileiro, ou melhor, o carioca que torcia pela Mangueira e o Flamengo.

O roteiro acertou em fazer uma biografia com humor pelo que representou o biografado em sua carreira em Os Trapalhões. Essa opção incomodou algumas vozes que desejavam um Marighella no humor. Porém, não há atalhos no roteiro muito bem dirigido por Silvio Guindane. E, aqueles que conhecem um pouco de história da cultura pecebista irão reconhecer como a ascensão do “peixe preto” (referência ao apelido Mussum dado por Grande Otelo) esteve nas margens desse amplo arco de alianças que veio a formar depois a Frente Democrática nos anos 70/80.

As cenas do programa Os Trapalhões que foram reencenadas com o elenco do filme demonstram uma mensagem muito importante que é possível vencer a ignorância na política através do riso. Uma vez que fazer humor com militares em plena Ditadura Militar não é um gesto de alienação e as camadas populares riam de um Sargento autoritário que era zombado desde seu apelido de Pincel. O público testemunhou nomes como Maria Bethânia e Ney Matogrosso serem parodiados por esse programa. E, no filme, a canção Morena de Angola (1980) aparece como uma bela sinalização dessa postura de Frente. Aliás, Os Saltimbancos Trapalhões é de 1981 que tinha, entre os diversos roteiristas, Teresa Trautman[1], mas, se fosse nos dias atuais, os inquisidores das redes sociais comentariam sobre o passado do Diretor J. B. Tanko.

Logo, não podemos permitir que Mussum, o filmis seja “cancelado” por juízes da opinião sectários por não haver uma crítica incisiva ao nordestino Renato Aragão. Ou por achar irrelevante, a aparição de outro personagem do humor brasileiro com parentes “fichados” no DOPS, Chico Anísio. Observamos um potencial para fazer nesse filme a oportunidade de reencontrar a juventude atual com o ensinamento de que nada se faz pela via do individualismo.

O filme é uma oportunidade para fazer um segmento popular sorrir sem ser necessário que julguemos o sentido das piadas. Na verdade, aquilo que tentam sugerir que falta no filme poderíamos dizer que foi um acerto em não aparecer, pois o momento é de buscar “pontes” na sociedade de uma forma plural. E sentimos saudades da Elza Soares dos tempos do Presidente Trabalhista que assiste ao seu Show junto com os Originais do Samba. Saudades do Jorge Ben antes de acrescentar o Jor. Entretanto, não é um filme saudosista que assistimos no cinema. Digamos que é um humor refinado ao nível de Mikhail Bakhtin uma vez que rechaça a via de mão única das chamadas “narrativas” e a rigidez das reflexões biográficas. Reivindica a ambivalência, como um discurso carnavalesco. Uma ampliada frente de interpretações de muitos personagens envolvidos e dialógico.

Refundar um personagem contraditório foi o desafio muito bem feito na atuação do ator Aílton Graça. Depois de Majestade – personagem do filme Carandiru (2003) – essa é sua atuação mais marcante, pois parece ter o humor e o samba em seu “DNA artístico”. Seu amadurecimento acompanha também o de muitas forças que integram a frente democrática naquilo que o pensador Gramsci chamaria “revolução passiva”. Além disso, as classes subalternas nesse país deram voz aos negros tanto no samba quanto no humor. Não podemos deixar que essas possibilidades se perdessem. Nessa perspectiva o esse é um dos filmes mais ousados no cinema nacional desde Medida Provisória de Lázaro Ramos que tinha uma canção de Cartola (personagem que aparece em Mussum, o filmis).



[1] Com “Os homens que eu tive”, Trautman tornou-se a primeira diretora de cinema a filmar a partir de um ponto de vista estritamente feminino, abordando a liberação do corpo da mulher.

 


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 025 - A "GRANDE POLÍTICA" CONTRA A MORTE SÚBITA

Cena do filme Ensaio sobre a Cegueira (2008)

Olha, vê, repara

Pelo Novembro Azul

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Além das definições patológicas para as diversas formas de má visão, os dicionários fornecem outra: quando existe a incapacidade de ver coisas que são muito claras e fáceis de entender ou de perceber com perspicácia sobre algum assunto. Isso é o que chamamos de má visão intelectual.

Essa característica costuma ser muito comum na política e afeta especialmente aqueles que ocupam posições dos extremos, seja à direita seja à esquerda. As causas dessa má visão parece ser a postura obtusa advinda do olhar doutrinário, as convicções de verdades absolutas que acreditam possuir, o desprezo por certa relatividade típica das regras democráticas e uma surdez crônica face às diferentes opiniões que consideram filhas do erro. Se junta a má visão a má audição.

Estas causas agravam-se quando, por estados de espírito normalmente efémeros, obtêm uma grande votação como normalmente acontece com o voto volátil e emocional que ocorre na nossa sociedade da informação.

Foi o que aconteceu com a avaliação bem ponderada apresentada ao Congresso Nacional na precisa alusão a Frente Democrática que num passe de mágica e influenciado por uma ideologia da reconstrução, para um uso falacioso da Frente Ampla alimentada por uma visão fabulosa da heterogeneidade original. Tudo isto produziu uma formação governamental muito tendenciosa a favor de uma visão identitária e turbulenta, pouco afeita a negociar e dotada de uma expressividade agressiva e cansativa à qual se submeteu certa esquerda, que faticamente caminha com passos de formiga pelo seu viés das reformas apesar do progresso que representou para o país.

Como bem sabemos, a estória da Frente Ampla tem oportunizado uma série de erros cometidos até aqui pelo governo como tem reconhecido Lula bem como uma sequência de derrotas que já colocou na berlinda o projeto de lei orçamentário de 2024 apresentado, entregue por aqueles de nós que sabemos ser este texto não o resultado de uma epifania que enfraqueceria a reforma do sistema tributário e colocaria em jogo a possibilidade de retomar no futuro o caminho das reformas serenas que podem mudar a face do Brasil como sugeriu o informe da Conferência das Nações Unidas (ONU) para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) para nosso crescimento acima da média mundial em 2023. É claro que os setores conservadores dos extremos também se opuseram sem, felizmente, fazer muito barulho.

Inicia-se então um segundo processo ora em curso de novas dinâmicas dignas de um Angus Deaton, em preparação de forma intuitiva, mas onde se procura uma solução consensual, uma caminhada que possa se fazer aprovar nos moldes das três emendas constitucionais pré-natalinas de 2022. Tudo foi muito bom, impecável à época, só que desta vez estamos sem o voto popular que só voltará à cena em 2024. O voto inconstante virá e os seus humores ainda são insondáveis.


Livro de Angus Deaton em aguardando tradução no Brasil após A Grande Saída (2017) ficar indisponível


Na sequência ao anúncio do Fundo Monetário Internacional (FMI) da previsão de que o país vai fechar 2023 como a 9ª economia do mundo convergindo assim com as boas novas da UNCTAD, veio mais um alarme quando da rejeição da indicação para a Defensoria Pública da União (DPU) onde se insinuou que a esperança se situa nos acordos prevalecentes para gerar um contexto equilibrado, porque como bem sabemos que não foi, nem é, a bonomia política que caracteriza a era dos extremos.

Por isso o processo de negociação subsequente esteja sujeito a altos e baixos, idas e vindas, a despeito de muitas promessas não cumpridas na íntegra, não se gerou desconfiança e os posicionamentos partidários seguem firmes. Embora houvesse concessões e algumas flexibilidades, estas foram em grande parte insuficientes.

A centro-direita está tentando desempenhar um papel mais moderado. Está claro que não cometerá o mesmo erro que a centro-esquerda cometeu em relação à esquerda radical, ou seja, de abandonar a sua autonomia política e a de abraçar uma posição subordinada em relação à direita radical. A Frente partidária no poder que precisa se assumir Democrática, por seu lado, ainda não teve a flexibilidade necessária para alcançar melhores equilíbrios. A combinação de todos estes fatores conduziu-nos a uma situação desconfortável, cujo resultado não é fácil de prever e cujos fundamentos são indefinidos.

Ainda mais numa situação mundial que atravessa uma fase triste e tumultuada, com uma economia global de baixa prosperidade e uma geopolítica que mostra duas guerras entrelaçadas e em expansão, com um sistema intergovernamental deteriorado. Apesar de tudo, os tempos do réveillon e da folia carnavalesca estão chegando. O Brasil é obrigado pelas suas características a conter os seus conflitos internos, a reduzir as suas divisões, a gerar acordos que lhe permitam retomar o desenvolvimento e o caminho do bem-estar social sem tempos de raiva.

Em todo o caso, é necessário não dramatizar as reformas econômicas. Não há aqui nenhum perigo irreparável em jogo que possa mudar substancialmente a democracia brasileira. Pensar assim seria adotar mais uma espécie de fetichismo da vez nesses tempos repletos deles. Qualquer que seja o resultado negocial, o governo deve concluir este ciclo de reformas de acordo com o que foi decidido pelos cidadãos em 2022 e entrar plenamente no avanço das respostas às muitas necessidades não resolvidas da população. Acima de tudo, não fique tentado a dar ouvidos aos espectros que gostariam de produzir um novo pandemônio (um lugar de muito barulho e confusão) criando um habitat perfeito para o Brasil não avançar.

 

5 de novembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.




terça-feira, 24 de outubro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - ITALO CALVINO E OS LEITORES INVISÍVEIS


 

Um século do escritor que redigiu mundos

 

Para Benjamin, o anjo da história

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985), de Italo Calvino (São Paulo: Companhia de Letras, 2023)

 

É conhecida a anedota entre Jorge Luis Borges e Italo Calvino – que este ano completaria 100 anos – durante o Curso de Literatura Fantástica organizado por Jacobo Siruela e realizado no Hospital dos Veneráveis de Sevilha em 1984. Borges estava no hotel quando chegaram Italo Calvino e sua esposa, a argentina Esther Judith Singer (Chichita). Os dois compatriotas começaram a conversar e depois de um tempo Chichita disse a ele: “Borges, Italo também veio...”, ao que ele respondeu: “Reconheci-o pelo silêncio”. Pois bem, essa pessoa muito quieta e invisível – Um homem invisível é o título do documentário dirigido por Nereo Rapetti em 1974 sobre a vida de Calvino em Paris – se abriu, tanto pessoal quanto literariamente, em inúmeras entrevistas realizadas ao longo dos anos. Mais de trinta anos e publicadas em diferentes meios de comunicação. A editora Companhia de Letras, que desde a sua criação fez de Italo Calvino uma das suas marcas, reuniu estas entrevistas esclarecedoras em Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985).

É difícil afirmar a que gênero pertencem as peças de Nasci na América, seja jornalístico, biográfico, de crítica literária ou tantas outras possíveis. De qualquer forma, os livros de entrevistas geralmente mostram melhor as ideias e a personalidade do entrevistado – com as inevitáveis ​​reiterações – do que os de artigos e ensaios de crítica acadêmica e não só. Têm ainda a vantagem de nos permitirem apreciar com clareza o desenvolvimento pessoal e da escrita do entrevistado ao longo dos anos. Naturalmente, de fundamental importância nestas conversas é o papel da entrevistadora e do entrevistador, as suas perspicácias na seleção das perguntas e nas suas capacidades de extrair informações e opiniões do protagonista, nesta experiência Italo Calvino.

De Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985) - (Companhia de Letras, 2023), acompanha a edição original italiana que contém essa centena de textos organizados cronologicamente e compilados por Luca Baranelli, nitidamente voltados para a literatura e aspectos biográficos de Calvino, e distribuídos conforme a data de sua publicação. Um índice onomástico de nomes ao final do volume ajuda a localizar o grande número de personagens (principalmente escritores) que aparecem nessas conversas. Claro está que por baixo da sua simplicidade e modéstia ("Tenho sempre dificuldade em exprimir-me, quando falo e quando escrevo"), Calvino era um homem de grande complexidade - como na época em que viveu - e muito rigoroso nas suas criações. Isso fica evidente nas respostas às perguntas feitas: Calvino tem ideias claras e nunca divaga, suas respostas são concisas, esclarecedoras e sempre expressas com precisão. O último volume desse naipe entre nós foi o livro Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual, do cientista social Luiz Werneck Vianna. A obra de 2018 é uma coletânea de entrevistas realizadas desde o início dos governos do PT-PL, PT-Republicanos e PT-MDB, a partir de 2003. O Gramsci que embala esse volume também é citado por Calvino.

Aliança PT-PL (2002)

Embora não seja habitual este tipo de compilação, interessa observar como as reiterações ocorrem com determinados temas e questões. Daí ser aconselhável ler essas entrevistas aos poucos, de forma tranquila e serena, como livro diverso que é. Quanto ao conteúdo, logicamente há mais falas de época e circunstâncias de Calvino do que aqueles feitos em sua juventude ou após a publicação de suas primeiras obras. De toda forma, é possível acompanhar com algum rigor a biografia de Calvino, desde a infância e juventude passada em San Remo, a sua militância na Resistência, a sua trajetória no Partido Comunista ("Eu era livre antes e sou livre agora"), o longo período de vida em Paris, o regresso parcial a Itália (Roma), os sucessos das suas últimas obras (curiosamente, as mais experimentais) e os anos de envelhecimento.

Todo o volume está repleto de informações, mais ou menos desconhecidas do público em geral. Por exemplo, numa entrevista fala-nos do seu grande amor pelo cinema - já foi membro do júri do Festival de Veneza - e que abomina a dublagem em filmes ("A dublagem parece-me uma barbárie sem sentido e não entendo como ninguém jamais se revoltou." Quanto às repetidas questões sobre a bipolaridade da sua obra literária (realista e fabulosa), Calvino justifica-se dizendo que “vivemos numa civilização literária baseada na multiplicidade de línguas”. Calvino é um leitor de múltiplos interesses, incluindo astronomia como também fora Adam Smith ("Sou um leitor onívoro"), mas admite que seus escritores favoritos foram Ernest Hemingway e Joseph Conrad em seus primeiros dias, e mais tarde Poe, Queneau, Nabokov, Kawabata, Valéry, entre outros. Ele é franco quando fala de si mesmo (“Escrevo porque não tenho capacidade de falar”) e respeitoso quando fala dos outros. Sobre o seu conhecido interesse pelos contos tradicionais e de fadas, declara: “Penso que os contos de fadas correspondem a necessidades profundas de aprendizagem emocional e imaginativa: não é em vão que se diz que estão relacionados com ritos de iniciação”. Do ponto de vista da crítica literária, os textos mais interessantes são aqueles que dizem respeito à sua concepção de arte narrativa, o seu desenvolvimento como escritor e à sua forma de trabalhar. Também as entrevistas dedicadas monograficamente a alguns dos seus livros são de grande interesse para os leitores, especialmente as suas últimas obras:  Os nossos antepassados, As cosmicômicas, Marcovaldo, As cidades invisíveis (o livro com o qual se sentiu mais satisfeito), Se um viajante numa noite de inverno e O castelo dos destinos cruzados. Claro que também reflete sobre Borges e o diálogo que manteve com ele: «É um autor que me interessa muito e que comecei a ler desde o momento em que se tornou conhecido na Europa. Imediatamente senti uma afinidade com seu gosto. Por exemplo, a sua inclinação para a construção geométrica na narração e no raciocínio, a transparência da sua expressão […] Pode-se dizer que Borges pertence a uma constelação de escritores deste século com uma espécie de inteligência fria.” Essas e muitas outras curiosidades são encontradas em Nasci na América, descrito pelo recém-falecido escritor italiano Pietro Citati, como “um livro lindo, inteligente e muito agradável, que fascinará muitos leitores”.

Não há melhor forma de celebrar o centenário de nascimento do Mestre do que mergulhando na sua personalidade e nas suas preocupações. Por esta razão, Nasci na América é um volume essencial que nenhuma leitora e leitor deve perder.

 

17 de outubro de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LIÇÕES DA POLÍTICA DE FRENTE DEMOCRÁTICA AOS HERMANOS

A Argentina no Divã

Dedicado ao trabalho de Edward Said e Amós Oz

Por Pablo Spinelli


Sugerimos que assistam ao vídeo antes da leitura.

Torna-se raro nos dias atuais encontrarmos uma produção escrita de forma leve para temas complexos e do mundo das coisas reais. É assim que lemos o livro ¿QUE PASA, ARGENTINA?: História, política, manias e paixões dos nossos hermanos, Editora Globo, 2023, da jornalista Janaína Figueiredo.

Como destaca a autora, os brasileiros acham que conhecem a Argentina tal como supõem que sabem falar espanhol. Ledo engano. O prefaciador, o embaixador Marcos Azambuja, tece loas à grandeza do país, seus recursos naturais, o nível educacional e cultural do povo, um país com cinco Nobel, dois Oscar, logo, a pergunta: por que a Argentina não deu certo? A capa com figuras míticas do país em plena desordem é uma pista.

O livro vai tratar dos problemas, das manias, dos acertos, dos descaminhos argentinos pelo olhar de uma pessoa que desde a infância convive no país, tem laços familiares e de profunda paixão com a Argentina, mas que não evita um olhar distanciado e crítico numa obra de uma filha apaixonada pelo pai e seu trabalho, o grande jornalista Newton Carlos. O objeto do livro é consequência da importância desse país que nos faz fronteira, carregado de tradições em comum – com adaptações locais – especialmente, no sul brasileiro, nosso terceiro parceiro comercial. Como o livro explicita, o que acontece em um país, reverbera no outro.

Ao olhar para a Argentina, o Brasil também se vê. Somos filhos do Iberismo que nos fundou a partir do herdeiro da Coroa Portuguesa. No caso argentino, há um Estado marcado por conflitos sangrentos entre unitaristas e federalistas, incessantes guerras civis num processo que se pacificou a partir da intervenção brasileira na região. O americanismo argentino foi duro, a discussão federalista muito difícil e custou muito sangue dos povos nativos, em especial da região da Patagônia, cristalizando um racismo bivalente que atribui à mestiça cantora Mercedes Sosa o título de “la negra”.  

A autora buscou em entrevistas com acadêmicos e representantes de governos diversos explicações para o país. Um país que é rico em grãos, carnes, gás e lítio e que convive com hiperinflação de décadas, calotes, desconfiança com o sistema bancário (similar ao que tivemos no Plano Collor), falta de créditos internos e muita, muita dependência de dólares combinada a uma política protecionista que subsidiou um parque industrial que está anacrônico e produtores rurais que preferem os dólares do mercado externo com o desabastecimento do mercado interno.

General João Batista Figueiredo (Brasil) e General Jorge Raphael Videla (Argentina): tempos da Ditadura

A autora nos permite um paralelo entre as transições democráticas em cada país. Generais foram julgados em 1985 no governo da transição de Raul Alfonsín, sendo que o mesmo presidente, pressionado, fez uma ampla lei que impossibilitou julgamentos posteriores; além disso, o nosso processo de transição não teve uma Guerra das Malvinas (evocada no filme “Um conto chinês”) que solapou a imagem dos militares com um banho de sangue argentino. Eis a pergunta: a falta de guerras civis sangrentas, uma quase anomia, uma guerra internacional com uma potência europeia (que levou a Argentina para uma derrota política, econômica e moral), faz da nossa história – a da ação, reação e transação; da revolução passiva – uma história menor e envergonhada? É bom lembrar que enquanto o General Videla estava no banco dos réus, no nosso cangote estava o General Leônidas Pires Gonçalves[1].

O livro não se furtou de falar de grandes problemas argentinos contemporâneos – o desgaste do peronismo (é uma bela introdução para entendermos que o peronismo tem muito mais a ver com uma igreja multifacetária do que com uma ideologia); o cansaço da sociedade com os partidos políticos; a perda de jovens para fora do país ou para as redes de criminalidade que crescem no país; a desvalorização da educação que trouxe a perda da memória do terrível legado que a ditadura militar (1976-1983) trouxe para os argentinos. Tal conjuntura leva a jovens e “descamisados”, termo eternizado pelo mito Evita Perón (que jamais disse “não chores por mim, Argentina”) a acreditar em uma figura que mistura vulgaridade, ressentimento e messianismo que é Javier Milei.

Milei é a encarnação da antipolítica, inspiração para o pastor presidente da série “Vosso Reino”, segundo a roteirista; o ataque tresloucado à “casta política”, a mesma que quer participar. Pelo livro de Janaína, vemos um país que tem seus aeroportos ocupados por desabrigados (pág. 35), cena impensável há três décadas. Milei é um fenômeno catapultado pelas redes sociais e que encontra força nos grupos da periferia da Grande Buenos Aires que passa a ser “contra tudo o que está aí”, e da elite econômica que, paradoxalmente, quer a dolarização de um país que já é dolarizado. A autora resgata que não é algo inédito na história do país quando destaca o que foi o Governo Menem, o peronismo mais à direita e de perfil neoliberal que vigorou naquele país. O livro traz à memória o menemismo e seus efeitos danosos para a Argentina.

O retrato de um país que vive no divã por conta da obsessão por terapia acaba por dizer que seu povo entende como de sua responsabilidade a cena contemporânea. As escolhas subjetivas são importantes, mas não respondem pelo cenário econômico e social argentino, pois lá como cá, não enfrentou a questão agrária e o Estado optou por assistencialismo ao trabalho, flertou com o fascismo antes, durante e após a guerra – com a criação do Dia da Lealdade Peronista - um típico labirinto de Jorge Luís Borges.

Ao mesmo tempo, após lermos sobre Maradona, Evita, Perón, Cristina, Néstor, Darín, Cavallo, Messi (que se recusou a abraçar Macri), cabe ao Brasil responder a uma pergunta: “como vamos ajudar a Argentina a passar pelo olho do furacão?”. O livro não explicita, mas há um norte. Esse sendero está na construção de uma Frente Democrática (como fizemos no calor da hora) com um programa de governo (que não tivemos) que inclua a juventude (que abdicamos, mas há uma Secretaria Nacional da Juventude a nos sorrir por aqui) e com uma pitada inglesa cuja presença está nos nomes dos times de futebol: “nada lhes prometo, a não ser sangue, suor e lágrimas”. Para o país do tango, nada como dançar sobre esse drama e dar um drible desconcertante na extrema-direita, nem que se ganhe por una cabeza, como nos lembra a canção feita por um argentino com um brasileiro.



[1] O general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015) foi nomeado Ministro do Exército pelo presidente eleito Tancredo Neves. Com a morte de Tancredo, foi quem garantiu a posse de seu vice, José Sarney, contrapondo-se ao que desejavam certos setores do exército, que pretendiam dar posse ao Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Sua fala famosa foi: "Quem assume é o Sarney". O senador do PMDB, Pedro Simon perguntara a Ulysses porque aceitara tão rapidamente a tese de Leônidas. O Sarney chega aqui ao lado do seu jurista. Esse jurista é o ministro do Exército. Se eu não aceito a tese do jurista, a crise estava armada’