90 Anos de Casa-Grande & Senzala
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Em 1981 Italo Calvino no ensaio Por
que ler os clássicos que acabou por dar título a um dos seus livros dirá: É
clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo,
mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
A história de como um clássico como
Euclides da Cunha se transfigurou em Casa-Grande
& Senzala de Gilberto Freyre merece esse ponto de partida das
comemorações de seus 90 anos, na sequência das comemorações dos nossos 200 anos.
Como seria doravante um personagem chave
de quem Gilberto voltaria a ele em Perfil de Euclides e outros perfis
(José Olympio, 1945), para se tornar o grande brasileiro debelador da civilização
brasileira.
A civilização brasileira também sofreu
uma alquimia em Gilberto e no Casa-Grande & Senzala desde a sua
primeira aparição em 1933, meses após da também estreia de Caio Prado Jr. com o
seu Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista da história
brasileira. A civilização brasileira que vive em seus grandes livros, além
de Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste:
Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem (1937), Ordem e
Progresso (1959) e Além do apenas moderno (1973) entre tantas outras, é uma
grande saga aberta.
É o mundo que também se resume e não só no
aforismo de Casa-Grande & Senzala: os antagonismos em equilíbrio,
a marca da nossa cultura política.
A civilização brasileira de Gilberto
Freyre consagrada ao longo dos anos, por outro lado, faz parte da grandeza
histórica do Brasil, aquele país que tateia seu caminho saltando de tempos em tempos:
da Independência à República.
A alquimia da civilização brasileira em
Gilberto não é menos grandiosa.
Em Casa-Grande & Senzala, a
escravidão é o animal imprevisível e violento que faz Gilberto pensar em nossa trajetória
e de como fizemos para que pudéssemos fazer valer o nosso compromisso
civilizacional de erradicá-la.
Esse compromisso que esteve presente desde
o nosso nascimento será de seus balizadores como Joaquim Nabuco e Euclides da
Cunha entre tantos outros que trabalharam pela Abolição. Para aqueles que
abraçaram esse movimento por algumas vezes avistaram a morte pela bala passar
por seus olhos. Não foi uma luta de apenas flores e votos como mostrou Angela
Alonso e outros estudos daquele momento em nossa história.
Claro está que quando Gilberto foi para
a Constituinte de 1946 e a Legislatura que nasceu da redemocratização no
pós-Segunda Grande Guerra, fez ele um mandato político de responsabilidade,
regido pelos valores da eficiência e de resultados, mas também foi também um mandato
político de convicção, capaz de soerguer uma fundação que carrega um dos nomes
de suas balizas éticas e morais, um quase político no seu dizer que escolheu a
cultura como espaço para exercer os seus poderes, e que só cresceu nessa área,
ligando culturalmente a sua cidade ao país e ao mundo, talvez como nenhum dos
seus outros filhos.
Por isso em nossa civilização, dadas as
condições herdadas da origem – uma
colônia de exploração portuguesa que logo recorreu ao trabalho escravo
–, os “caminhos para a civilização”, não nos foi natural e necessitaram da ação
pedagógica que nos trouxesse da barbárie às luzes do ideário do liberalismo
político do legislador da hoje bicentenária constituinte de 1823, na luminosa
análise de Euclides da Cunha em ensaio famoso Da Independência à República, do
livro À margem da história que se encontra na bibliografia de Casa-Grande
& Senzala.
Desta forma, o perfil de Euclides para Casa-Grande & Senzala é o símbolo
da nossa busca permanente da grandeza civilizatória.
Como se vê, a história de 90 anos desse clássico
indica a necessária volta a esta fascinante alquimia, que o faremos com o
passar do ano.
Rio, 15 de maio de
2023
[1] Presidente da
CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.