O Bicentenário da Independência e o arroz com
feijão da Democracia[1]
Ricardo José de Azevedo Marinho[2]
Onde a roda da fortuna
vai parar? Essa é uma permanente dúvida. Mas como entender ela? Claro que ela
implica numa suspensão voluntária e temporária do juízo para dar espaço e tempo
a alma para que ela coordene todas as suas ideias e todo o seu conhecimento.
A dúvida estimula o
discernimento e a reflexão sobre a reação visceral, imprudente e impulsiva.
Victoria Camps, a
filósofa espanhola nos diz em seu livro Elogio da Dúvida (Edições 70, Coimbra,
2021) que duvidar como diz Montaigne (1553-1592) é dar um passo atrás,
distanciar-se de si mesmo, não ceder à espontaneidade do primeiro impulso. É
uma atitude reflexiva e prudente. A regra do intelecto que busca a resposta
mais justa em cada circunstância.
Há aqueles que têm
grandes suspeitas das virtudes da dúvida, principalmente na política, veem um
divórcio entre a dúvida e a ação que consideram tarefa própria do político.
Torcem o nariz diante dela e acreditam que ela está destinada a provocar ações
sempre marcadas pela moderação e lentidão, quando não pela paralisia total da
ação.
Eles preferem à reação
emocional repentina, instantânea, a resposta forte e clara, mesmo que seja
grossa e grosseira. A abordagem categórica que se baseia em dizer “ao pão, pão
e vinho, vinho”, mesmo quando não é (e não há) pão nem vinho.
A dúvida não significa
paralisia da ação, ela abre a possibilidade de realizar uma ação fundamentada
que não elimina os erros, algo que não é fácil neste mundo onde todos buscam
certezas, mas que ajuda a reduzi-los.
Imagino que, ao
contrário, Vladimir Putin despreza a dúvida na política e seu desejo é
recuperar o espaço da Rússia Imperial. A única linguagem que faz sentido para
ele é a força, destruição e morte. Ele declarou que a Ucrânia não existia e
depois a invadiu. Mas a realidade é teimosa, a Ucrânia tem uma história antiga
e sofrida, é composta de diversos povos, de diversas línguas, passou por
grandezas e tristezas. Kiev que foi o berço da Rússia, a que mais tarde foi
submetida, mas acabou por optar por ser, no final do século XX, voluntariamente
em Estado-Nação. Uma estrutura democrática foi estabelecida e, contra todas as
probabilidades, resisti ao que deveria ter sido uma ocupação relâmpago. O que
os une, o que lhes deu essa tremenda força? Claro, sua longa existência
histórica.
A Ucrânia é uma
democracia perfeita ou mesmo bem-sucedida? Não! Basta ver seus números, tem
muitos problemas e iniquidades, mas estão unidos pelo desejo de liberdade e democracia.
Vejamos o debate (ou
seria a ausência dele?) até agora sobre o bicentenário do Brasil. Praticamente
ele se encontra com pouquíssimo espaço para o pluralismo, substitui a dúvida por
convicções identitárias e ideológicas que se apegam a um único eixo discursivo
de acordo com a conveniência. O evento envolvendo a Medalha Biblioteca Nacional
- Ordem do Mérito do Livro, em alusão ao Bicentenário da Independência do
Brasil (1822-2022), constituiu, lamentavelmente, mais um triste episódio.
Ler a história do Brasil
de forma tendenciosa, onde apenas dominação, abuso e humilhação parecem ter
existido é negar o que de melhor a historiografia produziu. É claro que isso,
dolorosamente, existiu e está nela, mas também nesses duzentos anos foi criado
um tecido social extremamente complexo e mestiço. De tudo isso, surgiu uma
poderosa miscigenação, que moldou o nosso Estado-Nação com um valioso poder sincrético
cultural.
Tivemos a vantagem
histórica da emancipação numa "revolução sem revolução" no rico
conceito de Gramsci (1891-1937) e da criação de um Estado laico, em que, embora
subsistisse o patrimonialismo, ao mesmo tempo e de forma sobreposta, as ideias
do Iluminismo e da Ilustração tiveram seu reconhecimento.
Os povos originários graças
a eles e aos intelectuais se juntaram a eles como o Marechal Rondon (1865-1958),
Darcy Ribeiro (1922-1997) e tantos outros persistem no Brasil, aliás, com seus
direitos, suas línguas, seus costumes, seu valor cultural e seus próprios
espaços de desenvolvimento que seguem sendo reconhecidos. Mas o processo de
miscigenação foi enorme, foi reforçado pela migração de várias latitudes planetárias
nos séculos XIX e XX, e continua sendo reforçado pela migração ibero-americana e
de outras paragens no século XXI. Não há cidades puras no Brasil. Ninguém pode
reivindicar pureza em nosso país.
Então temos algumas dúvidas,
mas não devemos ter, porém, sobre a existência de multiculturalismo e
multietnicidade neste país mestiço.
Não estamos no caminho
certo, é preciso duvidar, refletir e dar espaço aos interesses gerais democráticos
para termos um caminho que nos ajude a conviver e reforce aquele “nós” que
Ernest Renan (1823–1892) exigiu de uma Nação, e que Norbert Elias (1897-1990) reconfigurou,
pois como nos mostrou Pascal (1623-1662), antecipando Dostoievski (1821-1881),
não devemos apostar a nossa integridade a roleta que aí está.
5 de julho de 2022.