A entrevista abaixo foi postada originalmente no BLOG SENTIDO OESTE na Edição Especial de 25 de abril de 2011. No BLOG VOTO POSITIVO os leitores encontram artigos relacionados ao filme Tropa de Elite 2 e há um artigo sobre a votação de Marina Silva (PV) num recorte geopolítico da Zona Oeste carioca. Por isso, reproduzimos a entrevista nesse espaço para que o megafone virtual some mais força pela radicalidade da democracia.
1. Você se destacou no meio acadêmico com estudos sobre a violência urbana. Em algumas poucas palavras, como a AP5 (Bangu, Campo Grande e Santa Cruz) pode ser caracterizada no item da violência urbana?
Resposta: Trata-se de uma região especialmente problemática, que tem sofrido bastante, concentrando números elevadíssimos de crimes letais e dinâmicas micro-políticas despóticas. Entre os crimes letais estão os homicídios dolosos e numerosas mortes violentas por armas de fogo provocadas por ação policial, os chamados autos de resistências, muitos dos quais não passam de execuções extra-judiciais. As dinâmicas tirânicas hoje são protagonizadas principalmente por máfias milicianas, compostas sobretudo por policiais. Ou seja, a região concentra os fenômenos mais graves, justamente porque, em função das desigualdades sociais e econômicas e das desigualdades no acesso à Justiça, tem se mostrado mais vulnerável a práticas institucionais anti-democráticas e anti-republicanas, no campo político e na gestão da segurança pública.
2. Alguns moradores da Zona Oeste reclamam que as UPP´s estariam contribuindo no aumento da violência na localidade, pois haveria a transferência da atuação de criminosos. Essas afirmações são contestadas pela Secretaria de Segurança estadual. Qual seria o motivo do aumento dessa percepção de insegurança na região?
Resposta: Migrações, de fato, ocorrem, na área da criminalidade, e não é impossível que o incremento de investimentos repressivos e preventivos em uma região promova o deslocamento de agentes envolvidos com práticas criminosas para territórios menos atendidos pela presença e a ação das instituições da segurança pública. Por isso mesmo se fala tanto na necessidade de que a UPP deixe de ser um programa de aplicação limitada e se transforme em uma política pública, para que alcance extensão universal e sustentabilidade. Entretanto, tenho reiterado que essa transformação só será viável se houver uma refundação das polícias fluminenses, para que elas deixem de ser parte do problema e se convertam em parte da solução, pagando salários decentes e se organizando de acordo com as exigências de uma instituição moderna, eficiente, democrática, comprometida com a legalidade constitucional e com os direitos humanos (tanto dos cidadãos-policiais quanto dos cidadãos não-policiais).
Por outro lado, creio que as migrações em curso no interior do universo criminal sejam menos relevantes, do ponto de vista da segurança pública na região, do que o avanço das milícias, expressão da degradação institucional das polícias.
3. A relação da criminalidade com a política é um dos temas do filme Tropa de Elite 2. Entretanto, no livro Elite da Tropa 2 há uma interpretação sobre o “mandonismo urbano” que poucos tem mencionado. Como as forças democráticas devem atuar para enfrentar esse “mandonismo urbano”?
Resposta: O pior de nossa tradição autoritária e patrimonialista, que torna as desigualdades --naturais no capitalismo-- ainda mais agudas, porque as estende para o âmbito dos valores, das emoções, da inter-subjetividade, quer dizer, da cultura, manifesta-se nas práticas correntes das instituições da Justiça criminal, no Rio de Janeiro, a começar pelas polícias. Creio que as forças democráticas deveriam dar mais atenção à questão policial, primeiro degrau (e mais evidente para os mais pobres) do que se costuma denominar desigualdade no acesso à Justiça. Essa desigualdade é tão ou mais trágica do que as demais. Ela começa na abordagem policial --que muda de acordo com a classe social, a região da cidade e a cor da pele do abordado—e termina na decisão judicial e no cumprimento das penas, dentro desse triturador material e espiritual que é o sistema penitenciário. As forças democráticas continuam negligenciando essas questões, a despeito de sua importância social. Essas forças costumam ser muito sensíveis e atentas às questões sociais e econômicas, mas, não raro, subestimam a problemática da segurança pública e da Justiça criminal, das polícias e do sistema penitenciário. Subestimam no sentido de que reduzem sua ação à denúncia, eximindo-se de qualquer engajamento com militância propositiva. Por isso é comum ver essas forças conquistaerem o poder e, uma vez no governo, repetirem as velhas práticas.
4. O cotidiano das escolas públicas na Zona Oeste está repleto de casos de violência. O recente episódio em Realengo é a exposição da falta de funcionários no controle de portões e nos corredores escolares como sempre denunciou o Sindicato dos Profissionais de Educação (SEPE). Há agressões entre alunos e ameaças de morte de alguns aos profissionais de educação. Brigas entre grupos rivais de escolas diferentes. Queixas da presença de alunos armados em sala de aula. Muitos educadores se afastam da prática escolar por causa da chamada “síndrome do pânico” A cultura da paz cedeu seu espaço a intolerância nos bulings. O que a sociedade poderia fazer para mudar esse quadro que se agrava?
Resposta: Há muitos problemas no universo escolar. Problemas de todo tipo, inclusive violência entre alunos e contra professores e funcionários. No entanto, não creio que o bullying seja um fenômeno novo. Atualmente, temos olhos para ver, porque nos tornamos capazes de identificar e compreender a gravidade do problema. Antes, tendíamos a considerar naturais essas práticas, o que apenas contribuía para sua reprodução. Também acredito que a tragédia de Realengo não deva ser misturada e diluída no conjunto dos demais problemas, porque apresenta características muito particulares. Quanto a Realengo, o meio de impedir sua reprodução é antes lutar pelo desarmamento do que demandar mais repressão policial ou tecnológica, o que só contribui para um clima de medo, o qual tende a ser combustível para mais preconceitos e mais violência. Mas é claro que inspetores, disciplina, organização e um mínimo de controle são necessários. Sublinho que a pergunta contém a pista do que, certamente, será fundamental: a construção de uma cultura da paz, o que não se faz por mera ação governamental e muito menos com programas policiais ou de reforço de controle por meios tecnológicos. Cultura da paz tem de ser construída com as famílias e as comunidades, inundando o universo escolar com os valores do respeito ao outro e às diferenças. Cada unidade escolar tem de descobrir o melhor meio de envolver famílias e a comunidade em projetos culturais criativos que sensibilizem a imaginação e toquem as emoções positivas das criancas e dos adolescentes, oferecendo-lhes também modelos positivos para identificação. As artes e até mesmo as chamadas artes marciais têm papéis importantes nesse contexto.
5. Nas eleições de 2010, você colaborou na elaboração do Programa de Governo de Marina Silva (PV) para a Presidência da República. Ela teve segundo lugar nas Zonas Eleitorais da Zona Oeste carioca que muitos analistas atribuem ao eleitorado evangélico, porém o trabalhismo do pré-64 sempre foi predominante nessa região. Há como estabelecer uma interpretação sobre esse fenômeno na localidade onde eleitores votam em lideranças locais clientelistas (voto doméstico) e numa candidata de “terceira via” para a Presidência Nacional?
Resposta: Não saberia responder, porque a pergunta é interessantíssima e bastante complexa e eu não disponho de dados oriundos de pesquisas. Portanto, só posso especular. Tomando a liberdade de fazê-lo, creio que os cidadãos respondem, pelo voto, a diferentes indagações ou provocações, demandas ou desafios. Assim como nós sabemos que nosso condomínio, nossa comunidade, rua ou bairro precisam de ações distintas daquelas necessárias a um país, também estamos dispostos a aceitar distintos arranjos para solucionar questões tão diferentes quanto a política local e os destinos do país. Além do mais, eleições majoritárias seguem lógicas bastante específicas de escolha. Na eleição majoritária nacional, dimensões simbólicas e afetivas, aspectos valorativos e identificatórios jogam papéis especialmente importantes e singulares. Junte-se a isso o fato de que uma escolha faz-se em dois turnos e tanto por exclusão quanto por adesão. Tudo somado, chegamos ao ponto talvez chave: cada candidato passa mais do que mensagens políticas ou éticas, passa também outro tipo de conteúdo, no qual se transmite aquilo que cada ser humano debaixo da máscara de candidato realmente é. Quem consegue passar com mais autenticidade sua verdade –desde que essa verdade seja admirável e se aproxime, positvamente, dos sentimentos mais fundos da população—conquista o voto, mesmo contra limitações de tempo na TV ou de recursos para a campanha. Marina, além de qualquer outra consideração, passou o que ela é: um dos seres humanos mais admiráveis e respeitáveis de nosso país, cuja biografia conta uma das melhores histórias sobre o Brasil recente. Quando a política se despedaça na desconfiança generalizada, no descrédito, no ceticismo feroz, não há como subestimar a força serena e lúcida de Marina, uma mulher da selva que sobreviveu à exploração e emergiu para o mundo público mantendo-se sintonizada com seu passado, mas livre de ressentimentos. Sem prejuízo da qualidade de suas propostas e de sua interpretação equilibrada, crítica e realista, construtiva e inteligível de nosso futuro enquanto nação, em um planeta em risco.
6. A Zona Oeste carioca é sempre citada como região onde se define as eleições municipais. Por que as forças democráticas apresentariam dificuldades de se organizarem na região? A Zona Oeste teria um peso semelhante a “Questão Meridional” em Gramsci?
Resposta: Interessantíssima a questão. Vou estudá-la com você. Espero que você a responda para que eu e seus leitores comecemos a refletir melhor sobre esse enigma.
7. 7. Recentemente, você atuou no Secretariado Municipal de Nova Iguaçu na gestão de Lindberg Farias (PT). Um intelectual que atuou com sucesso na Baixada Fluminense. Essa experiência lhe credenciaria a alguma postulação eleitoral?
Resposta: Não postulo nenhuma participação na política eleitoral como candidato. Mas não pretendo continuar participando da política como eleitor e militante. A Zona Oeste precisa de novas lideranças com sua qualidade, sua história, sua visão generosa, includente, sua dedicação, sua integridade. Esses atributos o credendiam a uma postulação eleitoral. Estou à sua disposição para distribuir os santinhos.